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O SOL E A LUA

Catulo da Paixão Cearense

www.ebooksbrasil.org


O Sol e a Lua [1939]
Catulo da Paixão Cearense [1863-1946]

Edição
eBooksBrasil
Fonte Digital
Digitalização da edição publicada pela Editora S. A. A Noite — Rio
Composto e Impresso em fevereiro de 1939 nas
Oficinas Gráficas de
“A NOITE”

Créditos:
Capa: Armando Pacheco

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

Copyright:
©2000,2006 Catulo da Paixão Cearense


Índice

Nota do Editor
AO LEITOR
DEDICATÓRIA
FALA O POETA
FALA CHICO AZULÃO


Nota do Editor

 

Quem não conhece ou já não cantou “O Luar do Sertão” de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco?

Mas quantos das novas gerações sabem que Catulo foi um poeta de rara inspiração e 15 livros publicados?

Onde estão estes livros?

Impossível achá-los nas livrarias físicas ou online.

Tenho notícia, apenas, de uma compilação de poemas editada pela Ediouro [www.ediouro.com.br], intitulada “Luar do Sertão e Outros Poemas Escolhidos” que reúne “alguns dos poemas de Catullo da Paixão Cearense, selecionados, organizados, anotados e revistados por Guimarães Martins”.

Nos sebos, só após poeirentas garimpagens.

E olhe que eu mesmo, que em anos me encontro mais perto da lua do que do sol, só vim a achá-los ao meio dia da existência.

Esta edição de um dos mais belos poemas do poeta é apresentada exatamente como foi publicada em 1939, com a devida atualização ortográfica, para benefício dos que não viveram tempos de pharmacia, com a única exceção de tudo que me pareceu necessário preservar como essencial para a reprodução do linguajar de “Chico Azulão”.

Nestas páginas, além da rara poesia do Autor, o leitor reencontrará também João Pernambuco tocando ao violão "um dos seus mais belos choros", como atesta Catulo e elementos para a reconstrução de um tempo que não vivi, mas que conheci melhor quando pela primeira vez as li. Não é por acaso, por exemplo, que a dedicatória é "Aos Sargentos do Brasil"... A Revolução de 30 ainda estava bem viva na memória!

Como não se passaram ainda 70 anos que a Poesia perdeu Catulo e que ele foi reencontrá-la pessoalmente, chamo a atenção do leitor para a Nota de Copyright no fim da edição.

E sem mais, boa leitura!


O SOL
E
A LUA

CATULLO CEARENSE

COM PREFÁCIOS DOS SRS. CORONEL DR. SALLES FILHO, PROFESSOR DR. J. P. PORTO-CARRERO E PROFESSOR GEORGES DUMAS, DA UNIVERSIDADE DE PARIS


 

PREFÁCIOS

 


 

EM todas as literaturas existem dois tipos de poesia perfeitamente individuados: a poesia de cultura e a poe­sia espontânea ou da terra. Na poesia cultural refletem-se as tendências universais; na poe­sia da terra, exprime-se o gênio peculiar de cada povo e do seu próprio ambiente geográfico.

Temos tido grandes poetas de cultura, como ÁLVARES DE AZEVEDO e BILAC; mas em CATULLO DA PAIXÃO CEA­RENSE encontramos o poeta da terra, caracterizando o Brasil na harmonia do seu poema, como já o fizera, na prosa, EUCLYDES DA CUNHA.

CATULLO é mesmo, sem favor nenhum, o notável precursor dessa literatura regionalista e, no ritmo do seu verso opulento, há de vibrar, para sempre, numa exuberância verda­deiramente tropical, o incomparável senti­mento da terra brasileira. É isso que palpita em “O Sol e a Lua”, grandiosa síntese de sua poesia, e são os tesouros do ilustre bardo que ora se divulgam neste primoroso trabalho.

SALLES FILHO


 

Ao espírito moderno, voltado para o pragmatismo da vida, a arte quase repugna. A arte de hoje, quando não seja a arquitetura buscando apenas o conforto, revela a pressa de exprimir o sentimento, deixando à imaginação a tarefa quase exclu­siva de criar o conteúdo de imagens, ou tra­duz, como fruto da severa crise do pensamen­to, a pura e ingênua regressão às maneiras infantis, na garatuja informe, no modelado soez, na parolagem tartamuda, na solfa desarmônica e arrítmica...

Não basta, entretanto, à natureza humana o prazer que conduz diretamente o homem a assegurar a sua nutrição e a perpetuidade da espécie. O trabalho obscuro, subterrâneo, das evocações inconscientes, que tem as suas raízes na fantasia infantil, compele-nos a idealizações que, sem finalidade imediata e sem compreensão perfeita do seu trâmite, são verdadeira necessidade humana, para a des­carga dessa energia inominada, desconhecida, que desborda do indivíduo em forma, ritmo e harmonia, na reprodução das imagens vividas e sonhadas.

A verdadeira arte, que não obedece a cânones preestabelecidos, mas que segue as di­retrizes dos impulsos humanos, não pode ser a cópia fiel da natureza nem a reprodução exata das impressões infantis; retratando a natureza e os sentimentos primitivos, aplica-­lhes a maneira do adulto e rege-se por leis biológicas irresistíveis Ao leitor, ao ouvinte, ao espectador, qualquer coisa íntima lhe diz o que é arte e o que é artifício, essa qualquer coisa íntima são-lhe os próprios complexos um dia recalcados e que encontram por fim, na expressão artística dos outros, a velha ima­gem refreada que não pudera vir à tona do consciente. O reconhecimento da idéia é fonte de prazer; mas os sentimentos que, por desa­gradáveis houveram de ser fugidos e as impressões brutais da natureza que causaram angústia e pavor não hão de ser reproduzidos tais quais — ou não despertarão prazer, mas sim a angústia, o medo, o desagrado.

Conciliar essa renovação de impressões ar­caicas com a idealização sonhada na própria infância e tudo isso à maneira da mente adulta — eis a verdadeira tarefa da arte — simboli­zação de sentimentos ocultos, estilização do real da vida, não cópia e reprodução. A arte não diz o mundo tal qual é, mas qual quisé­ramos que fosse.

A poesia de Catullo da Paixão Cearense, ímpar em a nossa literatura, tem um sabor acre de primitivo, sob a casca de uma civili­zação que mal encobre o cerne sertanejo da alma do poeta. Ele pudera imitar apenas o violeiro rude do sertão ou das praias do Norte, onde viveu menino; não lhe seria difícil; seria poesia falsificada, que nos daria um senti­mento de ternura pela ingenuidade dos temas, pela pobreza da técnica, pela demasiada fi­delidade das imagens naturais. O que a gente admira nesse folclore, como em qualquer ou­tra manifestação de arte primitiva, é principalmente o contraste entre as imagens e a inópia da técnica: mais ou menos, o que acon­tece com os fenômenos da mente infantil: a revelação inesperada de recursos de lógica, o emprego insólito de expressões novas, mas tudo através de uma linguagem imperfeita e com a exteriorização de conceitos errôneos, por isso que colhidos da impressão direta dos sentidos. A arte primitiva é arte imperfeita, que nos delicia, em parte, porque nos leva às nossas próprias evocações infantis e, por outro lado, nos obriga ao trabalho mental de pró­tese, para completá-la até à idealização do prefeito.

— Esses trovadores sertanejos, que admi­ráveis poetas não seriam, se tivessem cultura! — eis o que nos acode à mente ou nos sai mes­mo dos lábios. E no entanto, conduzidos à civilização como nos desiludiriam eles! Bus­cariam escravizar-se aos cânones, teriam pudor da sua espontaneidade, abandonariam a viola pela pena, a ideologia pelo pragma­tismo e seriam artistas banais ou cavadores práticos da vida.

A poesia de Catullo Cearense tem isto de singular: não é a arte primitiva, imperfeita, nem o seu PASTICHE, a sua contrafação; não é tampouco a arte erudita, de fardão e espada, a arte acadêmica, ritual, dogmática; não é a fuga para a arte louca, regressiva, perversa, das escolas modernas, acessíveis aos snobs, aos cabotinos e aos neuróticos. É a conciliação do espírito primitivo do sertão brasileiro com a linguagem culta dos que po­dem, melhor do que o matuto, dar o verda­deiro valor à arte. Neste poema bem se pode sentir isto. O tema é velho: é desses a res­peito dos quais pareceria não ser possível di­zer coisa nova. Catullo não foge ante essa di­ficuldade. A maneira sertaneja tem recursos que a gente civilizada esqueceu e desprezou; com esse material precioso de imagens ingê­nuas, é possível fazer arte à altura da civiliza­ção, tal como dos detalhes da nossa flora e fauna é possível criar motivos brasileiros para o lar mais requintado de conforto moderno.

Catullo consegue-o. Mas, ao lado da sua poesia, está a ouvir-se o retintim do arame das violas, na sua cadência marcada, firme, entre os floreios que brincam sob o choque leve dos dedos irrequietos. O sol do sertão: esse sol sempre presente, esse sol que fecunda e que mata, que amadura os frutos e bebe a água dos rios, que curte a pele do vaqueiro e o enrija para a luta vital e que esturrica o solo abrasado e resseca e incendeia a messe do la­vrador — esse sol aí está, onipresente e se­vero como um deus vingador, franco, sem ter­giversações, sem véus de nuvens, desabrido e leal, como sertanejo. O luar do norte, inde­finível para quem o não tenha visto, num céu muito alto, de uma limpidez em que se vêem a olho nu um número de estrelas que outras regiões não conhecem — um luar grande, vas­to, bom, que penetra o seio da floresta, que ameiga o contorno do casario rude, que trans­forma em colunatas de claustro os renques de coqueiros, que lava as serras com uma água de leite e que parece trazer do céu o perfume que exalam os cálices selvagens; um luar que, nas praias, parece tão grande como o oceano e a cuja luz diáfana perpassam ao longe, como asas espalmadas, as velas das jangadas... Esse luar aí está, santo e ingênuo, na pleni­tude da luz, misterioso na mudança dos quar­tos, na sua ausência das noites negras, onde apenas o vento fresco denuncia, na sua música ciciante e nos perfumes que carreia, a vida eterna da natureza.

Não é difícil perceber que as reminiscên­cias infantis de Catullo aqui estão, na arte deste poema. Sente-se, em breve, que a viola serenou e os cantadores se calaram. Um tre­cho de poesia culta ressoa no silêncio. Inútil, porém, a tentativa: o matuto responde, na sua linguagem espontânea, versando os mesmos temas: e o “sertão em flor” desabrocha, en­tão, em todo o viço da vegetação renascida à primeira chuva. O Brasil ingênuo, o Brasil in­ferior, que se não peja de sê-lo mas que de­monstra da sua própria energia ser possível fazer o Brasil maior — surge-nos ante a vista. Não é a cópia européia ou norte-americana; não é o regresso ao primitivo nem o confor­mar-se com a civilização imperfeita. É a men­te do caboclo capaz de guiar um arado e de mover uma máquina. É o espírito brasileiro, consciente de si mesmo.

Bem haja o poeta do Brasil!

J. P. PORTO-CARRERO.


 

L’hymne de monsieur Catullo Cea­rense au Soleil et à la Lune est un pur chef-d’oeuvre et je suis sûr que j’en dirai autant de toutes ses poésies, quand je les aurai lues, ce que je vais faire demain.

GEORGES DUMAS
Professor da Universidade de Paris


AO LEITOR

 

ESTE livro tem, naturalmente, um pai, que sou eu, e, milagrosamente, um padrinho, que é o Dr. Salles Fi­lho. Ordeno-lhe, desde já, que sempre lhe tome a benção, pois, sem ele, o seu padri­nho, — talvez morresse pagão. Ao meu nobre compadre, Dr. Salles Filho, e ao professor Dr. Porto Carrero, que lhe dedicou outro magní­fico prefácio — os meus cordiais reconheci­mentos.

As palavras do grande sábio Dr. Georges Dumas me foram oferecidas numa festa em casa do Dr. Silva Mello, festa em que se achava presente e em que recitei o final do “Flor da Noite”, dos “Poemas Bravios”, de onde nasceram estes dois poemas, que, segundo diz o Dr. Salles Filho, é a síntese de toda a minha obra poética.

O autógrafo do Mestre está em mãos do Dr. Asterio de Campos, a quem o ofereci.

* * *

Aproveitando o ensejo, quero dizer-vos que recitei pela primeira vez estes poemas no palacete do Dr. Leite Garcia, no Alto da Boa Vista, e a lembrança dessa noite me fez pre­cedê-los do “cenário” que ides ler. O Dr. Leite Garcia, espírito cintilante e finíssimo cavalheiro, convidou vários amigos para me ouvirem, e “escolheu” uma noite das mais su­blimes que tenho admirado.

O auditório era a essência do que há de mais belo, formoso e intelectual. Rodeado de senhoras e senhoritas, tendo ao meu lado uma orquestra de violões, regida por João Pernam­buco, o príncipe dos violonistas brasileiros, sob o firmamento pintalgado de estrelas, na­quele ambiente, marchetado de luzes multi­cores, irradiadas de todos os ângulos do pala­cete, parecia-me estar num palácio de Fadas! Ao terminar o primeiro poema, recebendo prolongada salva de palmas, o Dr. Leite Gar­cia, depois de um fervoroso improviso aos meus versos, convidou uma senhorita para que executasse ao piano a “Sonata ao Luar”, do imortal Beethoven, em homenagem à Lua e à Mulher. Apagaram-se, então, todas as lu­zes, toda a iluminação do palacete, para que só se visse a da Lua, que vinha nascendo. A música do grande mestre foi ouvida e aplau­dida religiosamente, reacendendo-se as luzes aos seus últimos compassos.

Foi a vez de Pernambuco, que tocou ao vio­lão um dos seus mais beIos choros, acompa­nhado brilhantemente pelo terno. Feito pe­queno intervalo, comecei a recitar o segundo poema — Chico Azulão. Ao terminá-lo com outra salva de palmas, a Exma. esposa do Dr. Leite Garcia, secundada pelo Dr. Virgilio de Oliveira Castilho, jurisconsulto, poeta, pia­nista e compositor, pediu-me que cantasse o “Luar do Sertão”, o que fiz, acompanhado por um coro de todos os presentes, tão so­noro e harmonioso, tão harmonioso e sonoro, que não posso deixar de manifestar o meu re­conhecimento ao Dr. Leite Garcia, por me ter proporcionado uma noite de inefável e in­delével recordação.


DEDICATÓRIA

 

AOS SARGENTOS DO BRASIL

 

SARGENTOS da minha Pátria!
Eu vou contar-vos um caso,
Um caso surpreendente
De profunda sugestão.

Foi num dia, bem me lembro,
Dezenove de novembro,
Dia em que nós festejamos
Nosso belo Pavilhão.

Passeando numa floresta,
Dentro do mato virente,
Ouvi um canto imponente
De tão suave expressão,
Que me acordou na memória
Outro cântico de glória,
Que sempre que nós ouvimos,
O amor da Pátria sentimos
Fremindo no coração.

Não! Não foi uma ilusão!

Vi e ouvi, maravilhado,
Num arbusto alviçareiro,
Um Sabiá lisonjeiro,
Cantando a não poder mais!
E ao canto doce e fagueiro
Da sua garganta de ouro
As outras aves, gorjeando,
Alegres, faziam coro
No meio dos matagais!

O arbusto, em que ele cantava,
Tinha as frutas amarelas,
E as flores alvas e belas,
De uma essência tão fagueira,
Tinha um perfume tão grato,
Que todos já percebestes
Que estou fazendo o retrato
De uma linda laranjeira.

Pois bem, amigos Sargentos.

No meio dos seus verdores
Entre o amarelo das frutas
E entre a brancura das flores,
Sob o docel esplendente
Do céu azul, matinal,
Nessa linda laranjeira,
Que era a imagem verdadeira
Da Bandeira Brasileira,
No meio do matagal,
Um Sabiá vitorioso,
Cheio de amor e civismo,
Num surto de patriotismo,
Cantava, alegre e orgulhoso,
O Hino Nacional!!!

Sargentos de minha Pátria!
Filhos de Osório, Caxias,
Barroso, Tamandaré,
Bartolomeu de Gusmão,
Santos Dumont, palinuro
Divino da Aviação,
Pois que a nossa Pátria Amada
Palpita, representada
Nesse belo Pavilhão,
Para um dia defendê-lo,
Se a tanto for obrigado,
Me vereis ao vosso lado,
Rugindo, como um leão,
Ou, se melhor, na vanguarda,
Na mão direita, — a espingarda,
Um livro, — na mão esquerda,
No cinturão, — uma espada,
A imagem de Jesus Cristo
Em pau brasil modelada,
Pendente do coração,
Na luta, acesa, lutando,
Enfrentando o adversário,
Como um soldado honorário,
Vosso amigo e vosso irmão.

Agora, na paz, Sargentos,
Com a Pátria pacificada,
Como o pássaro canoro
Da laranjeira enflorada,
O Sabiá cidadão,
Estarei também convosco,
Não, fardado de soldado,
Mas de perneira e gibão,
Pisando o chão do terreiro,
Sambando de pé no chão,
Tangendo a viola magoada
E cantando uma toada,
Que esta é o Hino Brasileiro
Do cantador, do violeiro,
Que é o sabiá seresteiro
Dos matos do meu Sertão.


CENÁRIO

Era noite, O Plenilúnio clareava o terreiro de uma Fazenda, no sertão, onde um “cardu­me” de moças, moços, velhas e velhos se agi­tava na tumultuosa alegria de uma festa tra­dicional. Flautas, violas, cavaquinhos, harmô­nicas e violões gemiam sua queixa amorosa ao espírito da noite, que parecia ter sido con­vidada para o rumoroso festival. Achando-se presentes um poeta da cidade e um afamado cantador daquelas paragens (quero dizer: — a Lira e a Viola...), acedendo ao convite de todos os convivas para que saudassem o sol, que estivera esplêndido naquele dia, e à Lua, que vinha desabrochando numa das suas mais encantadoras aparições, depois de vibrante salva de palmas, em meio de profundo silên­cio, assim começou o poeta a sua oração.


FALA O POETA

 

SENHORES! O Sol é homem!
simboliza a Onipotência
da ciência e da energia.
A Lua é mulher, Senhores!
E, sendo mulher, encanta!
Mas, sendo mulher, varia!

Varia, porque, em verdade,
o Sol, másculo e fecundo,
desde o princípio do mundo,
não deixou de iluminá-lo
com o facho do seu clarão!

A Lua, se tem vontade,
nos brinda com a claridade,
para depois, sem piedade,
deixar-nos noites e noites
em completa escuridão!

A ciência regista um fato
de profunda observação: —
a mulher, que é pirracenta,
não faz o mal por pirraça!
Faz o mal por devoção!
E se a Verdade não mente,
toda a Verdade se encerra
neste confronto evidente.

De manhã, heroicamente,
vibrando um canto de guerra,
na crista daquela serra,
pontualmente, fatalmente,
vê-se o Sol aparecer.

E a Lua, com os seus caprichos,
que anda sempre com as estrelas
comadreando em cochichos,
não tem hora de nascer!

Finda a missão da jornada,
o Sol, à hora aprazada,
no esplendor da apoteose,
começa a descer a escada
do horizonte, em rosicler!
A Lua, sempre aluada,
sempre e sempre irrefletida,
não tem hora de partida!
Segundo a sua nevrose,
vai-se embora, quando quer!

O Sol, sempre obediente
às ordens do Onipotente,
com toda a sua energia,
nunca teve a ousadia
de invadir uma só noite
as plagas celestiais!
Mas quem já não viu a Lua
deixar a noite, que é sua,
para andar no céu, de dia,
desrespeitando a harmonia
das próprias leis naturais?!
E por que? Por ser curiosa,
ser vaidosa e nada mais!!

O Sol, que é o Sol, sempre o mesmo,
na severa austeridade,
como o emblema da Verdade,
sempre é o mesmo na altivez!
A Lua, se é hoje inteira,
amanhã, vem por metade;
e, assim, vai escasseando,
vai minguando, vai minguando,
até sumir-se, de vez!

Por isto, o Sol desconfia
que, quando a Lua nos deixa,
sem nós sabermos porque,
vai vagar por outros mundos,
vai seduzir outro amante,
outro Sol, que ele não vê!

Se o Sol, na hora do eclipse,
aproveitando esse ensejo,
na Lua vai dar um beijo,
um ósculo de vulcão,
a Lua finge um desmaio,
vergonhosa, esconde o rosto,
faz tanta macaqueação,
que o Sol, que conhece a Lua,
sem dar sinal de desgosto,
sorridente, continua
sua peregrinação.

Pois assim mesmo, iludido,
reacendendo o seu farol,
o Sol, bem considerando,
continua iluminando
a Lua, pois é sabido
que a luz da Lua é do Sol.

Quando a Lua, a Lua nova,
muito fininha e amarela,
surge, em nova aparição,
não nos parece a costela
que Deus, quando Adão dormia,
tirou do corpo de Adão?!
E por que, sendo tão bela,
sendo a mulher tão perfeita,
foi feita de uma costela,
quando podia ser feita
das fibras de um coração?!

Pois se é costela do homem,
por esta mesma razão,
deve pertencer ao homem
por direito e gratidão!

E as manchas que tem no rosto?
A ciência afirma umas coisas
que são prováveis... talvez!

Porém a Lua tem lábias
para enganar a ciência,
e aquelas manchas nos provam
que alguma coisa ela fez!

Uma lenda dos indígenas
nos diz, positivamente,
que a origem daquelas manchas
é uma história complicada
entre a Lua e um seu parente!

Porque a mulher, como a Lua,
com tantos adoradores,
tem coração leviano!!

E tanto assim, meus senhores,
que outra vítima da Lua
é o velho Mar, soberano,
que vive no mesmo engano,
em noites de lua cheia,
como um doido, a esbravejar,
em suas ânsias supremas
e em brancas espumaradas,
a derramar seus poemas
pelas areias prateadas
das praias enluaradas,
que até parecem risadas
e gargalhadas da Lua,
que está se rindo do Mar!

Como é triste ouvir-se, à noite,
quando ele está concentrado,
o Mar gemendo, ajoelhado,
numa prece, a suplicar
que a Lua deixe as estrelas,
deixe o céu crivado de ouro,
e venha ver o tesouro
que lhe há de ser ofertado,
e que ele guarda encerrado
em tantas conchas de pérolas,
que só Deus pode contar!

É triste, sim, muito triste!

Mas inda é muito mais triste
ver-se o Monstro, acabrunhado,
depois de passar a noite,
contra a Lua revoltado,
morrendo à beira da praia,
sem um gemido, cansado!!
Antes que o Sol desponte
na fronte azul do horizonte,
ver-se a Lua se sumindo,
perfidamente sorrindo
de ver o Mar desmaiado!

A Lua é mulher, senhores,
e tudo está decifrado!

Porque é triste ver-se, à noite,
o Mar abraçando a Terra,
e a Terra beijando o Mar!
É a maneira mais sublime
de um ao outro consolar!
O Mar pensando na Lua,
e a Terra, triste, pensando
no Sol, que só a ilumina
por Deus assim o ordenar!

O Sol não gosta da Terra,
mas nós sabemos que a Terra
tem profundo amor solar!

A Terra também é rica!
É dona de uma fortuna,
de uma herança fabulosa,
tão grande e tão portentosa,
que se ela fosse orgulhosa,
podia erguer sobre a terra
com tanta jóia preciosa,
montanhas e mais montanhas!
Mas, singela, sem vaidade,
sem a escandalosidade
da Lua, com as suas manhas,
esconde a sua riqueza
nas suas próprias entranhas!

É uma modéstia orgulhosa,
que facilmente se explica:
não ostenta; se contenta
em saber que nós sabemos
que ela é rica, é muito rica!

A Terra é mulher... e basta!
É preciosa! É caprichosa!
E as bobices e tolices
da mulher, só Deus explica!

Mas o Sol, que adora a Lua,
por ser um homem de ciência,
é um filósofo exemplar!
Pois enquanto o Rei do dia
sofre com filosofia
as inconstâncias da Lua,
caçoando dos dois amantes,
se rindo dos dois rivais,
o Mar, em crises constantes,
o Mar, o poeta boêmio,
em ímpetos delirantes,
já não vendo mais a Lua,
sentindo saudades dela,
pensando não vê-la mais,
uiva, ruge e se encapela,
o proprio céu desafia,
e quem paga esses rompantes
da sua hiperestesia,
somos nós, pobres mortais!

O sol é homem! É firme!
A lua é mulher! Varia!
Varia! E, se ela morresse,
falta alguma nos faria!
Porém, se o Sol falecesse,
o mundo se extinguiria!
Sem a cabeça do homem,
a mulher não existia!

Agora vêde, Senhores,
como o poder do destino
faz os Gênios deseguaes!

O Mar, gigantesco e belo,
vendo a Lua, o seu tormento,
em trismos de desalento,
transforma-se num Otelo!
E o Rio, calmo e silente,
E o Rio, o poeta romântico,
reflete, serenamente,
o firmamento e as estrelas
no seu leito nupcial,
refletindo a própria Lua,
que nas águas retratada,
parece uma outra Lua,
que ele adora, idealizada
na su’alma de cristal!

E a Lua, assim retratada,
por ele romantizada,
é mais formosa e saudosa
do que a Lua original!

E, enquanto o Mar desespera,
rugindo, como uma fera,
o Rio, na doce calma,
vai levando dentro d’alma
a doce imagem da Lua,
pura, casta e virginal!

Outra vítima da Lua:
— o Rio sentimental!

Eu vou dizer-vos uns versos
que o Mar recitou à Lua,
numa noite tão serena,
que até parece que a noite
silenciava, para ouvir!

O Monstro estava tão calmo,
que eu só ouvia os singultos
do velho Monstro, a carpir!

A Lua, no céu, de bruços,
ouvia aqueles soluços,
indiferente, a sorrir!!

Eis aqui os belos versos
que, muito palidamente,
escrevendo sobre a areia,
eu pude reproduzir.

Ó Lua, que és tão linda e que és tão pura,
“pensas, talvez, que o Mar agigantado
“não pode ter no coração salgado
“um bocado de luar e de doçura?!

“O amor que te consagro é tão intenso,
“que sempre, ó Lua, que no céu desmaias,
“eu pareço um turíbulo de incenso,
“incensando de espuma as alvas praias!

“Porque consentes, quando esta alma anseia
“por te beijar a boca de jasmim,
“com a tua placidez de lua cheia,
“que as estrelas no céu riam de mim?!

“Se enfrento todo o horror da tempestade,
“Se adoro só a ti e a Liberdade,
“por que escarneces deste grande amor?!
“Maldita seja a tua claridade,
“Se não és o luar da minha dor!

“Se te somes, meus ais são tão profundos,
“que eu imagino, em meu furor insano,
“que andas a divagar por outros mundos,
“beijando a fronte azul de outro oceano!

“Por que és fria e sou frio e tu me escaldas?!
“Por que minha oração nunca te alcança?!
“Por que é que eu tenho a cor das esmeraldas,
“e não tenho a ilusão de uma esperança?!

“Quando espumejo o alvor d asminhas mágoas,
“não vês, quando na areia me debruço,
“que o sangue verde destas minhas águas
“são poemas verdes, que por ti soluço?!

“Tu tens tanto poder, tanta magia,
“tanta dor, tanto amor, tanta poesia,
“perfumando de luz a Terra inteira,
“que até meu acre odor de maresia,
“com teu cheiro de noiva, que inebria,
“fica cheirando a flor de laranjeira!

“Tu desprezas o Mar, que tanto te ama,
“e amas, talvez, o Sol, que não te quer!
“Por teu amor, pela saudade tua,
“meu coração se agita e tumultua,
“mas Deus, que fez o Mar e fez a Lua,
“não te deu coração, porque és mulher!

* * *

Mas deixemos o oceano,
o velho Mar, soberano,
pobre vítima do Amor,
para falar-vos agora,
sem o rigor do analista,
mas, sim, com alma de artista,
poeta, músico e cantor.

Neste ponto, o bardo interrompeu o curso da sua oração, porque a moça mais bela do divino cenáculo levantou-se e veio oferecer-­lhe a flor que ornamentava o diadema dou­rado dos seus cabelos louros. Era a sua Dul­cinéa, de quem não havia recebido ainda o mais leve sinal de gratidão pelo amor que lhe devotava. Ia continuar, ironizando a Lua e a mulher, mas, com a benção daquela ofer­ta, a sua alma iluminou-se; como inundada por um luar interior! A Lua, que tinha nascido alvíssima, mas que se velara um pouco desde que ele começou a recitar, rasgou, como por encanto, o véu de nuvens que a encobria, e a flauta e os violões choraram um dos seus cho­ros mais chorosos, que era bem um hino à oferta da flor, à resurreição do luar e à trans­figuração do poeta.

Quando os instrumentos expiraram os úl­timos suspiros do choro, o poeta, divinizado, num silêncio ainda mais profundo, e mudan­do o ritmo do seu poema, assim recomeçou a sua interrompida recitação, elogiando a Lua e a mulher.

SENHORES! O Sol é homem!
E não há forças que domem
seu poder maravilhoso!
Mas, se o Sol, se o Sol glorioso,
se o Sol é um deus luminoso,
um cérebro em combustão,
a Lua, magnificente,
há de ser, eternamente,
a hóstia do coração!

Pois, se Deus, segundo a Bíblia,
fez a mulher da costela
de um homem, por ser mortal,
fê-la assim para que o homem
a consagre no milagre,
no milagre de ter feito
do osso de uma costela
um coração divinal!

E se a Lua não consente
que o Sol a beije no eclipse,
que fôra um beijo inocente,
se o sol não fosse mentir,
é porque sabe que o homem,
antes do beijo, é um carinho,
mas que, depois, é um espinho
que fere e sabe pungir!

E finalmente, Senhores,
falar das manchas da Lua
com maliciosa ironia,
é perfídia, é covardia!
Se os sábios dizem que a Lua
é um corpo morto, que, apenas,
o Sol com a luz alumia,
nada tenho com a ciência,
porque eu não contemplo a Lua
com os olhos da astronomia!

Pois o Sol também tem manchas,
e se elas fossem pecados,
das manchas que o Sol encobre
com os raios esbraseados,
muita coisa se diria!...

Mas se os sábios sabem tudo,
e querem que sejas muda,
muda e surda e cega e fria,
bendita sejas, ó Lua,
pois se és fria para os sábios,
para os poetas e os profetas
tu és o Sol da Poesia!

O Sol é força, energia!
A Lua é um’ave-maria!
Se o Sol morre combatendo,
em sangue rubro fervendo,
no incendio de um fogaréu,
a Lua sempre falece,
rezando, triste, uma prece,
e com saudades do céu!

E eu vos direi, como poeta,
que quando a Lua nos deixa,
quando ela desaparece,
rezando, triste, uma prece,
é porque vai, meus Senhores,
vai inspirar noutros mundos
outros poetas superiores
aos deste mundo de ateus,
outros poetas mais poetas,
mais cultos, mais inspirados,
e muito mais adiantados,
que estão mais perto de Deus!

Bendita sejas, ó Lua,
porque me dás a ilusão
de que sempre quando passas
junto ao Cruzeiro do Sul,
tu te concentras e rezas
uma prece afervorada
por toda a estrela apagada
nesse Infinito do Azul!

Bendita, bendita sejas,
porque mesmo o cão, sem dono,
triste, enfermo, em abandono,
quando a miséria o consome
e a fome o faz delirar,
segundo a voz popular,
consola a miséria e a fome,
em uivos, a te saudar!

O sol, desde que alvorece,
como um clarim, clarinando,
vem chamando os lutadores
para o combate da vida,
porque viver é lutar!
A Lua, como uma lira,
desde que vem despontando,
vem acordando os cantores,
os bardos, os trovadores,
a legião dos sonhadores
para com ela sonhar!

Porque o Sol, o Sol, candente,
o Sol é um clarim fremente,
fazendo o mundo vibrar,
e a Lua é uma serenata
dos anjos e dos arcanjos,
fazendo a Terra cantar!
Bendita sejas, ó Lua,
que já foste musicada
numa Sonata Enluarada,
pelo Gênio de Beethoven,
o maior Gênio dos Gênios
que tu soubeste inspirar,
e, também, bendita sejas,
porque tu já me inspiraste
em outras noites mais gratas,
em saudosas serenatas,
que também eram sonatas
que eu te cantava ao Luar.

Desde o Nascente ao Poente,
a caminhar, solitário,
sem repousar um momento,
subindo e depois descendo,
proseguindo o itinerário,
o Sol, o eterno operário,
vem varrendo o firmamento
das infindas amplidões,
para, depois, vir a Lua,
rodeada de escravas de ouro,
ostentar todo o tesouro
das suas constelações!

Deus fez o Sol sábio e pobre,
porque ao Sol assim convém!
Mas a Lua, que é formosa,
e Deus já fez orgulhosa,
recebeu da Providencia
tanta jóia luminosa,
que ela nem sabe o que tem!

Bendita sejas, ó Lua,
que as próprias feras encantas,
e sabes tudo encantar,
porque, como disse o poeta
numa trova consagrada,
até a onça traiçoeira,
ao ver-te, fica pasmada,
e leva uma hora inteira,
assentada na clareira,
vendo a Lua, a meditar!

Se o Sol, com os raios cremantes,
é que fecunda os gigantes
dos arvoredos possantes
e os matagais enfolhados,
a Lua, que é jardineira,
é que floresce a roseira
dos corações namorados!
A Lua, que em seus mistérios,
desce dos céus estrelados,
para andar nos cemitérios,
orando pelos finados,
regando, em lágrimas puras,
as saudades espontâneas
que brotam nas sepulturas
dos mortos abandonados!

Bendita sejas, ó Lua,
noiva eterna dos finados!
Noiva estrelada de goivos!
Noiva das noivas e noivos!
E noiva dos desgraçados!

O Sol, que emurchece as folhas,
convertendo as folhas secas
noutras folhas remoçadas,
das plantas velhas, cansadas,
faz o estrume, as adubadas,
para injetar sangue novo,
sangue novo e seiva nova
na terra, que já cansou!
A Lua é que vem, de noite,
como Irmã de Caridade,
com o seu óleo de piedade,
dar alívio às pobres plantas,
que o Sol, de dia, queimou!

O Sol não chora! Ao contrário,
sorve as lágrimas que a Lua
sobre este Vale de Lágrimas
toda a noite lacrimou!

Bendita sejas, ó Lua,
que de nós te compadeces,
e tanto, que até pareces
um tenebrário de lágrimas,
de todas as santas lágrimas,
as lágrimas de saudade
que até hoje, em orfandade,
a humanidade chorou!

O Sol, o grande cientista,
O grande naturalista,
com a lente miraculosa
da sua luz fulgurante,
descobre tudo o que é feio,
e tudo que é repugnante,
para, em sua força etérea,
ir transformando a matéria,
para que seja a matéria,
como o Espírito, — imortal!
A Lua, sempre piedosa,
com a sua doce meiguice,
a Lua, meiga e serena,
com o seu amor maternal,
é que consola a velhice,
toda a lágrima queixosa,
porque é mulher e tem pena
da miséria universal!

Bendita sejas, ó Lua,
ó Lua sacramental,
porque em tua cristandade,
tu és a humana Trindade,
do Amor, da Dor, da Saudade,
e és de toda a humanidade
a hóstia confraternal!

Bendita sejas, ó Lua,
Alma da Alma Universal!

O Sol, o químico eterno,
que todos nós respeitamos,
faz da Terra que habitamos
um grande laboratório,
para a vida eternizar!
Mas basta que surja a Lua
e os círios de ouro estelares
acenda nos seus altares,
onde começa a rezar,
para que logo transforme
o céu, — num zimbório enorme,
o espaço, — num templo augusto,
e a Terra, — num grande altar!

Bendita, bendita sejas,
Lua, flor da laranjeira,
da laranjeira florida,
que, florida e enfrutecida,
ostenta todas as cores
da nossa linda Bandeira,
sempre formosa e gentil!

Bendita sejas, ó Lua,
abençoada Flor da Noite
das noites do meu Brasil!

Bendita, bendita sejas,
Lua mimosa e faceira,
como a mulher brasileira,
sempre dengosa e gracil!

* * *

SENHORES! Nesta aliança
do Sonho e a Realidade,
o Sol é o Pai da Esperança,
e a Lua é Mãe da Saudade!

Pois, se Deus, o Onipotente,
criando a Lua dolente;
deu-lhe um coração que sente,
que sofre com os visionários,
com os poetas solitários,
irmãos gêmeos de Jesus,
foi para a Lua, Senhores,
ser mãe dos nossos amores,
mãe das nossas velhas dores,
mãe da Dor, que a Deus conduz,
mãe das nossas amarguras,
e até das nossas loucuras,
que ela acalenta e amamenta
com o leite da sua luz!

Bendita sejas, ó Lua,
porque tu és a verônica
do Arcanjo da Inspiração!

Bendita bendita sejas,
ó Lua santa, santíssima,
misericordiosíssima
Nossa Senhora da Noite,
do Sonho e da Solidão!

Bendita sejas, ó Lua,
que a todos os nossos crimes
dás a benção do Perdão!

* * *

Deixemos que o Sol, vibrando,
viva, em sonhos, se abrasando
em seus perenes ardores!

Porque, em verdade, Senhores,
se o Sol se consorciasse
com a Lua, e se escravizasse
ao seu poder sedutor,
a Lua perdia o encanto
de sua eterna poesia,
e o Sol, perdendo a energia,
talvez perdesse o calor!
E o Sol, perdendo o vigor,
o mundo se acabaria!!

Pois se o Sol é que irradia
a vida, a luz e a alegria,
a Lua, em sua nobreza,
a Lua, sendo a poesia,
é o coração da tristeza,
é a glória da natureza,
é o Sol da melancolia!!

* * *

SENHORES! Em conclusão!
Se o Sol simboliza a ciência,
e a Lua, — a Religião,
devemos sempre saudá-los,
o Sol, com uma continência,
a Lua, com uma oração!

AGORA, Chico Azulão,
tempera a tua viola,
e, numa improvisação,
dize tudo o que tu pensas
do Sol, o amante da Lua,
e da Lua, o seu condão.

Tem a palavra o violeiro,
o cantador do sertão.

 

O último verso do poeta foi saudado por uma “fu­zilaria” de palmas! A orquestra das violas e violões rompeu na aleluia de um “choro” tão sugestivo que os próprios instrumentos pareciam aplaudir o hino angélico do bardo! Houve até quem visse a imagem do Sol no Poente, saudando a Lua! E a Lua, — o cora­ção da Noite — parecia ter explodido num dilúvio de flores, que eram as estrelas, cintilando no alto céu do sertão brasileiro!


 

FALA CHICO AZULÃO

 

SEU doutô! Eu lhe agaranto
que inté mêrmo o Só e a Lua
lhe dava toda rézão,
uvindo váíncê faze
esta linda falação!

Na sua comparação,
váíncê diz que o Só é hôme
e hôme macho não trocêa!
E diz que a Lua é muié
e muié fême varêa!

Agora eu tombém lhe digo
que a Lua não tem juízo
e sendo ermã da muié,
já tem de mêno uma veia!

O Só nunca andou de noite,
mas a Lua anda de dia!
Anda de dia e parece
que ela vem d’arguma orgia!...

Vasmincê disse que a Lua,
quando se osênta da gente,
vai atraz d’outro praneta!
Váíncê tá munto enganado!
Ela vai mais é pras farra!
vai farriá cum os cometa!

Pru via disso ela vórta
ansim magrinha e tão feia,
pra í de novo engordando,
inté ficá Lua cheia!

A Lua não tem rejume!
Lua é muié! Varêa!

Eu não gosto de muxice,
nem falo da vida aleia!
Mas pruque ela vai fugindo,
quando engorda e fica cheia!!?

Vasmincê creia ou não creia,
mas aquilo é malandrage,
­e aquilo tem uma históra
e uma históra munto feia!

O Só tá sempe cum a gente,
tá sempe fixe e na hora!
A Lua, cumo praneta,
quando lhe dá na veneta,
bate o arco e dá o fóra!

E aquelas mancha da cara,
tombém tem a sua históra!

Mas eu não lhe conto nada,
pruque eu não sou faladô!
Vamo assuntá noutras coisa,
que é mais mió, sim, sinhô!

Pur inzempro: eu tenho visto
que o fenômico do icripe
é cumo váíncê contou.
A Lua vem, vem chegando!
Já tá pertinho!... Chegou!
Mas quando chega na hora
que o Só vae bejá a Lua,
e a onça vae bebê água,
gorogotó! Encrencou!
Ela dá um faniquito,
varêa, muda de cô,
e o Só fica c’uma cara
de quem viu e não porvou.

Mas o Só sabe que a Lua
cumo é fia de costela,
tombém podia’ sê fia
dum jueio, uma canela.

E eu vou dizê uma coisa
que vasmincê se esqueceu:
— quando a Lua tá redonda,
parece a maçã da Eva,
que, cum perdão da palavra,
o bobo do Adão comeu!
E pru maió calamô,
Adão, que táva cum fome,
comeu a fruta e gostou.

Se não tivesse gostado,
os hôme não táva agora
pagando tantos pecado!

Mas a Lua é orguiosa,
é cabeçuda, é teimosa,
e sabe que é desejada!

A onça namora a Lua,
mas ela namora tudo,
pruque não gosta de nada!
Parece inté Madalena,
que ante de vê Jesú Cristo,
andava munto sestrosa,
cum a cabecinha virada!
Cumo ela é rica e xuntosa,
de tudo faz caçoada.

Pruque é que a Lua caçôa,
do Má, cumo faz cum o Só?!
É pruque chêra a suó?
Pruque tem gosto de sá?
Mas não é farta de banho!
É de munto trabaiá!

O Má é um cabra veiáco!
É farso! É máu! É crué!
Mas não farta cum a palavra,
quando é hora da maré!

Pôde o Má sê assassino!
Sê um Antonio Sirvino!
Póde sê um Lampeão!
Abasta que veje a Lua,
pra se vê que o cabra macho
tem arma e tem coração!

E o coração da muié,
Seu doutô, onde é que tá?

Iscute! Eu vou lhe ixpricá!

Váíncê tá vendo a lagoa
daquela baxa? Aculá?
Óie pro fundo das água,
que logo váíncê verá
a cara da sua cara lá,
no fundo, a lhe ispiá!

Fique lá o dia intêro,
que a cara não sae de lá!
Váincê se rindo, ela ri!
Váíncê chorando, ela chora!

Mas se váíncê vae-se embora,
duma vez, pra não vortá,
a cara da sua cara
pra sempre se assumirá!

O que ela fez cum o sinhô,
que sabe lê, que é doutô,
faz, cum a mêrma catimbôa,
cum quarqué um sabagante,
cum o prémêro, que vinhé!

Apois aquela lagoa
é o coração da muié!

Vasmincê disse que o Rio
vae caminhando, contente,
quando leva dento dele,
a Lua, a sua paxão!
Mas o Rio é um bestaião!

Apois o Rio inguinóra
que ela tá fazendo fita,
fazendo dele um ispêio,
pra vê se ela tá bonita!

A Lua méxe cum tudo!
Méxe cum os doido, cum os louco,
méxe cum o tempo, cum as pranta,
cum as criancinha nascida,
cum as espinhela caida
das muié, e eu não lhe minto,
se lhe dissé que inté mêrmo
ela méxe cum as galinha,
quando tá tirando os pinto!!!

Inda que má lhe pregunte:
esse Bitôve, esse musgo,
que fez a musga pra ela,
seria mió que o Chico,
que só cantava nas corda
pra Mariquinha Pinguéla,
e que ao despois se casou-se,
e a muié deu de canela?!

Coisa de musga e de verso
pras muié não tem sentido!
A Lua qué uma estrela
e a muié qué um vestido!
Váíncê não dê nada disso,
e leve fazendo verso,
que tudo é tempo perdido!

Maginando nestas coisa,
tive sempre um pensamento:
— eu penso que o Só e o Má
devia sê cumo o Vento.

O Vento é um fecha-bodéga,
que a gente sente na gente,
mas não se vê, nem se pega!

E pra falá cum crarêza,
eu lhe digo cum franqueza
que o Vento é meu érmão gemeo!
E cumo lá diz o outro:
um vagabundo, um boêmio!

Ele anda de noite e dia
passeando pulas cidade,
vadiando pulos vargedo,
no meio das mataria.

Assopra e faz rí as água
das lagoa e dos regato.
Quando avôa, de mansinho,
vae, de mansinho, brincando
cum as fôia verde dos mato.

Se pássa pul’um jardim,
entra, e méxe c’uma rosa!...
Bêja a fulô mais chêrosa!
Roda em redó dum jasmim!

Vira despois jardinêro!
Vae de cantêro em cantêro!
E sae chêrando a alecrim!!

Se tá molengo e cansado,
vae-se deitá, refrescado,
na rede dos arvoredo!
Dróme e sonha, pruque o Vento
sabe de munto segredo!
Acorda de minhã cedo,
se de noite não ventou!
E acorda ainda chêroso,
apois quanta sáia nova
e quanto vestido novo
o Vento não levantou!!

Se tá fazendo calô,
toma banho nas lagoa,
e vae avoando, atôa,
varando os mato orvaiado,
e outras vez, disimbestado,
numa disimbestação,
rancando as fôia das árve,
que fica, de pé, chorando,
vendo as fôia, em disparada,
rolando pulas estrada,
pulas arêa do chão!

O Vento qué liberdade!
Qué vivê sempe à vontade!
Não tem tempo, não tem hora!
Quando ele qué, ele apára,
quando não qué, vae-se embora!
Ele mora em toda parte,
mas ninguém sabe onde mora.

Não é só cum os inocente
que o Vento se azanga e isturra!
Quando o Má vira valente,
e qué jogá capoêra,
ele dá-lhe cada surra,
que não é de brincadêra!

Pois, quando o Vento se dana,
hôme, Terra, Só e Má,
tudo estremece, pensando
que o mundo vae-se acabá!!

Os hôme tem munta prosa,
mas quando o Vento truveja
e cumeça a istoncerá,
os hôme fica tremendo,
cumo as água do riacho,
quando o Vento vae fazendo
as água se arripiá!

Tem dia que a gente pensa
que o Vento tá xumbregado,
ou, entonce, indoideceu!
E o Vento, quando se atreita,
o Vento só arrespeita
Deus e São Bartomeu!

Seu doutô, eu não lhe juro,
pruque nunca fui judeu!
Mas porém, às vez, o Vento
fica tão manso e mimoso,
e (com perdão da palavra)...
tão fresco e tão não-sei-quê,
que a gente fica pensando,
fica banzando e mardando
que o vento ansim, tão dengoso,
vira muié... e outra coisa
que eu não lhe devo dizê!!!!.

Mas vasmincê me discurpe
esta minha falação,
pruque o vento é sempe o Vento,
— sêje brisa ou furacão!

Cumo farrista, é vuluve!
Quando não qué tá no baxo,
vae prô céu, brincá cum as nuve!

Faz duma nuve um brinquedo,
um carnerinho, um gatinho,
um bicho que mete medo,
prá despois dismanchá tudo,
e fazê outros brinquêdo!

O cabra é inguinorante,
não sabe lê, mas faz coisa
que ninguém nunca pensou!

Quando ele garra uma nuve
e faz cum a nuve as image
que os artista faz no mármo,
o Vento vira iscurtô!

Pintando, cumo ele pinta,
cum a cô de todas as tinta
do Só, nascendo ou morrendo,
o Vento vira pintô!

De pintô vira poeta,
e prô Vento sê poeta,
abasta que o vento veje
um jardim cheio de frô!

E quando, entonce, arreméxe
nos matagá rebolêro,
na corôa dos coquêro,
nas fôia dos bambuêro,
nas árve dos çumitéro,
nos cipreste gemedô,
ele canta e toca musga,
pruque é musgo e cantadô!

Faz tudo que ele deseja!
O vento inté toca sino,
e reza, quando ele passa
de noite, pul’uma ingreja!

Mas porém, o vagabundo
só qué vivê prá gozá!
O vento não qué casá!
Vendo a frô, chóra, namora,
bêja, abraça e às vez disfróra,
mas dêxa a frô no lugá,
pruque ele sabe que ainda
tem munta frô que bêjá!

O Vento sabe que é macho,
e o macho é mais do que a fême,
e eu vou já dizê pruque é: —
toda muié qué sê hôme,
mas eu nunca vi um hôme
que quisesse sê muié!

E quando um hôme deseja
sê muié, já não é hôme!...
É hôme perequêté...

 

Neste ponto, o poeta sertanejo, notando que o au­ditório feminino estava visivelmente “carregado”, e receando uma tremenda vaia, olhou para a Lua, ficou alguns momentos pensativo e, levantando-se, como tocado por uma vara mágica, recomeçou, com ênfase, a sua interrompida improvisação.

 

Mas, Seu doutô, este mundo
foi munto bem maginado!
Quando Deus fez estas coisa,
já fez de caso pensado!
Vasmincê disse uma coisa
que eu fiquei imprensionado!

Deus não qué que o Só se case,
não qué vê o Só casado!
Qué vê o Só padecendo
e a Lua sempe trazendo
o Só de canto chorado!

E agora eu tombém lhe digo
que eu já tôu indiguinado
de dizê tanta mardade!

Se a muié faz certas coisa,
não é pru sua vontade!
Nós sabêmo que ela é boa!
Tudo quanto é catimbôa
que os hôme diz, de ruindade,
as pobrezinha perdôa!

Essa históra da lagoa,
Seu doutô, não é verdade!
O hôme é que se atreiçôa!
Apois, se o hôme ispiasse
somentes numa lagoa,
e junto dela ficasse
dia e noite, noite e dia,
de sentinela e de ispia,
a cara do discarado
nunca mais de lá saía!

Mas em todas as lagoa
de água limpa ou chavascá,
o hôme qué vê a cara!
O hôme qué ispiá!
E vasmincê bem me entende
adonde eu quero chegá!

Eu falei daquelas mancha
da Lua, cumo se fosse
uma coisa munto feia
de não se podê falá!

Mas porém a minha língua
é que tá cheia de mancha,
pra manchá, pra imporcaiá!

Aquelas mancha nevuenta
que ela tem dento da cara,
não é nada de cabórge!

É um Santo munto falado,
que tá lá dento da Lua,
no seu cavalo amuntado,
e o Santo chama — São Jorge!

* * *

Se a carapuça lhe serve,
seu doutô não arrepare,
pruque a gente diz as coisa,
quando as coisa é naturá!

O hôme é um galo que pensa,
irmão do galo de pena,
do galo irracioná!
E taliquá! Taliquá!

O galo tá no terrêro!
Ele tá no seu quintá!
O diabo tá cum as galinha,
cum as franga mais bonitinha
que vasmincê maginá!

Se passá uma galinha
no terrêro da vizinha,
vasmincê logo verá
o raio do iscumungado
dispará, cumo um danado,
atrás da galinha choca,
piôienta e rabujenta,
que inté tá chêrando má!!

E nem ao mêno arrespeita
uma mãe que vae criá!
Seu doutô, o home é um galo!!
É taliquá! Taliquá!

* * *

Inda há pouco, a babujá,
eu disse que o hôme macho
vale mais que a muié fême!
Mas não é! Eu vou porvá!

Nosso Sinhô Jesú Cristo
quando quiz se humanizá,
não pensou em hôme macho,
e nem podia pensá!
Mas quiz tê mãe e mãe virge,
pras muié santificá!
Nasceu em noite de lua,
cumo a vóvó me dizia,
quando contava as históra
na vespra do seu Natá.

Sim! Jesus nasceu de noite,
mas porém morreu de dia!
E quando Jesus morria,
o Só, patrão, se iscundia,
cum vregonha de sê hôme,
cum vregonha de sê macho,
cumo o Juda, que, afiná,
se inforcou numa figuêra,
pruque vendeu Jesú Cristo
pros hôme crucificá!

Seu moço, eu tenho sobrôço,
tenho medo de pecá!!

Mas, pra mim, o Só podia
cantá noutra freguesia
e nunca mais cá vortá!!

Pra que serve o Só de dia?!!

É pra nós se amofiná!!
Ante fosse sempe noite,
mas uma noite de lua,
pra nunca mais se acabá!!

Meu patrão: o Só e o Má
tem de tá sempe a pená,
vivendo nesse turmento,
pruque é sorte, é sina sua!!

Eu queria sê o Vento,
mas porém, ante eu queria
sê muié, se eu fosse a Lua!
A Lua é mãe da Sôdade,
cumo disse Seu doutô!

A Lua tudo consola!
A Lua é cumo a viola,
que é o insturmento do Amô!

Se a Lua, patrão, se a Lua
tem tanta, tantas estrela,
quem nem póde sê contada,
é pruque Deus viu que a Lua,
sendo muié, deve sempe
andá no céu enfeitada.

Quando eu vou tocá num samba,
vou discarço, na embolada!
Vou cum a roupa arremendada,
pruque de chêro e de enfeite
os hôme não nicissita!

Mas porém, minha viola
vae sempe nova e bonita!
Não vae crivada de estrela,
mas vae crivada de fita!

Patrão, se as muié se enfeita,
não é pru via dos hôme!
É só pra fazê pirraça
pras outra, que se consome!
Apois, mostrando umas fita,
não há caboca bonita
que vendo as fita, não cáia!
Apois se eu levo pras festa
minha violinha enfeitada,
é só pra fazê ciumada
nas “viola” que veste sáia!

Vou cum a roupa isfarrapada,
mas levo as fita e os enfeite
cá dento do coração!
O coração tá nos dedo,
que faz a improvisação!

Mas porém, o pinho, a viola,
que geme e canta cum a gente,
sendo a nossa namorada,
acompanhando a canção,
deve andá sempe enfeitada,
pruque é muié, meu patrão!

Quem foi esse mafião
que disse um dia, patrão,
que a Lua no céu não sente,
quando as cabôca inocente,
chêrando a fogo queimado,
pisa o coração da gente,
sapateando um baião?!

Quem foi que disse, patrão?!

Serra Verde, Zé Pinhão,
Bêra d’Agua, Bacurau,
Zé Pelado, João Mingau,
Mané Três Pote, Azulão,
o Chico Orêia de Pau,
e mais esse Seu Bitôve,
esse musgo de valô,
cantáro sempe pra Lua,
que foi sempe a cumpanhêra
desses grande tocadô!

Apois, quando a Lua escuta
uma viola acagibada,
fica no céu aparada,
fica besta, fica inxúa,
cumo a onça, oiando a Lua,
cumo disse o Seu doutô!

A Lua tem sentimento
e é feita toda de amô!

Ela não é cumo o vento,
que qué sê sinhô das pranta,
e qué ficá cum o dereito
de disfoiá toda frô!

Não é tombém cumo o Rio,
que, cum uma parte de sonso,
é mau, é farso e treidô!
Não é tombém cumo o Só,
que mata as pranta viçosa,
que a Terra, a mãe carinhosa,
cum tanto mimo criou!

Não é tombém cumo o Má,
que, sendo da mêrma laia,
qué sê o dono das praia,
que ameaça com furô!
Ela é boa, cumo a Terra,
que gosta tanto do Só,
mas ele não gosta dela,
pruque a Terra não é bela,
cumo a Lua, não, sinhô!

Se o Só lhe dá luz de dia,
não é lá pruque ele quêra!
É pruque Deus ordenou.

Mas o pió do berrêro
é que o hôme arrizinguêro
qué vencê o mundo intêro,
e qué de tudo dá cabo!
Mas eu tenho pena dele,
que o hôme é um pobre diabo!

Pra que tanto ispiloncá,
se a muié, garrando nele,
faz cum ele a mêrma coisa
que o gato faz cum o ratinho,
atirando o pobrezinho
daqui pra ali, pra acolá,
inté matá o bichinho
de fazê tanto carinho
e tanto e tanto brincá!!

E aqui lhe digo um segredo,
pras muié não me escutá.
Às vez, eu fico a pensá
que se a Lua se casasse
cum o Só, e se assujeitasse
a dexá de sê rainha,
pra despois se iscravizá,
no fim de duas sumana,
o Só se disvorciava,
a Lua se avacaiava,
e quando a Lua quisesse
fazê conchavo cum o Má,
o Má, que é cabra escovado,
já não tando apaxonado,
intrasse a fazê prépósta
pra Lua vivê cum ele,
inté que o Só falecesse,
e ambos os dois se casá!

Patrão, quando eu fico triste,
eu penso que Deus existe,
e havendo Deus, eu tôu certo
que Ele paga o bem cum o bem!

Apois, cumo diz o outro,
Deus é a mais grande riqueza,
mas é a mais grande pobreza,
pruque dá tudo que tem!

Deus fez o mundo ansim mêrmo!
Enquanto um triste vae indo,
outro alegre vem chegando!
O pobre véve curtindo!
O rico véve gozando!
Váíncê vêje a natureza:
a prantação tá se rindo,
quando a chuva tá chorando!

Mas porém, se no outro mundo
não tem muié, nem tem Lua,
nem vióla, nem violêro,
nem noite, pra se cantá,
vou pedí pro meu covêro
dexá dois buraco aberto,
na cova que me enterrá,
pra de noite, à toda hora,
botá minhas mão de fóra,
e alegrá o çumitéro,
tocando a minha viola
toda a noite de luá!!

E pra tudo triminá,
vasmincé vae dá licença
pra mim cantá na viola
umas trova de istruvio
que eu cantei num desafio
cum o Manduca Sabiá,
numa noite de São Pedro,
xaquaiando uma caboca,
numa festa do Arraiá!

“Nosso Sinhô quando andava
“pulos deserto, a rezar,
“gostava de uví São Pedro
“na viola puntiá!

“São Pedro diz que a viola
“foi feita, num desafio,
“da canoa em que ele andava
“cum Cristo, a pescá no rio!

“Não foi feita da canoa,
“mas porém, da sua cruz!
“A viola ainda sofre
“tudo o que sofreu Jesus!

“Quando Deus fez a viola
“e cumeçou a cantá,
“a vióla gemia tanto,
“que Deus se pôs-se a chorá!

“Deus é o Rei dos violêro,
“quando canta o seu amô,
“nas corda santa da lua,
“que é a viola do Sinhô!”

** *

E agora, patrão, agora,
que a Lua vem apontando,
e o galo já tá cantando
seu canto de alamiré,
eu vou afiná meu pinho
pula cantiga do galo,
e vou-me embora cum a Lua,
pruque outra Lua me espera
na porta do meu mucambo,
na minha véia tapéra,
— a Rita do Macujé!

Mas uma coisa eu lhe juro,
e juro pru minha fé: —
póde a muié, póde a Lua
sê tudo que os hôme quêra,
tudo que os hôme quisé!

Sempre a Lua há de sê Lua!
E a muié, sempe a muié!

DEPOIS dos últimos a­plausos, coroando o final do poema sertanejo, o violeiro, a pedido geral, cantou o “Luar do Sertão”, acompanhado por todo o auditório, que inundava o amplo terreiro da Fazenda. E assim terminou a festa daquela noite memorável, que ficou sendo chamada em todo o ser­tão — A noite do Sol e da Lua.


NOTA DE COPYRIGHT

 

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Ela não menciona, entre os Direitos Morais do Autor (Artigo 24) o mais importante dentre eles, como qualquer autor sabe: o de ter sua obra divulgada, em vida e, principalmente, após sua morte.

Caso haja, nesta publicação, a violação de qualquer direito patrimonial (o que não acreditamos, visto a obra não ter sido republicada por mais de 60 anos e a presente edição estar sendo disponibilizada com cessão pública, que aqui fica declarada, de todo e qualquer direito patrimonial sobre ela), o detentor legítimo de tal direito, ou quem tiver conhecimento de algum, está cordialmente convidado a enviar seu e-mail para livros@ebooksbrasil.com para que o presente título seja prontamente retirado da apreciação pública e possamos informar aos apreciadores da obra de Catulo onde poderão adquiri-la.


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