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A CIDADE ANTIGA

Fustel de Coulanges

Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros

www.eBooksBrasil.org


A Cidade Antiga
Numa-Denys Fustel de Coulanges (1830-1889)

Título original
La Cité Antique - Étude sur Le Culte, Le Droit, Les Institutions de la Grèce et de Rome

Tradução
© 2006 Frederico Ozanam Pessoa de Barros

Versão para eBook
eBooksBrasil

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
Editora das Américas S.A. - EDAMERIS, São Paulo, 1961

© 2006 — Numa-Denys Fustel de Coulanges


ÍNDICE

Prefácio
LIVRO PRIMEIRO: Antigas Crenças
Capítulo I: Crenças a respeito da alma e da morte
Capítulo II: O culto dos mortos
Capítulo III: O fogo sagrado
Capítulo IV: A religião doméstica
LIVRO SEGUNDO: A Família
Capítulo I: A religião foi o princípio constitutivo da família antiga
Capítulo II: O casamento
Capítulo III: Continuidade da família. Proibição do celibato. Divórcio em caso de esterilidade. Desigualdade entre filho e filha
Capítulo IV: Adoção e emancipação
Capítulo V: O parentesco, o que os romanos entendiam por agnação
Capítulo VI: O direito de propriedade
Capítulo VII: Direito de sucessão:
1.° — Natureza e princípio do direito de sucessão entre os antigos
2.° — O filho herda, e não a filha
3.° — Da sucessão colateral
4.° — Efeitos da emancipação e da adoção
5.° — O testamento, a princípio, não era conhecido
6.° — Antiga indivisão do patrimônio
Capítulo VIII: A autoridade na família:
1.° — Princípio e natureza do poder paterno entre os antigos
2.° — Enumeração dos direitos que compunham o poder paterno
Capítulo IX: A antiga moral da família
Capítulo X: A Gens em Roma e na Grécia:
1.° — O que os escritores antigos nos dão a conhecer a respeito da gens
2.° — Exame de algumas opiniões emitidas a fim de explicar a gens romana
3.° — A gens é a família mantendo ainda sua organização primitiva e sua unidade
4.° — Extensão da família: a escravidão e a clientela
LIVRO TERCEIRO: A Cidade
Capítulo I: A fratria e a cúria. A tribo
Capítulo II: Novas crenças religiosas:
1.° — Os deuses da natureza física
2.° — Relação dessa religião com o desenvolvimento da sociedade humana
Capítulo III: Forma-se a cidade
Capítulo IV: A cidade
Capítulo V: O culto do fundador. A lenda de Enéias
Capítulo VI: Os deuses da cidade
Capítulo VII: A religião da cidade:
1.° — Os banquetes públicos
2.° — As festas e o calendário
3.° — O censo e a lustração
4.° — A religião na assembléia, no senado, no tribunal e no exército, o triunfo
Capítulo VIII: Os rituais e os anais
Capítulo IX: Governo da cidade. O rei:
1.° — Autoridade religiosa do rei
2.° — Autoridade política do rei
Capítulo X: O magistrado
Capítulo XI: A lei
Capítulo XII: O cidadão e o estrangeiro
Capítulo XIII: O patriotismo. O exílio
Capítulo XIV: O espírito municipal
Capítulo XV: Relações entre as cidades. A guerra. A paz. A aliança dos deuses
Capítulo XVI: As confederações. As colônias
Capítulo XVII: O romano. O ateniense
Capítulo XVIII: Da onipotência do estado. Os antigos não conheceram a liberdade individual
LIVRO QUARTO: As Revoluções
Capitulo I — Patrícios e clientes
Capítulo II — Os plebeus
Capítulo III — Primeira revolução:
1.° — A autoridade política é tirada aos reis
2.° — História dessa revolução em Esparta
3.° — A mesma revolução em Atenas
4.° — A mesma revolução em Roma
Capítulo IV — A aristocracia governa as cidades
Capítulo V — Segunda revolução. Transformações na constituição das famílias. Desaparece o direito de primogenitura. A gens se desmembra
Capítulo VI — Os clientes se libertam:
1.° — O que era, a princípio, a clientela, e como se transformou
2.° — A clientela desaparece de Atenas. A obra de Sólon
3.° — Transformação da clientela em Roma
Capítulo VII — Terceira revolução. A plebe passa a fazer parte da cidade:
1.° — História geral dessa revolução
2.° — História dessa revolução em Atenas
3.° — História dessa revolução em Roma
Capitulo VIII — Modificações no direito privado. O código das Doze Tábuas. O código de Sólon
Capítulo IX — Novo princípio de governo. O interesse público e o sufrágio
Capítulo X — Tenta-se constituir uma aristocracia da riqueza. Estabelecimento da democracia. A quarta revolução
Capítulo XI — Regras do governo democrático. Exemplo da democracia ateniense
Capítulo XII — Ricos e pobres. Desaparece a democracia. Os tiranos populares
Capítulo XIII — Revoluções de Esparta
LIVRO QUINTO: Desaparece o regime municipal
Capítulo I — Novas crenças. A filosofia muda as normas da política
Capítulo II — A conquista romana:
1.° — Algumas palavras sobre as origens e a população de Roma
2.° — Primeiros progressos de Roma (753-350 antes de Cristo)
3.° — De que modo Roma conquistou o império (350-140 antes de Cristo)
4.° — Roma destrói por toda parte o regime municipal
5.° — Os povos vencidos entram sucessivamente a fazer parte da cidade romana
Capitulo III — O Cristianismo muda as condições de governo


A CIDADE ANTIGA

[imagem]

Fustel de Coulanges


PREFÁCIO

DA NECESSIDADE DE ESTUDAR AS MAIS VELHAS CRENÇAS DOS ANTIGOS PARA CONHECER SUAS INSTITUIÇÕES

 

É nosso propósito demonstrar aqui os princípios e regras que governaram as sociedades grega e romana. Reunimos em um mesmo estudo romanos e gregos porque esses dois povos, ramos de um mesmo tronco, falando idiomas originários de uma mesma língua, possuíam também um fundo de instituições comuns, e atravessaram uma série de revoluções semelhantes.

Cuidaremos, sobretudo, de pôr em evidência as diferenças radicais e essenciais que distinguem de modo definitivo esses povos antigos das sociedades modernas. Nosso sistema educacional, que nos obriga a viver desde a infância entre gregos e romanos, habitua-nos a compará-los continuamente conosco, a julgar sua história pela nossa e a explicar nossas revoluções pelas suas. O que ainda conservamos deles, e o que eles nos legaram, faz-nos acreditar que se assemelhavam a nós; temos dificuldade em considerá-los como povos estranhos; quase sempre não vemos neles senão a nós mesmos, o que deu origem a muitos erros. Quando estudamos esses povos, antigos através das opiniões e fatos de nossa época, quase sempre nos enganamos.

Ora, os erros nessa matéria são perigosos. A idéia que se tem da Grécia e de Roma muitas vezes perturbou várias de nossas gerações. Observando mal as instituições da cidade antiga, quiseram fazê-las reviver entre nós. Fez-se idéia errada da liberdade entre os antigos, e somente por isso a liberdade entre os modernos foi posta em perigo. Nossos últimos oitenta anos demonstraram claramente que uma das grandes dificuldades que se opõem à marcha da sociedade moderna é o hábito de ter sempre diante dos olhos a antiguidade greco-romana.

Para conhecer a verdade a respeito desses povos antigos, deve-se estudá-los sem pensar em nós, como se nos fossem completamente desconhecidos, com o mesmo desinteresse e liberdade de espírito com que estudaríamos a Índia antiga ou a Arábia.

Encaradas desse modo, a Grécia e Roma apresentam-se-nos com um caráter absolutamente inimitável. Nada do que é moderno lhes é semelhante. E no futuro nada poderá ser-lhes semelhante. Tentaremos, pois, demonstrar as regras que governaram essas sociedades, e constataremos facilmente que essas regras não podem mais dirigir a humanidade.

Qual a razão disto? Por que as condições de governo dos homens não são mais as mesmas de outrora? As grandes transformações, que de tempos em tempos aparecem na constituição das sociedades, não podem ser efeito do acaso, ou apenas da força. A causa que as provoca deve ser poderosa, e essa causa deve estar no próprio homem. Se as leis da associação humana não são mais as mesmas de antigamente, é porque apareceu no homem alguma mudança. Com efeito, parte de nosso ser modifica-se de século em século: nossa inteligência. Ela está sempre em movimento, quase sempre em progresso, e por sua causa nossas instituições e leis estão sujeitas a transformações. O homem de hoje não pensa mais o que pensava há vinte e cinco séculos, e é por isso que não se governa mais como outrora.

A história da Grécia e de Roma é testemunha e exemplo da estreita relação que há entre as idéias da inteligência humana e o estado social de um povo. Observai as instituições dos antigos, sem atentar para suas crenças; achá-las-eis obscuras, bizarras, inexplicáveis. Por que havia patrícios e plebeus, patrões e clientes, eupátridas e tetas, e de onde vêm as diferenças nativas e indeléveis que encontramos entre essas classes? Que significam essas instituições lacedemonianas, que nos parecem tão contrárias à natureza? Como explicar essas bizarrias únicas do antigo direito privado: em Corinto e em Tebas, proibição de vender propriedades; em Roma e em Atenas, desigualdade na sucessão entre irmão e irmã? Que é que os jurisconsultos entendiam por agnação ou gens? Por que essas revoluções no direito e na política? Que patriotismo singular era aquele que apagava todos os sentimentos naturais? Que se entendia por liberdade, da qual não cessavam de falar? Como é possível que instituições, que se acham tão afastadas de tudo o que podemos imaginar, possam hoje restabelecer-se e reinar por tanto tempo? Qual é o princípio superior que lhes deu autoridade sobre o espírito dos homens?

Mas, à frente dessas instituições e dessas leis, colocai as crenças, e os fatos tornar-se-ão claros e sua explicação tornar-se-á evidente. Se, considerando as primeiras idades dessa raça, isto é, a época em que fundou suas instituições, observamos a idéia que fazia então da criatura humana, da vida, da morte, da segunda existência, do princípio divino, percebe-se íntima relação entre essas opiniões e as regras antigas do direito privado, entre os ritos que se originaram dessas crenças e as instituições políticas.

A comparação das crenças e das leis mostra que a família grega e romana foi constituída por uma religião primitiva, que igualmente estabeleceu o casamento e a autoridade paterna, fixando as linhas de parentesco, consagrando o direito de propriedade e de sucessão. Essa mesma religião, depois de estabelecer e formar a família, instituiu uma associação maior, a cidade, e predominou sobre ela como o fazia na família. Dela se originaram todas as instituições, como todo o direito privado dos antigos. Da religião a cidade tirou seus princípios, regras, costumes e magistraturas. Mas com o tempo essas velhas crenças foram modificadas, ou desapareceram por completo, e o direito privado e as instituições sofreram idêntica evolução. Surgiu então uma série de revoluções, e as transformações sociais acompanharam regularmente as transformações da inteligência.

É necessário, portanto, estudar antes de mais nada a crença desses povos. As mais antigas são as que devemos conhecer melhor, porque as instituições e crenças que encontramos na época áurea da Grécia e de Roma nada mais são que a evolução de crenças e instituições anteriores; é necessário que busquemos as raízes em um passado bem longínquo. As populações gregas e italianas são infinitamente mais velhas que Rômulo e Homero. Foi em época mais antiga, em uma antiguidade que escapa às datas, que se formaram as crenças e se estabeleceram e prepararam as instituições.

Mas que esperanças há de se chegar ao conhecimento desse passado longínquo? Quem nos revelará o que pensavam os homens dez ou quinze séculos antes de nossa era? É possível encontrar-se coisa tão fugidia e esquiva como crenças e opiniões? Nós sabemos o que pensavam os árias do Oriente, há trinta e cinco séculos, e o sabemos pelos hinos dos Vedas, que são seguramente muito antigos, e pelas leis de Manu, mais recentes, mas onde podemos encontrar trechos que datam de épocas muito remotas. Mas onde estão os hinos dos antigos helenos? Eles, como os itálicos, possuíam cantos antigos e velhos livros sagrados; mas de tudo isso nada chegou até nós. Que lembrança ficou para nós dessas gerações que não nos deixaram nenhum texto escrito?

Felizmente, o passado nunca morre por completo para o homem. O homem pode esquecê-lo, mas continua sempre a guardá-lo em seu íntimo, pois o seu estado em determinada época é produto e resumo de todas as épocas anteriores. Se ele descer à sua alma, poderá encontrar e distinguir nela as diferentes épocas pelo que cada uma deixou gravada em si mesmo.

Observemos os gregos dos tempos de Péricles e os romanos dos tempos de Cícero: levam consigo marcas autênticas, e o vestígio indubitável de séculos mais remotos. O contemporâneo de Cícero — falo sobretudo do homem do povo — tem a imaginação cheia de lendas; essas lendas lhe vêm de tempos antigos, e são testemunhas de seu modo de pensar. O contemporâneo de Cícero serve-se de uma língua cujas raízes são extremamente antigas; essa língua, exprimindo o pensamento de épocas passadas, foi modelada de acordo com esse modo de pensar, guardando o cunho que o mesmo transmitiu de século para século. O sentido íntimo de uma raiz pode às vezes revelar uma antiga opinião ou um antigo costume; as idéias transformaram-se, e os costumes desapareceram, mas ficaram as palavras, imutáveis testemunhas de crenças desaparecidas. O contemporâneo de Cícero obedece a determinados ritos nos sacrifícios, nos funerais, nas cerimônias nupciais; esses ritos são mais antigos que ele, e a prova é que não correspondem mais às suas crenças. Mas, olhando de perto os ritos que observa e as fórmulas que recita, encontrar-se-ão vestígios do que os homens acreditavam quinze ou vinte séculos atrás.


LIVRO PRIMEIRO
ANTIGAS CRENÇAS


CAPÍTULO I

CRENÇAS A RESPEITO DA ALMA E DA MORTE

 

Até os últimos tempos da história da Grécia e de Roma, vemos persistir entre o vulgo um conjunto de pensamentos e costumes que, certamente, datavam de época muito remota, pelos quais poderemos conhecer quais opiniões o homem tinha a princípio a respeito da própria natureza, da alma e sobre o mistério da morte.

Quanto mais nos aprofundamos na história da raça indo-européia, na qual se ramificaram os povos gregos e itálicos, constatamos que essa raça sempre pensou que depois desta vida breve tudo acaba para o homem. As mais antigas gerações, muito antes que aparecessem os filósofos, acreditaram em uma segunda existência depois da atual. Encararam a morte não como dissolução do ser, mas como simples mudança de vida.

Mas em que lugar e de que maneira se desenrolava essa existência? Acreditavam que o espírito imortal, uma vez livre do corpo, ia animar a outro? Não; a crença na metempsicose jamais tomou raízes no espírito das populações greco-romanas; também não é a mais antiga opinião entre os árias do Oriente, pois os hinos dos Vedas contrariam essa crença. Acreditava-se então que o espírito ia para o céu, para a região da luz? Nem isso; o pensamento segundo o qual as almas entravam em uma morada celeste é de época relativamente recente no Ocidente; a morada celeste era considerada apenas recompensa para alguns grandes homens e benfeitores da humanidade. De acordo com as mais antigas crenças dos itálicos e dos gregos, a alma não passava sua segunda existência em um mundo diferente do em que vivemos; continuava junto dos homens, vivendo sobre a terra(1).

Acreditou-se até por muito tempo que durante essa segunda existência a alma continuava unida ao corpo. Nascendo junto a ele, a alma não se separava, mas fechava-se com ele na sepultura.

Por mais antigas que sejam essas crenças, delas nos ficaram testemunhos autênticos. Esses testemunhos são os ritos fúnebres, que sobreviveram a essas crenças primitivas, mas que certamente haviam nascido ao mesmo tempo, servindo para que as compreendamos melhor.

Os ritos fúnebres mostram claramente que quando colocavam um corpo na sepultura acreditavam enterrar algo vivo. Virgílio, que sempre descreve com tanta precisão e escrúpulo as cerimônias religiosas, termina a narração dos funerais de Polidoro com estas palavras: “Encerramos a alma do túmulo.” — Idêntica expressão encontra-se em Ovídio e em Plínio, o Jovem; não que elas correspondessem à idéia que esses escritores tinham da alma; mas, desde tempos imemoriais, essa crença perpetuara-se na linguagem, atestando antigas crenças populares(2).

Era costume, no fim da cerimônia fúnebre, chamar três vezes a alma do morto pelo nome do falecido, desejando-lhe vida feliz sobre a terra. Diziam-lhe três vezes: Passe bem. — E acrescentavam: Que a terra lhe seja leve(3) — tanta era a certeza de que a criatura continuava a viver sobre a terra, conservando a sensação de bem-estar ou de sofrimento. No epitáfio declarava-se que o morto ali repousava, expressão que sobreviveu a essas crenças, e que de século em século chegou até nós. Nós usamos ainda este costume, embora ninguém hoje pense que um ser imortal possa repousar em um túmulo. Mas antigamente acreditava-se tão firmemente que ali vivia um homem, que nunca deixavam de enterrar junto com o corpo objetos que supunham ser-lhe necessários, como vestidos, vasos e armas(4). Derramava-se vinho sobre o túmulo, para matar-lhe a sede; levavam-lhe alimentos, para saciar-lhe a fome(5). — Degolavam-se cavalos e escravos, pensando que essas criaturas, sepultadas juntamente com os mortos, prestar-lhes-iam serviços dentro do túmulo, como o haviam feito durante a vida(6). Depois da tomada de Tróia os gregos retornam a seu país; cada um deles leva uma bela escrava, mas Aquiles, que está morto, também exige uma escrava, e lhe entregam Polixena(7).

Um verso de Píndaro guardou-nos curioso vestígio desse pensamento das gerações antigas. Frixos havia sido constrangido a deixar a Grécia, fugindo até a Cólquida, onde morreu. Mas, embora morto, desejava retornar à Grécia. Apareceu, portanto, a Pélias, e lhe ordenou que fosse à Cólquida para de lá trazer sua alma. Sem dúvida essa alma sentia a nostalgia do solo pátrio, do túmulo da família; mas, unida aos restos corporais, não podia deixar sozinha a Cólquida(8).

Dessa crença primitiva derivou-se a necessidade do sepultamento. Para que a alma se mantivesse nessa morada subterrânea, necessária para sua segunda vida, era preciso que o corpo, ao qual permanecia ligada, fosse coberto de terra. A alma que não possuía sepultura não possuía morada, e ficava errante. Em vão aspirava ao repouso, que deveria desejar depois das agitações e trabalhos desta vida; e era obrigada a errar sempre, sob a forma de larva ou de fantasma, sem se deter jamais, e sem receber nunca as ofertas e alimentos de que necessitava. Como era infeliz, logo se tornava perversa. Atormentava os vivos, provocava-lhes doenças, destruía colheitas, assustava-os com aparições lúgubres, a fim de fazer com que dessem sepultura a seu corpo e a si mesma. Daí se originou a crença nas almas do outro mundo(9). Toda a antiguidade estava persuadida de que, sem sepultura, a alma era miserável, e que pela sepultura tornava-se feliz. Não era por ostentação de dor que se oficiavam as pompas fúnebres, mas para repouso e felicidade da alma do morto(10).

Notemos bem que não bastava confiar o corpo à terra. Era necessário ainda obedecer a ritos tradicionais, e pronunciar determinadas fórmulas. Em Plauto encontra-se a história de uma alma penada(11), forçada a andar errante, porque seu corpo fora lançado à terra sem o devido ritual. Suetônio conta que o corpo de Calígula, enterrado antes de se completar a cerimônia fúnebre, fez com que sua alma se tornasse errante, aparecendo a diversas pessoas, até o dia em que o desenterraram, sepultando-o novamente de acordo com as regras(12). Esses dois exemplos demonstram claramente o efeito que se atribuía aos ritos e fórmulas da cerimônia fúnebre. Já que sem eles as almas tornavam-se errantes e apareciam aos vivos, era evidente que tais ritos fixavam-nas e encerravam-nas dentro dos túmulos. E assim como havia algumas fórmulas que possuíam essa virtude, os antigos possuíam outras que produziam efeitos contrários, capazes de evocar as almas, fazendo-as sair momentaneamente de seus sepulcros.

Vê-se claramente, pelos escritores antigos, como o homem era atormentado pelo medo de que, depois de sua morte, não fossem observados os devidos ritos. Essa era uma fonte de inquietudes pungentes(13). Temia-se menos a morte que a privação da sepultura, pois desta última dependia o repouso e felicidade eterna. Não nos devemos mostrar muito surpresos ao ver os atenienses matar os generais que, depois de uma vitória naval, haviam negligenciado a sepultura dos mortos. Esses generais, discípulos dos filósofos, talvez distinguissem a alma do corpo, e como não acreditavam que a sorte da alma estivesse ligada à do corpo, julgaram de pouca importância que um cadáver se decompusesse na água ou na terra. Por isso não desafiaram a tempestade pela vã formalidade de recolher e sepultar seus mortos. Mas a plebe, que, mesmo em Atenas, mantinha-se fiel às antigas crenças, acusou seus generais de impiedade, e condenou-os à morte. Por sua vitória haviam salvado Atenas, mas por sua negligência haviam perdido milhares de almas. Os parentes dos mortos, pensando nos longos suplícios a que estavam condenadas aquelas almas, apresentaram-se ao tribunal vestidos de luto, e pediram vingança(14).

Nas cidades antigas a lei punia os grandes criminosos com um castigo considerado terrível, a privação da sepultura(15). Punia-se desse modo a própria alma, condenando-a a suplício quase eterno.

É necessário observar que entre os antigos estabeleceu-se ainda uma outra opinião a respeito da morada dos mortos. Imaginaram uma região, também subterrânea, mas infinitamente mais espaçosa que o túmulo, onde todas as almas, longe dos corpos, viviam reunidas, penando ou gozando, de acordo com a conduta do homem durante a vida. Mas os ritos fúnebres, como os descrevemos acima, estão manifestamente em desacordo com essas crenças, prova certa de que na época em que foram estabelecidos, não se acreditava ainda na existência do Tártaro ou dos Campos Elísios. A primeira opinião dessas gerações antigas foi que a criatura humana vivia na sepultura, que a alma não se separava do corpo, e que permanecia unida à parte do solo onde os ossos estavam enterrados. Por sua vez, o homem não tinha que prestar nenhuma conta de sua vida anterior. Uma vez sepultado, não esperava nem recompensas, nem suplícios. Opinião certamente primitiva, mas que é a infância da noção sobre a vida futura.

A criatura que vivia debaixo da terra não estava tão livre de sua condição humana para não ter necessidade de alimentos. Assim, em determinados dias do ano, levava-se uma refeição a cada túmulo(16).

Ovídio e Virgílio deixaram-nos a descrição dessa cerimônia, cujo uso conservara-se intacto até seu tempo, embora as crenças já se houvessem transformado. Segundo nos narram, afeitavam-se os túmulos com grandes grinaldas de folhas e flores, ofereciam-se doces, frutas, sal, fazendo sobre a terra libações de leite e vinho, ou mesmo regando-a com o sangue de alguma vítima(17).

Enganar-se-ia muito quem pensasse que essa refeição fúnebre não era senão uma espécie de comemoração. Os alimentos que a família levava eram realmente para o morto, exclusivamente para ele. E isso concluímos pelo seguinte: o leite e o vinho eram derramados sobre a terra do túmulo; um buraco era cavado, a fim de que os alimentos sólidos chegassem até o defunto; se lhe imolavam uma vítima, todas as carnes eram queimadas, para que nenhuma pessoa viva delas participasse; pronunciavam-se certas fórmulas consagradas, para convidar o morto a comer e a beber; se a família inteira assistia à refeição, ninguém tocava nos alimentos; e, por fim, ao se retirarem, os familiares tinham grande cuidado em deixar um pouco de leite e alguns doces em vasos; considerava-se grande impiedade o fato de alguém tocar nessa pequena provisão, destinada às necessidades do morto.

Essas velhas crenças persistiram por muito tempo, e sua expressão ainda se encontra entre os grandes escritores da Grécia: “Derramo sobre a terra do túmulo — diz Ifigênia em Eurípides — leite, mel e vinho, pois só assim podemos contentar os mortos(18).” — “Filho de Peleu — diz Neoptólemo — recebe esta bebida tão grata aos mortos; vem, e bebe este sangue(19).” — Electra faz libações e diz: “A bebida penetrou na terra; meu pai a recebeu(20).” — Eis a prece de Orestes a seu pai defunto: “Ó meu pai, se eu viver, receberás ricos banquetes; mas, se eu morrer, não terás parte nas mesas fumegantes onde os mortos se alimentam(21).” — As sátiras de Luciano atestam que esses costumes subsistiam ainda em seu tempo: “Os homens imaginam que as almas vêm lá debaixo para saborear os manjares que lhes oferecem, que se regalam com o cheiro das iguarias, e que bebem o vinho derramado sobre seus túmulos(22).” — Entre os gregos, diante de cada túmulo havia um local destinado à imolação da vítima e ao cozimento das carnes(23). Os túmulos romanos tinham igualmente sua culina, espécie de cozinha especial, unicamente para uso do morto(24). Plutarco conta que depois da batalha de Platéia, como os guerreiros mortos haviam sido enterrados no lugar do combate, os plateanos se comprometeram a oferecer-lhes cada ano o banquete fúnebre. Em conseqüência, no aniversário da batalha, dirigiam-se em grande procissão, conduzidos pelos primeiros magistrados, à colina sob a qual repousavam os mortos. Ofereciam-lhes leite, óleo, perfumes e imolavam-lhes uma vítima. Quando os alimentos estavam colocados sobre os túmulos, os plateanos pronunciavam uma fórmula mediante a qual chamavam os mortos, convidando-os a que tomassem suas refeições. Esta cerimônia ainda era observada nos tempos de Plutarco que presenciou o sexto centenário dessa comemoração(25). Luciano nos conta qual a opinião que deu origem a todos esses costumes: “Os mortos — escreve ele — alimentam-se dos manjares que colocamos sobre seus túmulos, e bebem o vinho que neles derramamos; desse modo, o morto que nada recebe, é condenado à fome perpétua(26).”

Eis aí crenças antigas, e que nos parecem realmente falsas e ridículas. Contudo, elas exerceram seu império sobre o homem por muitas e muitas gerações. Elas governaram as almas, e logo veremos que tais crenças é que dirigiram as sociedades, e que a maior parte das instituições domésticas e sociais dos antigos nelas tiveram sua origem.

CAPÍTULO II

O CULTO DOS MORTOS

 

Essas crenças logo deram lugar a regras de conduta. Desde que o morto tinha necessidade de alimento e de bebida, pensou-se que era dever dos vivos satisfazer às suas necessidades. O cuidado de levar alimentos aos mortos não foi abandonado ao capricho, ou aos sentimentos mutáveis dos homens; era obrigatório. Estabeleceu-se desse modo uma verdadeira religião da morte, cujos dogmas logo se reduziram a nada, mas cujos ritos duraram até o triunfo do Cristianismo.

Os mortos eram considerados criaturas sagradas(1). Os antigos davam-lhes os epítetos mais respeitosos que podiam encontrar; chamavam-nos de bons, de santos, de bem-aventurados(2). Tinham por eles toda a veneração que o homem pode ter para com a divindade, que ama e teme. Segundo seu modo de pensar, cada morto era um deus(3).

Essa espécie de apoteose não era privilégio dos grandes homens; não se faziam distinções entre os mortos. Cícero afirma: “Nossos ancestrais quiseram que os homens que deixaram de viver fossem contados entre os deuses(4).” — Não era necessário ter sido um homem virtuoso; o mau tornava-se deus tanto quanto o homem de bem; apenas continuava, nessa segunda existência, com todas as más inclinações que tivera na primeira(5).

Os gregos de boa mente davam aos mortos o nome de deuses subterrâneos. Em Ésquilo um filho invoca deste modo o pai morto: “Ó tu, que és um deus sob a terra.” — Eurípides diz, falando de Alceste: “Junto a seu túmulo o viandante há de parar, e dizer: Esta é agora uma divindade feliz(6).” — Os romanos davam aos mortos o nome de deuses manes: “Prestai aos deuses manes as honras que lhes são devidas — diz Cícero — pois são homens que deixaram de viver; reverenciai-os como criaturas divinas(7).”

Os túmulos eram os templos dessas divindades. Assim exibiam eles, em latim e em grego, a inscrição sacramental: Dis Manibus, theõis ethoníois. — Era lá que o deus permanecia sepultado: Manesque sepulti — diz Virgílio(8). Diante do túmulo havia um altar para os sacrifícios, como diante do túmulo dos deuses (9).

Encontramos o culto dos mortos entre os helenos, entre os latinos, entre os sabinos(10) e entre os etruscos; encontramo-lo também entre os árias da Índia, como mencionam os hinos do Rig-Veda. Os livros das Leis de Manu falam desse culto como do mais antigo entre os homens. Vê-se por esse livro que a idéia da metempsicose desconheceu essa velha crença; mesmo antes disso já existia a religião de Brama, e, contudo, tanto sob o culto de Brama como sob a doutrina da metempsicose a religião das almas dos ancestrais subsiste ainda, viva e indestrutível, e força o redator das Leis de Manu a levá-la em conta, e a admitir ainda suas prescrições no livro sagrado. Não é esta a menor singularidade desse livro estranho: conservar regras relativas a crenças antigas quando foi redigido, evidentemente, em época na qual outras crenças opostas prevaleciam. Isso prova que, se é necessário muito tempo para que as crenças humanas se transformem, é necessário mais tempo ainda para que as práticas exteriores e as leis se modifiquem. Hoje mesmo, depois de tantos séculos e revoluções, os hindus continuam a oferecer dádivas aos antepassados. Essas idéias e ritos são o que há de mais antigo na raça indo-européia, assim como o que há de mais persistente.

Esse culto era idêntico tanto na Índia quanto na Grécia e na Itália. O hindu devia oferecer aos manes a refeição chamada sraddha: “Que o chefe da casa faça o sraddha com arroz, leite, raízes, frutos, a fim de atrair sobre si a proteção dos manes”. — O hindu acreditava que no momento em que oferecia esse banquete fúnebre, os manes dos antepassados vinham sentar-se a seu lado, e recebiam os alimentos que lhes eram oferecidos. Acreditava também que esse banquete proporcionava grande alegria aos mortos: “Quando o sraddha é oferecido de acordo com o ritual, os antepassados daquele que oferece o banquete experimentam uma satisfação inalterável(11).”

Assim os árias do Oriente, em sua origem, pensaram como os do Ocidente com relação ao mistério do destino depois da morte. Antes de acreditar na metempsicose, que supunha absoluta distinção entre a alma e o corpo, acreditaram na existência vaga e indecisa da criatura humana, invisível, mas não imaterial, e exigindo dos mortais comida e bebida.

O hindu, como o grego, olhava para os mortos como seres divinos, que gozavam de existência bem-aventurada. Mas havia uma condição para sua felicidade: era necessário que as ofertas fossem levadas regularmente. Se deixavam de oferecer o sraddha por um morto, sua alma saía de sua morada de paz, e tornava-se errante, atormentando os vivos; de sorte que os manes só eram considerados deuses em razão das ofertas que lhes eram feitas pelo culto(12).

Os gregos e romanos tinham exatamente as mesmas opiniões. Se deixassem de oferecer aos mortos o banquete fúnebre, logo estes saíam de seus túmulos, e, como sombras errantes, ouviam-nos gemer na noite silenciosa. Censuravam os vivos por sua impiedosa negligência; procuravam então castigá-los, mandavam-lhes doenças, ou castigavam-lhes as terras com a esterilidade. Enfim, não davam descanso aos vivos até o dia em que voltassem a oferecer-lhes o banquete fúnebre(13). O sacrifício, a oferta de alimentos e a libação levavam-nos de volta ao túmulo, e proporcionavam-lhes o repouso e atributos divinos. O homem assim estava em paz com eles(14).

Se o morto esquecido era criatura malfazeja, o honrado era um deus tutelar, que amava aqueles que lhe ofereciam alimentos. Para protegê-los, continuava a tomar parte nos negócios humanos, desempenhando muitas vezes a sua parte. Embora morto, sabia ser forte e ativo. Dirigiam-lhe orações, pedindo-lhe favores e auxílio. Quando encontravam um túmulo, detinham-se e diziam: “Tu, que és um deus sobre a terra, sê-me propício(15).”

Pode-se avaliar o poder que os antigos atribuíam aos mortos por esta prece que Electra dirige aos manes de seu pai: “Tem piedade de mim, e de meu irmão Orestes; faze-o voltar; meu pai, ouve minha oração; atende meus desejos ao receber minhas libações.” — Estes deuses poderosos não proporcionam somente bens temporais, porque Electra acrescenta: “Dá-me um coração mais casto que o de minha mãe, e mãos mais puras(16).” — Também o hindu pede aos manes “que em sua família aumente o número dos homens de bem, e que tenham muitas coisas para dar.”

Essas almas humanas, divinizadas pela morte, eram as que os gregos chamavam de demônios ou de heróis (17). Os latinos chamavam-nas de lares, manes(18) ou gênios, — “Nossos antepassados acreditaram — diz Apuléio — que os manes, quando maus, deviam ser chamados de larvas, e de lares quando eram benfazejos e propícios(19).” — Lemos em outro lugar: “Gênio ou lar, trata-se do mesmo ser; assim o creram nossos antepassados(20).” — E em Cícero: “Aqueles que os gregos chamam demônios nós chamamos lares(21).”

Essa religião dos mortos parecia ser a mais antiga existente entre os homens. Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os mortos; teve medo deles, dirigiu-lhes preces. Parece que é essa a origem do sentimento religioso. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a idéia do sobrenatural, e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos olhos. A morte foi o primeiro mistério; ela colocou o homem no caminho de outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o invisível, do passageiro para o eterno, do humano para o divino.

CAPÍTULO III

O FOGO SAGRADO

 

A casa do grego ou do romano obrigava um altar; sobre esse altar devia haver sempre um pouco de cinza e carvões acesos(1). Era obrigação sagrada, para o chefe de cada casa, manter aceso o fogo dia e noite. Infeliz da casa onde se apagasse! Cada noite cobriam-se de cinza os carvões, para impedir que se consumissem por completo; pela manhã, o primeiro cuidado era reavivar o fogo, e alimentá-lo com ramos. O fogo não cessava de brilhar diante do altar senão quando se extinguia toda uma família; a extinção do fogo e da família eram expressões sinônimas entre os antigos(2).

É evidente que esse costume de manter continuamente o fogo aceso diante do altar prendia-se a alguma antiga crença. As regras e ritos então observados mostram que não se tratava de um costume qualquer. Não era permitido alimentar esse fogo com qualquer espécie de madeira; a religião distinguia, entre as árvores, as que podiam ser usadas para esse fim, e aquelas cujo uso era taxado de impiedade(3). A religião ordenava também que o fogo se mantivesse sempre puro(4), o que significava, no sentido literal, que nenhum objeto impuro podia ser lançado nele, e, no sentido figurado, que nenhuma ação pecaminosa devia ser cometida em sua presença. Havia um dia do ano, que entre os romanos era o 1.° de março, em que cada família devia extinguir o fogo sagrado, e acender imediatamente outro(5). Mas para acender esse fogo havia ritos que deviam ser observados escrupulosamente. Sobretudo, devia-se evitar o uso de pedras e metais para consegui-lo. A única maneira permitida consistia em concentrar sobre um ponto qualquer os raios do sol, ou esfregar rapidamente dois pedaços de madeira de determinada espécie para conseguir uma fagulha(6). Essas diferentes regras provam satisfatoriamente que, na opinião dos antigos, não se tratava apenas de produzir ou conservar um elemento útil e agradável; aqueles homens viam algo mais, no fogo que ardia em seus altares.

O fogo era algo divino, que era adorado e cultuado. Ofertavam-lhe tudo o que julgavam agradável a um deus: flores, frutos, incenso, vinho(7). Pediam sua proteção, julgando-o todo-poderoso. Dirigiam-lhe preces ardentes, para dele obter os eternos objetos dos desejos humanos: saúde, riqueza, felicidade. Uma dessas preces, que nos foi conservada em uma antologia dos hinos órficos, é concebida nestes termos: “Ó fogo, torna-nos sempre prósperos, sempre felizes; ó tu, que és eterno, belo, sempre jovem, tu que nutres, tu que és rico, recebe de boa vontade nossas ofertas, e dá-nos em troca a felicidade e a saúde, que é tão bela(8).” — Via-se assim no fogo um deus benfazejo, que mantinha a vida do homem; um deus rico, que o alimentava com seus dons; um deus forte, que protegia a casa e a família. Em presença de algum perigo, procurava-se nele o refúgio. Quando o palácio de Príamo foi invadido, Hécuba leva o velho rei para perto do fogo: “Tuas armas não poderão defender-te — lhe diz ela — mas este altar será a nossa proteção(9).”

Contemplai Alceste, que vai morrer, dando a vida para salvar o esposo. Aproxima-se do fogo, e o invoca com estas palavras: “Ó divindade, protetora desta casa, pela última vez inclino-me diante de ti e te dirijo minhas preces, porque vou descer para a região dos mortos. Vela sobre meus filhos, que não terão mais mãe; dá a meu filho uma esposa amante, e à minha filha um esposo nobre. Faze que eles não morram como eu, antes da idade, mas que tenham existência longa, e cheia de felicidade(10).” — Era o fogo que enriquecia a família. Plauto, em uma de suas comédias, representa-o medindo seus favores na proporção do culto que lhe prestam(11). Os gregos chamavam ctésios ao deus da riqueza(12). O pai o invocava em favor dos filhos, e lhe pedia “saúde e abundância de bens(13).” — No infortúnio o homem queixava-se ao fogo, e o repreendia. Na felicidade dava-lhe graças. O soldado que voltava da guerra agradecia-lhe por haver escapado dos perigos. Ésquilo nos apresenta Agamenon voltando de Tróia, feliz, coberto de glória; ele não agradece a Júpiter, e não é ao templo que vai levar sua alegria e reconhecimento; o sacrifício de ação de graças ele o oferece no altar de sua casa(14). O homem não saía jamais de casa sem dirigir uma prece ao fogo sagrado; de volta, antes de rever a mulher e abraçar os filhos, devia inclinar-se diante do altar, e invocar os manes familiares(15).

Portanto, o deus do fogo era a providência da família. Seu culto era muito simples. A primeira regra era manter continuamente sobre o altar alguns carvões acesos, porque, se o fogo se extinguia, um deus deixava de existir. Em certas horas do dia alimentavam-no com ervas secas e lenha; então o deus se manifestava em chamas brilhantes(16). Ofereciam-lhe sacrifícios, mas a essência de qualquer sacrifício era manter e aliviar o fogo sagrado, nutrir e fazer crescer o corpo do deus. É por isso que, antes de mais nada, ofereciam-lhe ramos; é por isso que derramavam sobre o altar o vinho quente da Grécia, óleo, incenso e gordura de animais. O deus recebia essas ofertas, e as devorava; satisfeito e radiante levantava-se sobre o altar, e iluminava com seus raios a seu adorador(17). Era esse o momento próprio para invocá-lo; o hino da oração saía do coração do homem.

O banquete era o ato religioso por excelência, presidido pelo deus, que havia cozido o pão e preparado os alimentos(18); dirigiam-lhe também uma prece no princípio e no fim da refeição. Antes de comer, depunham sobre o altar as primícias dos alimentos; antes de beber, fazia-se a libação do vinho. Era a parte do deus. Ninguém duvidava de sua presença, ou que ele comesse e bebesse; e, de fato, não viam a chama crescer, como se fosse alimentada pelas oferendas? O banquete, assim, era dividido entre o homem e deus; era uma cerimônia santa, pela qual entravam em comunhão com a divindade(19). Velhas crenças, que com o tempo desapareceram dos espíritos, mas que deixaram por muito tempo ainda usos, ritos, expressões, que mesmo o incrédulo não podia desprezar. Horácio, Ovídio, Juvenal ainda tomavam suas refeições diante do altar, e faziam a libação e a prece(20).

O culto do fogo sagrado não pertencia apenas aos povos da Grécia e da Itália. Encontramo-lo também no Oriente. As leis de Manu, na redação que chegou até nós, mostram-nos a religião de Brama completamente estabelecida, e entrando já em declínio; mas elas guardaram vestígios e restos de uma religião mais antiga, a do fogo, que o culto de Brama havia relegado a segundo plano, sem conseguir destruí-lo. O brâmane tem o seu lar, que deve manter aceso dia e noite; cada dia e cada noite ele o alimenta com lenha; mas, como entre os gregos, só o pode fazer com determinadas madeiras, indicadas pela religião. Como os gregos e os itálicos oferecem-lhe vinho, o hindu derrama sobre ele um licor fermentado, chamado soma. A refeição também é ato religioso, cujos ritos são escrupulosamente descritos pelas leis de Manu. Como na Grécia, dirigem-lhe preces, oferecem-lhe banquetes, arroz, manteiga e mel. Manu declara: “O brâmane não deve comer arroz da nova colheita, senão depois de oferecer as primícias ao fogo. Porque o fogo sagrado é ávido de cereais, e quando não é honrado devora a existência do brâmane negligente.” — Os hindus, como os gregos e os romanos, imaginavam os deuses ávidos, não só de honras e de respeito, como também de alimentos e bebidas. O homem julgava-se obrigado a saciar-lhes a fome e a sede, se desejava evitar-lhes a cólera.

Entre os hindus essa divindade do fogo comumente chama-se Agni. O Rig-Veda contém grande número de hinos que lhe são dirigidos. Em um deles se diz: “Ó Agni, tu és a vida, tu és o protetor do homem... Em recompensa de nossos louvores, dá ao pai de família, que te implora, glória e riqueza... Agni, és defensor prudente e pai; a ti devemos a vida, somos tua família.” — Assim o fogo sagrado, como na Grécia, é um deus tutelar. O homem pede-lhe abundância: “Faze que a terra nos seja sempre liberal.” — Pedem-lhe saúde: “Que eu goze por muito tempo da luz, e chegue à velhice como o sol poente.” — Pedem-lhe até sabedoria: “Ó Agni, tu colocas no bom caminho o homem que se iludia no mau... Se cometemos alguma falta, se andamos longe de ti, perdoa-nos.” — Esse fogo sagrado, como na Grécia, era essencialmente puro; era severamente proibido ao brâmane lançar nele algo impuro, ou mesmo aquecer os pés no seu calor(21). Como na Grécia, o homem culpado não podia aproximar-se do fogo, senão depois de purificar-se.

Uma grande prova da antiguidade dessas crenças e costumes é o fato de encontrá-las simultaneamente entre os homens das margens do Mediterrâneo e entre os povos da península indiana. É certo que os gregos não tiraram essas práticas da religião hindu, nem os hindus da dos gregos. Mas gregos, itálicos e hindus pertenciam a uma só raça; seus antepassados, em época remotíssima, viveram juntos na Ásia central, de onde se originaram essas crenças e ritos. A religião do fogo sagrado, portanto, data da época longínqua e obscura em que não havia ainda nem gregos, nem itálicos, nem hindus, mas apenas os árias. Quando as diversas tribos se separaram, levaram com elas esse culto, umas para as margens do Ganges, outras para as praias do Mediterrâneo. Mais tarde, entre essas tribos separadas, e que não tinham mais relações entre si. umas adoraram Brama, outras Zeus, outras Jano; cada grupo escolheu seus deuses. Todos, porém, conservaram como antigo legado a religião primitiva, que haviam concebido e praticado no berço comum de suas raças.

Se a existência desse culto entre todos os povos indo-europeus não demonstrasse suficientemente sua remota antiguidade, encontraríamos outras provas nos ritos religiosos dos gregos e dos romanos. Em todos os sacrifícios, mesmo nos que se realizavam em honra de Zeus ou de Atenas, a primeira invocação era sempre dirigida ao fogo(22). Toda a prece dirigida a um deus, fosse qual fosse, devia começar e terminar por uma prece aos manes(23). Em Olímpia, o primeiro sacrifício oferecido pelos povos reunidos da Grécia era para o fogo, e o segundo para Zeus(24). Do mesmo modo em Roma, a primeira adoração era sempre para Vesta, que não era nada mais que a divindade do fogo(25). Ovídio, falando dessa divindade, diz que ela ocupa o primeiro lugar entre as práticas religiosas dos homens. É assim que lemos nos livros do Rig-Veda: “Antes de todos os outros deuses, é necessário invocar a Agni. Pronunciaremos seu nome venerável antes de todos os outros imortais. Ó Agni, seja qual for o deus que honramos com nosso sacrifício, nosso holocausto é sempre dirigido a ti.” — É, portanto, certo que, em Roma, nos tempos de Ovídio, e na Índia, nos tempos dos brâmanes, o fogo sagrado tinha ainda a primazia entre os deuses, não porque Júpiter e Brama não houvessem conquistado maior importância na religião dos homens, mas porque lembravam-se de que o fogo sagrado era muito anterior a todos esses deuses. Depois de muitos séculos, tomara o primeiro lugar no culto, e os deuses mais novos e mais importantes não o puderam destronar.

Os símbolos desta religião modificaram-se de acordo com os tempos. Quando as populações da Grécia e da Itália tomaram o hábito de representar os deuses como pessoas, dando a cada um nomes próprios e forma humana, o antigo culto do fogo submeteu-se à lei comum que a inteligência humana, nesse período, impunha a toda a religião. O altar do fogo sagrado tomou forma; chamaram-no de estía, Vesta; o nome era idêntico em latim e em grego, e não era senão a palavra que na língua comum designava o altar. Por um processo muito freqüente, do nome comum fez-se o nome próprio. Aos poucos surgiu uma lenda. Representaram essa divindade sob a aparência de mulher, porque a palavra que designava o altar era do gênero feminino. Chegou-se mesmo a representar essa deusa por meio de estátuas. Mas jamais conseguiram destruir as origens da crença primitiva, segundo a qual essa divindade era simplesmente o fogo do altar; e o próprio Ovídio viu-se forçado a admitir que Vesta não era nada mais que “uma chama viva(26).”

Se compararmos esse culto do fogo sagrado com o culto dos mortos, do qual falamos há pouco, descobriremos estreita ligação entre ambos.

Notemos, antes de mais nada, que o fogo sagrado não é, no pensamento dos homens, o mesmo fogo da natureza material. O que se vê nele não é o elemento puramente físico, que aquece e queima, que transforma os corpos, funde os metais e se torna poderoso instrumento da indústria humana. O fogo sagrado é de natureza completamente diversa. É um fogo puro, que não pode ser produzido senão com o auxílio de determinados ritos, e que não se mantém senão com determinadas qualidades de madeira. É um fogo casto; a união dos sexos deve sei afastada para longe de sua presença(27). Não se pede a ele apenas riqueza e saúde, mas também pureza de coração, temperança e sabedoria. — “Torna-nos ricos e prósperos — diz um hino órfico — torna-nos também sábios e castos.” — O fogo sagrado é, portanto, uma espécie de ser moral. É verdade que brilha, aquece e coze os alimentos sagrados, mas ao mesmo tempo ele tem um pensamento, uma consciência; tem consciência dos deveres, e vela para que sejam cumpridos. Dir-se-ia um homem, pois possui a dupla natureza humana: fisicamente, brilha, move-se, vive, produz a abundância, prepara as refeições, alimenta o corpo; moralmente, tem sentimentos e afetos, dá ao homem pureza, ordena o bem e o mal, alimenta a alma. Pode-se dizer que o fogo mantém a vida humana na dupla série de suas manifestações. É ao mesmo tempo fonte das riquezas, da saúde e da virtude. É, na verdade, o deus da natureza humana. Mais tarde, quando esse culto foi relegado a segundo plano, por Brama ou por Zeus, o fogo sagrado manteve-se como o atributo divino mais acessível ao homem; era o intermediário da natureza física junto aos deuses; era encarregado de levar até os deuses a prece e oferenda do homem, e de trazer ao homem os favores divinos. Mais tarde ainda, quando desse mito do fogo sagrado se fez a grande Vesta, Vesta foi a deusa virgem; não representava no mundo nem a fecundidade, nem o poder; era a ordem, mas não a ordem rigorosa, abstrata, matemática, a lei imperiosa e fatal, que logo se descobre entre os fenômenos da natureza física. Vesta era a ordem moral. Imaginaram-na como uma espécie de alma universal, que regulava os diversos movimentos dos mundos, como a alma humana rege nossos órgãos.

É assim que o pensamento das gerações primitivas se deixa entrever. O princípio desse culto foge do círculo da natureza física, e se encontra nesse pequeno mundo misterioso que é o homem.

Isso nos leva de volta ao culto dos mortos. Ambos têm a mesma antiguidade. Estavam tão intimamente unidos, que a crença dos antigos fez disso uma religião. Fogo, demônios, heróis, deuses lares, tudo era uma só coisa(28). Por dois trechos de Plauto e de Columela vê-se que na linguagem comum dizia-se indiferentemente fogo ou lar doméstico; e vemos ainda em Cícero que não se distinguia o fogo dos penates, nem os penates dos deuses lares(29). Lemos em Sérvio: “Por fogos os antigos entendiam os deuses lares; assim Virgílio fala indiferentemente em fogo e em penates, ou vice-versa(30).” — Em uma passagem famosa da Eneida, Heitor diz a Enéias que vai mandar-lhe os penates de Tróia, e lhe manda o fogo sagrado. Em outra passagem, Enéias, invocando esses mesmos deuses, chama-os indiferentemente de penates, lares e Vesta(31).

Vimos, aliás, que esses que os antigos chamavam de lares, ou heróis, não eram outros senão as almas dos mortos, às quais os homens atribuíam poder sobre-humano e divino. A lembrança de um desses mortos sagrados estava sempre ligada ao fogo. Adorando a um, não se podia esquecer a outro. Estavam unidos no respeito dos homens e em suas preces. Os descendentes, quando falavam do fogo sagrado, lembravam constantemente o nome do antepassado: “Deixa este lugar — diz Orestes a Helena — e dirige-te ao antigo fogo de Pélops, para ouvir minhas palavras(32).” — Do mesmo modo Enéias, falando do fogo que transporta através dos mares, designa-o pelo nome de lar de Assaracus, como se visse nesse fogo a alma de seu antepassado.

O gramático Sérvio, muito instruído a respeito das antiguidades greco-romanas — em seu tempo estudavam-nas muito mais que nos tempos de Cícero — diz que era costume muito antigo enterrar os mortos nas casas, e acrescenta: “De acordo com este uso é que se honram nas casas os lares e os penates(33).” — Esta frase estabeleceu, nitidamente, antiga relação entre o culto dos mortos e o culto do fogo. Pode-se, pois, pensar que o fogo doméstico, na origem, nada mais foi que o símbolo do culto dos mortos; que sob a pedra da lareira repousava um antepassado; que o fogo ali se acendia para honrá-lo; e que esse fogo parecia mantê-lo vivo, ou representava sua alma imortal.

Trata-se apenas de simples conjectura, pois faltam-nos provas. Mas o certo é que as gerações mais antigas, de cuja raça se originaram gregos e romanos, renderam culto aos mortos e ao fogo sagrado, religião antiga, que não tirava seus deuses da natureza física, mas do próprio homem, tendo por objeto a adoração do ser invisível que há em nós, a força moral e pensadora que anima e governa nosso corpo.

Essa religião não foi sempre igualmente poderosa, nem sempre teve igual influência sobre a alma; aos poucos se foi enfraquecendo, mas não desapareceu por completo. Contemporânea das primeiras idades da raça ariana, enraizou-se tão profundamente nas entranhas dessa raça, que a brilhante religião do Olimpo grego não foi bastante para arrancá-la, sendo para isso necessário o advento do Cristianismo.

CAPÍTULO IV

A RELIGIÃO DOMÉSTICA

 

Não é necessário representar esta antiga religião como as que foram fundadas mais tarde, com a humanidade mais evoluída. Há muitos séculos que o gênero humano não admite mais uma doutrina religiosa senão com duas condições: uma, que tenha um único deus; outra, que se dirija a todos os homens, e seja acessível a todos, sem afastar sistematicamente nenhuma classe ou raça. Mas a religião dos primeiros tempos não preenchia nenhuma dessas condições. Não somente não oferecia à adoração dos homens um único deus, mas ainda seus deuses não aceitavam a adoração de todos os homens. Não se apresentavam como sendo os deuses do gênero humano. Não se assemelhavam nem mesmo a Brama, que era, pelo menos, o deus de uma grande casta, nem a Zeus Pan-heleno, que era deus de toda uma nação. Nessa religião primitiva cada deus só podia ser adorado por uma família. A religião era puramente doméstica.

É necessário esclarecer este ponto importante, porque sem isso não se poderia compreender a relação tão íntima estabelecida entre essas velhas crenças e a constituição da família grega e romana.

O culto dos mortos de nenhum modo se assemelha ao que os cristãos dedicam aos santos. Uma das primeiras regras desse culto era que não podia ser observado senão pelos familiares de cada modo. Os funerais não podiam ser religiosamente observados senão pelo parente mais próximo. Quanto ao banquete fúnebre, que depois se celebrava em épocas determinadas, apenas a família tinha o direito de assisti-lo, e os estranhos eram severamente excluídos(1). Acreditava-se que o morto não aceitava a oferta senão da mão dos parentes, não queria o culto senão de seus descendentes. A presença de um homem que não pertencesse à família perturbava o repouso dos manes. A lei, portanto, proibia aos estranhos aproximar-se de um túmulo(2). Tocar com o pé, mesmo por descuido, uma sepultura, era ato de impiedade, pelo qual se devia aplacar o morto e purificar-se. A palavra pela qual os antigos designavam o culto dos mortos é significativa: os gregos diziam pratiázein(3), os latinos parentare, porque as preces e oferendas não eram endereçadas senão aos antepassados de cada um(4). O culto dos mortos era, verdadeiramente, o culto dos antepassados(5). Luciano, sempre zombando da opinião do vulgo, no-lo explica claramente quando diz: “O morto que não deixou filhos não recebe sacrifícios, e fica condenado à fome eterna(6).

Na Índia, como na Grécia, a oferta não podia ser feita ao morto senão pelos seus descendentes. A lei dos hindus, como a ateniense, proibia receber estranhos, embora amigos, no banquete fúnebre. Era de tal modo necessário que o banquete fosse oferecido pelos descendentes do morto, e não por outras pessoas, que se supunha até que os manes, em sua morada, faziam freqüentemente este voto: “Que nasçam sucessivamente de nossa estirpe filhos que nos ofereçam, na continuidade dos tempos, arroz cozido em leite, mel e manteiga purificada(7)!”

Por essa razão na Grécia e em Roma, como na Índia, o filho tinha o dever de fazer libações e sacrifícios aos manes do pai e de todos os ancestrais(8). Faltar a esse dever era a mais grave impiedade que se podia cometer, pois a interrupção desse culto provocava uma série de mortes, e destruía a felicidade. Tal negligência era considerada verdadeiro parricídio, multiplicado tantas vezes quantos antepassados possuía o filho negligente.

Se, pelo contrário, os sacrifícios eram sempre observados de acordo com os ritos, se os alimentos eram levados ao túmulo nos dias marcados, então o antepassado tornava-se deus protetor. Hostil a todos os que não descendiam dele, expulsava-os de seu túmulo, castigando com doenças os que dele se aproximavam; para os seus, porém, era bom e compassivo.

Havia perpétua troca de favores entre os vivos e os mortos de cada família. O ancestral recebia dos descendentes a série de banquetes fúnebres, isto é, a única alegria que podia experimentar em sua segunda vida. O descendente recebia do antepassado a ajuda e a força de que necessitava neste mundo. O vivo não podia abandonar o morto, nem o morto ao vivo. Por esse motivo estabelecia-se poderosa união entre todas as gerações de uma mesma família, constituindo assim um corpo inseparável.

Cada família tinha seu túmulo, onde seus mortos vinham descansar um após outro, sempre juntos. Todos os que descendiam do mesmo sangue aí deviam ser enterrados, e nenhum homem de outra família podia ser nele admitido(9). Nele celebravam-se as cerimônias e aniversários. Cada família acreditava possuir antepassados sagrados. Nos tempos mais remotos, o túmulo ficava dentro da propriedade da família, no centro da casa, não longe da porta “a fim de que — diz um antigo — o filho, entrando ou saindo de sua morada, encontrasse todas as vezes os pais, dirigindo-lhe vez por vez uma invocação(10).” Assim o antepassado mantinha-se no meio dos seus; invisível, mas sempre presente, continuava a fazer parte da família, e a ser o pai. Imortal, feliz, divino, interessava-se por aquilo que deixara de mortal sobre a terra; conhecia-lhes as necessidades e amparava-os na fraqueza. E aquele que ainda vivia, que trabalhava que, segundo expressão antiga, não se havia desempenhado da existência, esse tinha junto a si guias e apoio, que eram os pais. No meio das dificuldades, invocava sua antiga sabedoria; no sofrimento pedia-lhes consolo; no perigo, apoio; depois de uma falta, perdão.

Na verdade, hoje em dia muito dificilmente poderemos compreender que o homem possa adorar ao pai ou a um antepassado. Fazer do homem um deus, parece-nos contrário à religião. É-nos quase tão difícil compreender as antigas crenças desses homens, como teria sido a eles imaginar as nossas. Mas reflitamos que os antigos não tinham idéia da criação; para eles o mistério da geração era o que para nós pode ser o mistério da criação. O que gerava parecia-lhes uma criatura divina, e por isso adoravam os antepassados. Era necessário que esse sentimento fosse muito natural e poderoso, porque aparecia como princípio de uma religião na origem de quase todas as sociedades humanas; encontramo-lo entre os chineses, como entre os antigos getas e citas; entre os povos da África, como entre os do Novo Mundo(11).

O fogo sagrado, que tão intimamente estava ligado ao culto dos mortos, tinha também, como caráter essencial, pertencer apenas a uma família, representava os antepassados(12); era a providência da família; não tinha nada em comum com o fogo da família vizinha, que era outra providência. Cada lar protegia apenas os seus.

Toda essa religião limitava-se ao círculo de uma casa. O culto não era público. Pelo contrário, todas as cerimônias, eram celebradas apenas pelos familiares(13). O fogo sagrado nunca era colocado fora da casa, nem mesmo perto da porta externa, onde um estranho poderia vê-lo. Os gregos colocavam-no sempre em um recinto fechado(14), para protegê-lo do contacto e olhar dos profanos. Os romanos escondiam-no no meio da casa. Todos esses deuses, fogo sagrado, lares, manes, eram chamados de deuses escondidos, ou deuses do interior(15). Para todos os atos dessa religião exigia-se segredo — sacrifícia occulta — diz Cícero(16); se uma cerimônia fosse assistida por um estranho, era considerada perturbada, manchada por um único olhar.

Para essa religião doméstica não havia nem regras uniformes, nem ritual comum. Cada família tinha a mais completa independência. Nenhum poder exterior tinha direito de dar regras para esse culto ou crença. Não havia outro sacerdote além do pai; como sacerdote, ele não conhecia nenhuma hierarquia. O pontífice de Roma, ou o arconte de Atenas, podia certificar-se de que o pai de família cumprisse todos esses ritos religiosos, mas não tinha o direito de obrigá-lo a nenhuma modificação. Suo quisque ritu sacrificium faciat(17) — era a regra absoluta. Cada família tinha suas cerimônias, que lhe eram próprias, suas festas particulares, suas fórmulas de oração e seus hinos(18). O pai, único intérprete e pontífice dessa religião, era o único que tinha o poder de ensiná-la, e não o podia fazer senão a seu filho. Os ritos, as palavras da oração, os cantos, que faziam parte essencial dessa religião doméstica, eram patrimônio ou propriedade sagrada, que a família não participava a ninguém, e que era até proibido revelar a estranhos. Assim era na Índia: “Sou forte contra meus inimigos — diz o brâmane — com os cantos que pertencem à minha família, e que meu pai me ensinou(19).”

Assim, a religião não residia nos templos, mas nas casas; cada um tinha seus deuses; cada deus protegia apenas a uma família, e era deus apenas de uma casa. Não se pode supor razoavelmente que uma religião com tais características fosse revelada aos homens pela imaginação poderosa de alguém, ou que fosse ensinada por uma casta de sacerdotes. Ela nasceu espontaneamente no espírito humano; seu berço foi a família; cada família fez seus próprios deuses.

Esta religião não podia propagar-se senão pela geração. O pai, ao dar vida ao filho, dava-lhe ao mesmo tempo sua fé, seu culto, o direito de manter o fogo sagrado, de oferecer o banquete fúnebre, de pronunciar fórmulas de orações. A geração estabelecia misterioso vínculo entre a criança que nascia para a vida e todos os deuses da família. Tais deuses eram sua própria família, theòi enghenéis; seu próprio sangue theòi synaimoi(20). A criança, portanto, ao nascer, recebia o direito de adorá-los, e de oferecer-lhes sacrifícios, assim como, mais tarde, quando a morte, por sua vez, o divinizasse, ele devia ser contado entre os deuses da família.

Mas é necessário notar esta particularidade: a religião doméstica não se propagava senão de varão para varão. Isso, sem dúvida, prendia-se à idéia que os homens faziam da geração(21). A crença das idades primitivas, tal como a encontramos nos Vedas, e nos vestígios que ficaram em todo o direito romano e grego, era que o poder reprodutor residia unicamente no pai. Somente o pai possuía o princípio misterioso do ser, e transmitia a centelha da vida. Dessa antiga opinião resultou que o culto doméstico passou sempre de homem para homem; a mulher, dele não participava senão por intermédio do pai ou do marido; depois que estes morriam, a mulher não tomava a mesma parte que o homem no culto e cerimônias do banquete fúnebre. Disso resultaram ainda outras conseqüências muito graves no direito privado e na constituição da família; delas trataremos mais adiante.


LIVRO SEGUNDO
A FAMÍLIA


CAPÍTULO I

A RELIGIÃO FOI O PRINCÍPIO CONSTITUTIVO DA FAMÍLIA ANTIGA

 

Se nós nos transportarmos em pensamento para o seio dessas antigas gerações de homens, encontraremos em cada casa um altar, e ao redor desse altar a família reunida. Ela se reúne cada manhã, para dirigir ao fogo sagrado suas preces; e cada noite, para invocá-lo uma vez mais. Durante o dia, a família reúne-se ainda ao seu redor para as refeições, que dividem piedosamente depois da prece e da libação. Em todos esses atos religiosos, canta em comum os hinos que seus pais lhe ensinaram.

Fora da casa, bem perto, no campo vizinho, há um túmulo. É a segunda morada da família. Lá repousam em comum várias gerações de antepassados; a morte não os separou. Nessa segunda existência permanecem juntos, e continuam a formar uma família indissolúvel. Entre a parte viva e a parte morta da família não há senão essa distância que separa a casa do túmulo. Em determinados dias, indicados segundo a religião doméstica de cada um, os vivos se reúnem ao pé dos antepassados, oferecem-lhes o banquete fúnebre, derramam sobre eles vinho e leite; oferecem-lhes presentes e frutos, ou queimam em sua honra as carnes de uma vítima. Em troca dessas ofertas pedem-lhes proteção, chamam-nos de deuses, e pedem para que tornem seus campos férteis, a casa próspera e os corações virtuosos.

O princípio da família antiga não é apenas a geração. Isso pode ser provado pelo fato de a irmã não ser na família o mesmo que o irmão; também o filho emancipado ou a filha casada deixam de fazer parte da família por completo; enfim, muitas disposições importantes nas leis gregas e romanas, que teremos ocasião de examinar mais adiante, nos induzem a pensar assim.

O princípio da família não é mais o afeto natural, porque o direito grego e o direito romano não dão importância alguma a esse sentimento. Ele pode existir no fundo dos corações, mas nada representa em direito. O pai pode amar a filha, mas não pode legar-lhe os bens. As leis da sucessão, isto é, as que entre todas as outras atestam mais fielmente as idéias que os homens tinham da família, estão em contradição flagrante, quer com a ordem de nascimento, quer com o afeto natural entre os membros de uma família(1).

Os historiadores do direito romano, tendo justamente notado que nem o afeto, nem o parentesco eram o fundamento da família romana, julgaram que tal fundamento devia residir no poder do pai ou do marido. Fazem desse poder uma espécie de instituição primordial, mas não explicam como se formou, a não ser pela superioridade de força do marido sobre a mulher, ou do pai sobre os filhos. Ora, é grave erro colocar a força como origem do direito. Aliás, mais adiante veremos que a autoridade paterna ou marital, longe de ter sido causa primeira, foi também efeito: originou-se da religião, e foi por ela estabelecida. Não é, portanto, o princípio que constituiu a família.

O que une os membros da família antiga é algo mais poderoso que o nascimento, que o sentimento, que a força física: é a religião do fogo sagrado e dos antepassados. Essa religião faz com que a família forme um só corpo nesta e na outra vida. A família antiga é mais uma associação religiosa que uma associação natural. Assim, veremos mais adiante que a mulher será realmente levada em conta quando for iniciada no culto, com a cerimônia sagrada do casamento; o filho não será mais considerado pela família se renunciar ao culto, ou for emancipado; o filho adotivo, pelo contrário, será considerado filho verdadeiro, porque, se não possui vínculos de sangue, tem algo melhor, que é a comunhão do culto; o legatário que se negar a adotar o culto dessa família não terá direito à sucessão; enfim, o parentesco e o direito à herança serão regulamentados, não pelo nascimento, mas pelos direitos de participação no culto, de acordo com o que a religião estabeleceu. Sem dúvida, não foi a religião que criou a família, mas foi certamente a religião que lhe deu regras, resultando daí que a família antiga recebeu uma constituição muito diferente da que teria tido se houvesse sido constituída baseando-se apenas nos sentimentos naturais.

A antiga língua grega tinha uma palavra muito significativa para designar a família; dizia-se epístion, palavra que significa literalmente aquilo que está perto do fogo. Uma família era um grupo de pessoas às quais a religião permitia invocar os mesmos manes, e oferecer o banquete fúnebre aos mesmos antepassados(2).

CAPÍTULO II

O CASAMENTO

 

A primeira instituição que a religião doméstica estabeleceu foi, na verdade, o casamento.

É necessário notar que essa religião do lar e dos antepassados, que se transmitia de varão para varão, não pertencia, contudo, exclusivamente ao homem; a mulher tomava parte no culto. Como filha, assistia aos atos religiosos do pai; como casada, aos do marido.

Somente por isso se pode avaliar o caráter essencial da união conjugal entre os antigos. Duas famílias vivem uma ao lado da outra, mas possuem deuses diversos. Em uma delas, a jovem participa, desde a infância, da religião do pai, invoca seu lar, oferece-lhe todos os dias libações, enfeita-o com flores e grinaldas nos dias festivos, pede-lhe proteção, agradece-lhe benefícios. Esse fogo paterno é o seu deus. Se um jovem de outra família a pede em casamento, para ela isso significa muito mais do que passar de uma casa para outra. Trata-se de abandonar o lar paterno, para invocar daí por diante os deuses do esposo. Trata-se de mudar de religião, de praticar outros ritos, de pronunciar outras orações. Trata-se de deixar o deus de sua infância, para colocar-se sob o império de um deus desconhecido. E ela não espera permanecer fiel a um, honrando a outro, porque um dos princípios imutáveis dessa religião é que uma pessoa não pode invocar dois lares, nem duas séries de antepassados. “A partir do casamento, diz um antigo, a mulher não tem nada mais em comum com a religião doméstica dos pais: ela passa a sacrificar aos manes do marido(1).”

O casamento, portanto, é ato sério para a jovem, e não o é menos para o esposo, porque a religião exige que se nasça junto ao fogo sagrado para ter-se o direito de oferecer-lhe sacrifícios. E, no entanto, o rapaz vai introduzir em seu lar uma estranha; em sua companhia, oficiará as cerimônias misteriosas do culto, revelando-lhe ritos e fórmulas, que constituem patrimônio de família. Não há nada mais precioso que essa herança; os deuses, ritos e hinos, que recebeu dos pais, é quem o protege na vida, e lhe promete riqueza, felicidade, virtude. No entanto, em vez de guardar para si esse poder tutelar, como o selvagem guarda um ídolo ou amuleto, vai admitir uma mulher para participante dos mesmos.

Desse modo, quando penetramos o pensamento dos antigos, vemos a importância que tem para eles a união conjugal, e quanto lhe é imprescindível a intervenção da religião. Não seria, portanto, necessário, para que a jovem fosse iniciada no culto que iria seguir, uma cerimônia sagrada de iniciação? Para tornar-se sacerdotisa de um novo fogo, não haveria uma espécie de ordenação ou de adoção?

O casamento era a cerimônia sagrada que deveria produzir esses grandes efeitos. Os escritores latinos e gregos têm o hábito de designar o casamento por palavras que indicam ato religioso(2). Pólux, que viveu no tempo dos Antoninos, mas que podia manusear toda uma antiga literatura que não possuímos mais, diz que nos tempos remotos, em lugar de designar o casamento por seu nome particular (gámos), designavam-no simplesmente pela palavra télos, que significa cerimônia sagrada(3), como se o casamento fosse, nesses tempos antigos, a cerimônia sagrada por excelência.

Ora, a religião que celebrava o casamento não era a de Júpiter, de Juno, ou dos outros deuses do Olimpo. A cerimônia não era realizada em templo; era realizada em casa, presidida pelo deus doméstico. Na verdade, quando a religião dos deuses do céu se tornou preponderante, não foi mais possível deixar de invocá-los também nas preces do casamento; tomou-se então o costume de ir antes aos templos, para oferecer sacrifícios a tais deuses, sacrifícios esses que eram conhecidos como prelúdios do casamento(4). Mas a parte principal e essencial da cerimônia sempre devia realizar-se diante do lar doméstico.

Entre os gregos, a cerimônia do casamento compunha-se, por assim dizer, de três atos. O primeiro realizava-se diante do lar paterno, enghyesis, o terceiro no lar do marido, télos, e o segundo era a passagem de um para outro, pompé.

1.° Na casa paterna, em presença do pretendente, o pai, de ordinário rodeado pela família, oferece um sacrifício. Terminado este, declara, enquanto pronuncia uma fórmula sacramental, que dá a filha ao homem que a pediu. Essa declaração é absolutamente indispensável para o casamento, porque a jovem não poderia ir adorar o lar do esposo, se seu pai não a houvesse antes desligado do lar paterno. Para ingressar na nova religião, deve estar livre de todos os laços ou vínculos da religião primitiva(5).

2.° A jovem é levada para a casa do marido. Às vezes, é o próprio marido que a conduz(6). Em algumas cidades o encargo de levar a jovem cabia a um daqueles homens que entre os gregos estavam revestidos de caráter sacerdotal, e que chamavam de arautos(7). A jovem, comumente, é colocada sobre um carro(8), o rosto coberto com um véu, e à cabeça leva uma coroa. O uso da coroa, como veremos muitas vezes, era um costume observado em todas as cerimônias do culto. Os vestidos são brancos. O branco era a cor dos vestidos em todos os atos religiosos. Precedem-na carregando archotes: é o archote nupcial(9). Em todo o percurso cantam a seu redor um hino religioso, cujo estribilho é o seguinte: õ hymén, õ hyménaie. Esse hino era conhecido por himeneu, e a importância desse canto sagrado era tão grande, que dava nome a toda cerimônia(10).

A jovem não entra por si mesma em sua nova morada. É necessário que o marido a carregue, que simule um rapto, que grite um pouco, e que as mulheres que a acompanham finjam defendê-la. Por que esse rito? Seria um símbolo do pudor feminino? Isso é pouco provável; ainda não chegou o momento do pudor, porque o que se vai realizar por primeiro nessa casa é uma cerimônia religiosa. Será que esse rapto simulado não quer antes significar que a mulher que vai oferecer sacrifícios no novo lar não tem por si mesma nenhum direito, que ela não o adota por sua própria vontade, e que é necessário que o dono da nova casa e seu respectivo deus a introduza à força? Seja o que for, depois de uma luta fictícia, o esposo ergue-a nos braços e a introduz na casa, tendo grande cuidado para que seus pés não toquem na soleira da porta(11).

O que precede não é senão preparação e prelúdio da cerimônia. O ato sagrado vai ter início no interior da casa.

3.° À frente do fogo sagrado, a esposa é colocada em presença da divindade doméstica. É aspergida com água lustral, e toca o fogo sagrado(12). Dizem-se orações. Depois os esposos compartilham um bolo, um pão e algumas frutas(13).

Essa espécie de refeição ligeira, que começa e termina com uma libação e uma prece, essa comunhão de alimentos diante do fogo sagrado, põe os dois esposos em comunhão religiosa, como também em comunhão com os deuses domésticos(14).

O casamento romano assemelhava-se muito ao casamento grego, e como ele, constava de três atos: traditio, deductio in domum, confarreatio.

1.° A jovem deixa o lar paterno. Como não está ligada a esse lar por direito próprio, mas apenas pela mediação do pai de família, somente a autoridade do pai pode livrá-la desse laço. A tradição, é, portanto, formalidade indispensável(15).

2.° A jovem é conduzida à casa do esposo. Como na Grécia, ela é velada, usa coroa, e um archote nupcial precede o cortejo(16). Canta-se a seu redor um hino religioso. As palavras desse hino, talvez com o tempo tenham mudado, acomodando-se às variações das crenças e do modo de falar, mas o estribilho sacramental continuou sempre sem alteração alguma: era a palavra Talássia, vocábulo que os romanos do tempo de Horácio compreendiam tanto quanto os gregos compreendiam a palavra hyménaie, que era, provavelmente, a relíquia sagrada e inviolável de antiga fórmula(17).

O cortejo pára diante da casa do esposo, onde apresentam à jovem fogo e água. O fogo é o emblema da divindade doméstica; a água é a água lustral, que serve para a família em todos os atos religiosos(18). Para que a jovem entre na casa é necessário, como na Grécia, simular um rapto(19). O esposo deve erguê-la nos braços, e carregá-la, tomando cuidado para que não toque a soleira da porta com os pés.

3.° A esposa é conduzida diante do fogo, onde estão os penates, onde todos os deuses domésticos e as imagens dos antepassados agrupam-se ao redor do fogo sagrado. Os dois esposos, como na Grécia, oferecem um sacrifício, fazem libações, pronunciam algumas preces, e comem juntos um manjar de flor de farinha (panis farreus)(20).

A consumpção desse manjar em meio à récita de preces, na presença e sob os olhos das divindades da família, é o que constitui a união santa do esposo e da esposa(21). Desde esse instante ambos estão unidos no mesmo culto. A mulher tem os mesmos deuses, os mesmos ritos, as mesmas orações, as mesmas festas que o marido. Daí essa velha definição de casamento, que os jurisconsultos nos conservaram: Nuptiae sunt divini juris et humani communicatio. — E esta outra: Uxor socia humanae rei atque divinae(22). — É que a mulher começou a participar da religião do marido, mulher a quem os próprios deuses, como diz Platão, introduziram na nova casa.

A mulher assim casada continua a cultuar os mortos; mas não é mais a seus antepassados que oferece o banquete fúnebre; não tem mais esse direito. O casamento desligou-a por completo da família do pai, quebrando todos os liames religiosos que a ligavam a ela. É aos antepassados do marido que oferece sacrifícios; pertence agora à sua família, e eles se tornaram seus antepassados. O casamento proporcionou-lhe um segundo nascimento. De ora em diante ela é a filha do marido, filiae loco, dizem os jurisconsultos. Não se pode pertencer nem a duas famílias, nem a duas religiões domésticas; a mulher passa, única e exclusivamente, a fazer parte da família e religião do marido. Veremos as conseqüências dessa regra no direito de sucessão.

A instituição do casamento sagrado também deve ser tão antiga na raça indo-européia quanto a religião doméstica, porque uma não existe sem a outra. Essa religião ensina ao homem que a união conjugal é algo mais que uma relação de sexos e uma afeição passageira, unindo os cônjuges pelo laço poderoso do mesmo culto e das mesmas crenças. Por sua vez, a cerimônia das núpcias era tão solene, e produzia efeitos tão graves, que não nos devemos surpreender se aqueles homens a julgavam permitida e possível com uma só mulher em cada casa. Tal religião não podia admitir a poligamia.

Pensa-se também que essa união era indissolúvel, e que o divórcio era quase impossível(23). O direito romano facilmente permitia dissolver o casamento por coemptio ou por usus; mas a dissolução do casamento religioso era muito difícil. Para que houvesse ruptura fazia-se necessária nova cerimônia religiosa, porque somente a religião podia desunir o que havia unido. O efeito da confarreatio não podia ser destruído senão pela diffarreatio. Os dois esposos que desejavam o divórcio apresentavam-se pela última vez diante do fogo sagrado comum, na presença de um sacerdote e de testemunhas. Como no dia do casamento, oferecia-se aos esposos um bolo de flor de farinha(24). Mas, provavelmente, em lugar de comê-lo, eles o rejeitavam. Depois, em lugar de preces, pronunciavam fórmulas “de caráter estranho, severo, vingativo, terrível(25),” uma espécie de maldição, pela qual a mulher renunciava ao culto e aos deuses do marido. Desde esse momento o laço religioso estava rompido. Com o término da comunhão de culto, toda outra comunhão cessava por direito, e o casamento ficava dissolvido.

CAPÍTULO III

CONTINUIDADE DA FAMÍLIA. PROIBIÇÃO DO CELIBATO. DIVÓRCIO EM CASO DE ESTERILIDADE. DESIGUALDADE ENTRE FILHO E FILHA

 

As crenças relativas aos mortos, e o culto que lhes era devido constituíram a família antiga, e lhe deram a maior parte de suas regras.

Vimos acima que o homem, depois da morte, era considerado pessoa feliz e divina, com a condição, porém, de que os vivos lhe oferecessem continuamente banquetes públicos. Se essas ofertas cessassem, o morto decairia para uma esfera inferior, tornando-se demônio desgraçado e malfazejo. Porque, quando as antigas gerações começaram a imaginar a vida futura, não pensaram em recompensas e castigos; acreditaram que a felicidade do morto não dependia da conduta que havia tido em vida, mas da que seus descendentes tinham a seu respeito. Por isso cada pai esperava da sua posteridade a série de banquetes fúnebres que devia assegurar a seus manes repouso e felicidade.

Essa opinião era o princípio fundamental do direito doméstico entre os antigos, derivando daí, em primeiro lugar, a regra de que cada família devia perpetuar-se para sempre. Os mortos tinham necessidade de que sua descendência não se extinguisse. No túmulo, onde viviam, não tinham outra preocupação. Seu único pensamento, como seu único interesse, era ter sempre um varão de seu sangue para levar-lhe ofertas ao túmulo. Também os hindus acreditavam que os mortos repetiam continuamente: “Que nasçam sempre em nossa estirpe filhos que nos tragam arroz, leite e mel.” — Dizia ainda: “A extinção de uma família causa a ruína da religião da mesma; os antepassados, privados das ofertas, precipitam-se na morada dos infelizes(1).”

Os homens da Itália e da Grécia pensaram assim por muito tempo. Se não nos deixaram em seus escritos uma expressão de suas crenças tão nítida como a que encontramos nos velhos livros do Oriente, pelo menos suas leis estão ainda lá, para atestar suas antigas opiniões. Em Atenas, a lei encarregava o primeiro magistrado da cidade de velar para que nenhuma família viesse a se extinguir(2). Da mesma forma, a lei romana cuidava da continuidade do culto doméstico(3). Lê-se em um discurso de orador ateniense: “Não há homem que, sabendo que deve morrer, cuide tão pouco de si mesmo, a ponto de deixar a família sem descendentes, porque então não haveria ninguém para prestar-lhe o culto devido aos mortos(4).” — Cada um, portanto, tinha grande interesse em deixar um filho, convencido de que disso dependia a felicidade de sua vida futura. Era até um dever para com os antepassados, porque sua felicidade durava somente enquanto existisse a família. Também as leis de Manu assim denominavam o filho mais velho: “aquele que é gerado para o cumprimento do dever.”

Tocamos aqui em um dos caracteres mais notáveis da família antiga. A religião, que a formou, exige imperiosamente sua continuação. Uma família que se extingue é um culto que morre. É necessário imaginar essas famílias na época em que as crenças ainda não haviam sido alteradas. Cada uma delas possui religião e deuses próprios, precioso depósito sobre o qual deve velar. A maior desgraça que sua piedade tem a temer é a extinção da estirpe, porque então sua religião desapareceria da terra; seu lar seria extinto, toda a série dos mortos esquecida e abandonada à eterna miséria. O grande interesse da vida humana é continuar a descendência para continuar o culto.

Em virtudes dessas opiniões, o celibato devia ser ao mesmo tempo impiedade grave e desgraça: impiedade, porque o celibatário punha em perigo a felicidade dos manes de sua família; desgraça, porque ele próprio não devia receber nenhum culto após a morte, desconheceria assim “o que alegra os manes”. Era, ao mesmo tempo, para ele e seus antepassados, uma espécie de condenação.

Pode-se pensar muito bem que, na falta de leis, essas crenças religiosas por muito tempo teriam bastado para impedir o celibato. Mas parece que, desde que houve leis, elas estabeleceram que o celibato era coisa má e digna de castigo. Dionísio de Halicarnasso, que consultou os velhos anais de Roma, disse existir uma lei antiga que obrigava os jovens a casar(5). O tratado das leis de Cícero, que reproduz quase sempre, sob forma filosófica, as antigas leis de Roma, contém uma que proíbe o celibato(6). Em Esparta, a legislação de Licurgo castigava com pena severa o homem que não se casasse(7). Sabe-se, por muitas anedotas, que quando o celibato deixou de ser proibido pelas leis, continuou a sê-lo pelos costumes. Parece, enfim, por uma passagem de Pólux, que em muitas cidades gregas a lei punia o celibato como crime(8). Isso era conforme às crenças: o homem não pertencia a si próprio, mas à família. Era o membro de uma série, que não devia interromper. Não nascera por acaso; deram-lhe a vida, para que continuasse a observar um culto; não devia deixar a vida sem estar seguro de que esse culto seria continuado depois de sua morte.

Mas não bastava gerar filhos. O filho que devia perpetuar a religião doméstica devia ser fruto de casamento religioso. O bastardo, filho natural, que os gregos chamavam nóthos, e os latinos spurius, não podia desempenhar o papel que a religião confiava ao filho. Com efeito, os laços sangüíneos apenas não constituíam a família; eram necessários ainda os laços de culto. Ora, o filho nascido de mulher que não se havia unido ao esposo pela cerimônia do casamento, não podia tomar parte no culto(9). Não tinha direito de oferecer o banquete fúnebre, e a família não se perpetuava por ele. Veremos mais adiante que, pela mesma razão, não tinha direito à herança.

O casamento, portanto, era obrigatório. Não tinha por finalidade o prazer; seu objetivo principal não era a união de duas criaturas que se convinham, e que desejavam unir-se para a felicidade ou sofrimentos da vida. O efeito do casamento, aos olhos da religião e das leis, era, unindo dois seres no mesmo culto doméstico, dar origem a um terceiro, apto a perpetuar esse culto. Isso pode ser claramente constatado pela fórmula sacramental pronunciada no ato do casamento: Ducere uxorem liberum quaerendorum causa — diziam os romanos; Páidon ep' arótoi gnesíon, diziam os gregos(10).

Como o casamento não era contratado senão para perpetuar a família, parece justo que podia ser anulado se a mulher fosse estéril. Nesses casos, o divórcio sempre constituiu direito entre os antigos; é até possível que tenha sido uma obrigação. Na Índia, a religião prescrevia que “a mulher estéril fosse substituída depois de oito anos(11).” — Nenhum texto formal prova que esse dever fosse idêntico tanto na Grécia quanto em Roma. Contudo, Heródoto cita dois reis de Esparta que foram constrangidos a repudiar as mulheres, porque eram estéreis(12). Quanto a Roma, é bastante conhecida a história de Carvílio Ruga, cujo divórcio é o primeiro mencionado pelos Anais de Roma. “Carvílio Ruga — diz Aulo Gélio — homem de grande família, separou-se da mulher mediante divórcio, porque não podia ter filhos dela. Amava-a ternamente, e só podia louvar-lhe a conduta. Mas sacrificou seu amor à religião do juramento, porque havia jurado — na fórmula do casamento — que a tomava por esposa a fim de ter filhos(13).”

A religião dizia que a família não podia extinguir-se; toda afeição e direito natural devia ceder diante dessa regra absoluta. Se o casamento era estéril por causa do marido, nem assim a família podia deixar de continuar. Nesse caso, um irmão ou parente do marido devia substituí-lo, e a mulher era impedida de se divorciar. A criança nascida dessa união era considerada filha do marido, e continuava seu culto. Tais eram as regras entre os antigos hindus; tornamos a encontrá-las nas leis de Atenas e de Esparta(14). Tal era a força imperiosa da religião! Tal a importância do dever religioso, que passava à frente de todos os outros!

Com muito mais razão as legislações antigas prescreviam o casamento da viúva, quando não tivesse filhos com o parente mais próximo do marido. O filho desse matrimônio era considerado filho do marido defunto(15).

O nascimento de uma menina não satisfazia o objetivo do casamento. Com efeito, a filha não podia continuar o culto, porque, no dia em que se casasse renunciaria à família e ao culto do pai, e passava a pertencer à família e religião do marido. A família, como o culto, não continuava senão pelos varões, fato capital, cujas conseqüências veremos adiante.

Portanto, o filho é que era esperado, é que era necessário; era ele que os antepassados, a família e o lar reclamavam. “Por ele — diziam as velhas leis dos hindus — o pai paga suas dívidas para com os manes dos antepassados, e assegura a si próprio a imortalidade.” — Esse filho não era menos precioso aos olhos dos gregos, porque mais tarde devia oferecer sacrifícios e banquetes fúnebres, e conservar por seu culto a religião doméstica. Assim, no velho Ésquilo, o filho é chamado salvador do lar paterno(16).

A entrada desse filho na família era assinalada por um ato religioso. Antes de mais nada, era necessário que fosse aceito pelo pai. Este, como dono e mestre vitalício do fogo sagrado, e representante dos antepassados, devia decidir se o recém-nascido era ou não da família. O nascimento constituía apenas o laço físico; a declaração do pai constituía o laço moral e religioso. Essa formalidade era igualmente obrigatória em Roma, na Grécia e na Índia.

Além disso, como vimos para a mulher, o filho necessitava de uma espécie de iniciação. Esta era feita pouco tempo depois do nascimento; em Roma, no nono dia; na Grécia, no décimo dia; na Índia, no décimo ou décimo segundo dia(17). Nesse dia, o pai reunia a família, chamava testemunhas, oferecia sacrifício aos manes. A criança era apresentada aos deuses domésticos; uma mulher carregava-o nos braços, e, correndo, dava com ele várias voltas ao redor do fogo sagrado(18). Essa cerimônia tinha duplo objetivo: primeiro, purificar a criança(19), isto é, tirar-lhe a impureza que os antigos supunham havia contraído pelo único fato da gestação; e depois iniciá-lo no culto sagrado doméstico. A partir desse momento a criança era admitida naquela espécie de sociedade sagrada, ou pequena igreja, como era chamada a família. Tinha agora uma religião, praticava seus ritos, estava apta a recitar suas preces; honrava os antepassados e mais tarde, por sua vez, viria a ser um antepassado honrado.

CAPÍTULO IV

ADOÇÃO E EMANCIPAÇÃO

 

O dever de perpetuar o culto doméstico foi a fonte do direito de adoção entre os antigos. A mesma religião que obrigava o homem a se casar, que concedia o divórcio em caso de esterilidade, e que, em caso de impotência ou de morte prematura, substituía o marido por um parente, oferecia ainda à família um último recurso para escapar à tão temida desgraça da extinção: esse recurso consistia no direito de adotar.

“Aquele a quem a natureza não deu filhos, pode adotar um, para que as cerimônias fúnebres não se extingam.” — Assim fala o velho legislador dos hindus(1). Temos um curioso discurso de um orador ateniense, em processo em que se contestava a um filho adotivo a legitimidade de sua adoção. O defensor mostra-nos, a princípio, por que motivo se adotava um filho: “Menéclio — diz ele — não queria morrer sem filhos; queria deixar alguém que o enterrasse, e que lhe oferecesse o culto fúnebre.” — Em seguida demonstra o que poderá acontecer se o tribunal anular sua adoção, e não só o que acontecerá a ele, mas àquele que o adotou; Menéclio morreu, mas é ainda o interesse de Menéclio que está em jogo: “Se anulardes a adoção, fareis de Menéclio um defunto sem filhos, e, conseqüentemente, ninguém lhe oferecerá sacrifícios fúnebres, e, finalmente, seu culto se extinguira(2).”

Adotar um filho, portanto, era velar pela continuidade da religião doméstica, pela salvação do fogo sagrado, pela continuação das ofertas fúnebres, pelo repouso dos manes dos antepassados. Como a adoção não tinha outra razão de ser além da necessidade de evitar a extinção do culto, seguia-se daí que não era permitida senão a quem não tinha filhos. As leis dos hindus é formal a esse respeito(3). A de Atenas não o é menos; todo o discurso de Demóstenes contra Leocares o prova(4). Nenhum texto preciso prova que o mesmo acontecesse com o direito romano antigo, e sabemos que no tempo de Gaio um mesmo homem podia ter filhos naturais e por adoção. Parece, contudo, que esse ponto não era admitido em direito nos tempos de Cícero, porque em uma de suas arengas o orador se exprime assim: “Qual é o direito que rege a adoção? Não é necessário que o adotante esteja em idade de não ter mais filhos, e que antes de adotar tenha procurado tê-los? Adotar é pedir à religião e à lei o que não se pôde conseguir com a natureza(5).” — Cícero ataca a adoção de Clódio, baseando-se no argumento de que o homem que o adotara já tinha um filho, e afirmando que aquela adoção era contrária ao direito religioso.

Quando se adotava um filho, era necessário antes de mais nada, iniciá-lo nos segredos do culto, “introduzi-lo na religião doméstica, aproximá-lo de seus penates(6).” Por isso a adoção era realizada por uma cerimônia sagrada, que parece ter sido muito semelhante à que assinalava o nascimento de um filho, pela qual o adotado era admitido ao lar e se associava à religião do pai adotivo. Deuses, objetos sagrados, ritos, preces, tudo se tornava comum entre ambos. Diziam-lhe então: In sacra transiit: Passou para o culto de sua nova família(7).

Por isso mesmo o filho adotivo renunciava ao culto da antiga(8). Vimos, com efeito, que, de acordo com essas velhas crenças, o mesmo homem não podia sacrificar a dois lares, nem honrar duas séries de antepassados. Admitido em nova família, a casa paterna tornava-se-lhe estranha. Não tinha nada mais em comum com o lar que o vira nascer, e não podia mais oferecer banquetes fúnebres a seus antepassados. Quebrara-se o vínculo do nascimento; o vínculo do novo culto apoderava-se dele(9). O homem se tornava tão completamente estranho à antiga família que, se morresse seu pai natural não tinha direito de se encarregar dos funerais ou de conduzir o enterro. O filho adotivo não podia mais voltar para a antiga família; quando muito, a lei permitia-lhe que, tendo um filho, o deixasse em seu lugar na família que o adotara. Considerava-se que assim a continuidade dessa família estava assegurada, ele podia sair. Mas, nesse caso, tinha de romper todos os laços que o ligavam a seu filho(10).

À adoção, correspondia como correlativo, a emancipação. Para que um filho pudesse entrar na nova família, era necessário que pudesse sair da antiga, isto é, que sua religião o permitisse(11). O efeito principal da emancipação era a renúncia ao culto da família onde nascera. Os romanos designavam esse ato pelo nome bem significativo de sacrorum detestatio(12). O filho emancipado não era mais membro da família, nem pela religião, nem pelo direito.

CAPÍTULO V

O PARENTESCO. O QUE OS ROMANOS ENTENDIAM POR AGNAÇÃO

 

Platão diz que parentesco é a comunidade dos mesmos deuses domésticos(1). Dois irmãos, diz ainda Plutarco, são dois homens que têm o dever de fazerem os mesmos sacrifícios, de terem os mesmos deuses paternais, de partilharem do mesmo túmulo(2). Quando Demóstenes nos quer provar que dois homens são parentes, mostra que adotam o mesmo culto, e oferecem o banquete fúnebre na mesma sepultura. Com efeito, a religião doméstica é que constituía o parentesco. Dois homens podiam dizer-se parentes quando tivessem os mesmos deuses, o mesmo lar, o mesmo banquete fúnebre.

Ora, observamos precedentemente que o direito de oferecer sacrifícios ao fogo sagrado só se transmitia de varão para varão, e que o culto dos mortos não se dirigia senão aos ascendentes em linha masculina. Resultou, portanto, dessa regra religiosa, que não se podia ser parente pelas mulheres. Na opinião das gerações antigas a mulher não transmitia nem a existência, nem o culto. O filho recebia tudo do pai. Não se podia, aliás, pertencer a duas famílias, invocar dois lares; o filho não tinha, portanto, outra religião nem outra família que a do pai(3). Como poderia, pois, ter uma família materna? Sua mãe, durante a celebração dos ritos matrimoniais, renunciara de modo absoluto à própria família; desde esse tempo oferecera banquetes fúnebres aos antepassados do esposo, como se fora sua filha, e não oferecia mais a seus próprios antepassados, porque não era mais considerada como descendente deles. Não conservava laços nem religiosos, nem de direito com a família na qual nascera. Com muito mais razão, portanto, seu filho nada tinha a ver com essa família.

O princípio do parentesco não era o ato material do nascimento, era o culto. Isso se pode ver claramente na Índia. Aí, o chefe de família, duas vezes por mês, oferece o banquete fúnebre; apresenta um bolo aos manes de seu pai, outro ao avô paterno, um terceiro ao bisavô paterno, e jamais àqueles dos quais descende pelas mulheres. Depois, subindo mais alto, mas sempre na mesma linha, faz uma oferta ao quarto, ao quinto e ao sexto ascendente, com a diferença de que para estes a oferenda é mais reduzida: uma simples libação de água, e alguns grãos de arroz. Esse é o banquete fúnebre, e é pela observância desses ritos que se mede o parentesco. Quando dois homens, que oferecem separadamente seus banquetes, remontando cada um a uma série de seus ancestrais, encontrarem um que seja comum a ambos, esses dois homens são parentes. Chamam-se samanodacas, se o antepassado comum é daqueles a quem se oferece apenas libação de água; e sapindas, se lhe oferecem também um bolo(4). Calculando, de acordo com nossos costumes, o parentesco dos sapindas iria até o sétimo grau, e a dos samanodacas até o décimo quarto. Em um e outro caso o parentesco é conhecido pelos sacrifícios comuns, e por esse mesmo sistema vê-se por que o parentesco pelas mulheres não pode ser admitido.

No Ocidente acontecia o mesmo. Muito se discutiu sobre o que os jurisconsultos romanos entendiam por agnação. Mas o problema torna-se de fácil resolução se compararmos a agnação com a religião doméstica. Assim como a religião não se transmitia senão de varão para varão, assim também ficou atestado pelos antigos jurisconsultos que dois homens não podiam ser agnados entre si senão quando, remontando sempre de varão em varão, encontravam antepassados comuns(5). A regra para a agnação era, portanto, idêntica à do culto. Entre essas duas coisas havia uma relação manifesta. A agnação não era nada mais que o parentesco tal como a religião o estabeleceu a princípio.

Para tornar esta verdade mais clara, tracemos este quadro de uma família romana.

  Lucius Cornelius Scipio, morto no ano 250 a.C.   
  P. Cornelius Scipio
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 Cn. Cornelius Scipio
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 P. Cornelius
Scipio Africanus
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 L. Cornelius
Scipio Asiaticus
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P. Cornelius
Scipio Nasica
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P. Cornelius
Scipio
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 Cornélia
esposa de
Sempronius Gracchus
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L. Cornelius
Scipio Asiaticus
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P. Cornelius Scipio
Nasica Corculum
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P. Cornelius
Scipio Aemilianus
nascido na família
Emília, adotado pela
família Cornélia
 Tibério e
Caius Gracchus
L. Cornelius
Scipio Asiaticus
P. Cornelius Scipio
Nasica Serapio

 

Nesse quadro, a quinta geração, que vivia pelo ano 140 antes de Jesus Cristo, é representada por quatro pessoas. Seriam todos eles parentes entre si? Sê-lo-iam, de acordo com nossas idéias modernas, mas não o eram na opinião dos romanos. Examinemos, com efeito, se possuíam o mesmo culto doméstico, isto é, se faziam ofertas aos mesmos antepassados. Suponhamos o terceiro, Cipião Asiático, o último de seu ramo, oferecendo no dia determinado o banquete fúnebre; remontando de varão em varão ele encontra por terceiro antepassado a Públio Cipião. Do mesmo modo, Cipião Emiliano, oferecendo o sacrifício, tornará a encontrar na série de seus ascendentes ao mesmo Públio Cipião. Portanto, Cipião Asiático e Cipião Emiliano são parentes entre si; entre os hindus chamar-se-iam sapindas.

Por outro lado, Cipião Serapião, tem por quarto antepassado a Lúcio Cornélio Cipião, que também é o quarto antepassado de Cipião Emiliano. São, portanto, parentes entre si; entre os hindus, chamar-se-iam samanodacas. Na língua jurídica e religiosa de Roma esses três Cipiões são agnados; os dois primeiros, em sexto grau; o terceiro, no oitavo grau em relação a eles.

O mesmo não acontece com Tibério Graco. Este homem que, de acordo com nossos costumes modernos, seria o parente mais próximo de Cipião Emiliano, não é seu parente nem em grau afastado. Pouco importa, com efeito, para Tibério, que ele seja filho de Cornélia, a filha dos Cipiões; nem ele, nem a própria Cornélia pertencem a esta família pela religião. Ele não tem outros antepassados senão os Semprônios, e é a eles que oferece os banquetes fúnebres; remontando à série de seus ascendentes, não encontrará ninguém além de Semprônio. Cipião Emiliano e Tibério Graco, portanto, não são agnados. Os laços de sangue não bastam para estabelecer parentesco; é necessário o laço do culto.

Por aí se compreende por que, aos olhos da lei romana, dois irmãos consangüíneos eram agnados, e dois irmãos uterinos não o eram. E nem se pode afirmar que a descendência pelos varões era o princípio imutável sobre o qual se baseava o parentesco. Não era pelo nascimento, mas pelo culto que se reconhecia verdadeiramente os agnados. Com efeito, o filho que a emancipação desligara do culto deixava de ser agnado de seu pai; o estranho que havia sido adotado, isto é, admitido ao culto, tornava-se agnado do adotante, e mesmo de toda a família. Tanto é verdade que só religião é que determinava o parentesco.

Sem dúvida, na Índia, na Grécia, como em Roma, houve uma época em que o parentesco pelo culto não foi mais o único a ser considerado. À medida que a antiga religião se enfraquece, a voz do sangue fala mais alto, e o parentesco por nascimento foi reconhecido em direito. Os romanos chamaram cognatio essa espécie de parentesco, que era absolutamente independente das regras da religião doméstica. Quando lemos os jurisconsultos, desde Cícero até Justiniano, vemos os dois sistemas de parentesco rivalizando entre si, e disputando o domínio do direito. Mas no tempo das Doze Tábuas somente se conhecia o parentesco por agnação, que era o único que conferia direitos de sucessão. Mais adiante veremos como o mesmo aconteceu entre os gregos.

CAPÍTULO VI

O DIREITO DE PROPRIEDADE

 

Eis uma instituição dos antigos sobre a qual não devemos formar idéia pelo que vemos a nosso redor. Os antigos basearam o direito de propriedade sobre princípios que não são mais os das gerações presentes, e daqui resultou que as leis pelas quais o garantiram são sensivelmente diversas das nossas.

Sabemos que há raças que jamais chegaram a instituir entre si a propriedade privada; outras só a admitiram depois de muito tempo e a muito custo. Com efeito, não é um problema fácil, na origem das sociedades, saber se o indivíduo pode apropriar-se do solo, e estabelecer uma união tão forte entre si e uma parte da terra a ponto de poder dizer: Esta terra é minha, esta terra é como que parte de mim mesmo. Os tártaros admitem direitos de propriedade quando se trata de rebanhos, e não o compreendem quando se trata do solo. Entre os antigos germanos, de acordo com alguns autores, a terra não pertencia a ninguém; todos os anos a tribo designava a cada um de seus membros um lote para cultivar, lote que era trocado no ano seguinte. O germano era proprietário da colheita, e não da terra. O mesmo acontece ainda em uma parte da raça semítica, e entre alguns povos eslavos.

Pelo contrário, as populações da Grécia e da Itália, desde a mais remota antiguidade, sempre reconheceram e praticaram a propriedade privada. Não ficou nenhuma lembrança histórica de época em que a terra fosse comum(1) e também nada se vê que se assemelhe a essa divisão anual dos campos, praticada entre os germanos. Há até um fato bastante notável. Enquanto as raças que não concediam ao indivíduo a propriedade do solo, concedem-lhe pelo menos tal direito sobre os frutos do trabalho, isto é, das colheitas, entre os gregos acontecia o contrário. Em algumas cidades os cidadãos eram obrigados a reunir em comum as colheitas, ou, pelo menos, a maior parte delas, e deviam consumi-las em comum(2); o indivíduo, portanto, não era absoluto senhor do trigo que havia colhido; mas ao mesmo tempo, por notável contradição, tinha absolutos direitos de propriedade sobre o solo. A terra para ele valia mais que a colheita. Parece que entre os gregos a concepção do direito de propriedade tenha seguido caminho absolutamente oposto ao que parece natural. Não se aplicou primeiro à colheita e depois ao solo. Seguiu-se a ordem inversa.

Há três coisas que, desde as mais antigas eras, encontram-se fundadas e solidamente estabelecidas nas sociedades grega e itálica: a religião doméstica, a família, o direito de propriedade; três coisas que tiveram entre si, na origem, uma relação evidente, e que parecem terem sido inseparáveis.

A idéia de propriedade privada fazia parte da própria religião. Cada família tinha seu lar e seus antepassados. Esses deuses não podiam ser adorados senão por ela, e não protegiam senão a ela; eram sua propriedade exclusiva.

Ora, entre esses deuses e o solo, os homens das épocas mais antigas divisavam uma relação misteriosa. Tomemos, em primeiro lugar, o lar; esse altar é o símbolo da vida sedentária, como o nome bem o indica(3). Deve ser colocado sobre a terra, e, uma vez construído, não o devem mudar mais de lugar. O deus da família deseja possuir morada fixa; materialmente, é difícil transportar a terra sobre a qual ele brilha; religiosamente, isso é mais difícil ainda, e não é permitido ao homem senão quando é premido pela dura necessidade, expulso por um inimigo, ou se a terra não o puder sustentar por ser estéril. Quando se constrói o lar, é com o pensamento e a esperança de que continue sempre no mesmo lugar. O deus ali se instala, não por um dia, nem pelo espaço de uma vida humana, mas por todo o tempo em que dure essa família, e enquanto restar alguém que alimente a chama do sacrifício. Assim o lar toma posse da terra; essa parte da terra torna-se sua, é sua propriedade.

E a família, que por dever e por religião fica sempre agrupada ao redor desse altar, fixa-se ao solo como o próprio altar. A idéia de domicílio surge naturalmente. A família está ligada ao altar, o altar ao solo; estabelece-se estreita relação entre a terra e a família. Aí deve ter sua morada permanente, que jamais abandonará, a não ser quando obrigada por força superior. Como o lar, a família ocupará sempre esse lugar. Esse lugar lhe pertence, é sua propriedade; e não de um homem somente, mas de toda uma família, cujos diferentes membros devem, um após outro, nascer e morrer ali.

Sigamos o raciocínio dos antigos. Dois lares representam duas divindades distintas, que nunca se unem ou se confundem; isso é tão verdade, que o casamento entre duas famílias não estabelece aliança entre seus deuses. O lar deve ser isolado, isto é, separado claramente de tudo o que não lhe pertence; os estranhos não devem aproximar-se dele no momento em que se celebram as cerimônias do culto; não devem nem mesmo sê-lo; por isso os manes são conhecidos como deuses ocultos, mychioi ou deuses interiores penates. Para que essa regra religiosa seja rigorosamente cumprida, é necessário que ao redor do altar, a certa distância, haja uma cerca. Pouco importa que seja uma paliçada, uma sebe ou um muro de pedras. Seja qual for, ela marca a divisa que separa o domínio de um lar. Esse recinto é considerado sagrado(4). Ultrapassá-lo, é ato de impiedade. O deus vela sobre ele, e toma-o sob sua guarda; por isso dão a esse deus o epíteto de erkéios(5). Essa linha divisória traçada pela religião, e por ela protegida é o emblema mais certo, a marca mais irrecusável do direito de propriedade.

Reportemo-nos às idades primitivas da raça ariana. O recinto sagrado, que os gregos chamam de érkos, e os latinos de herctum, e o recinto no qual a família tem sua casa, seus rebanhos, o pequeno campo que cultiva. No meio, levanta-se o lar protetor. Vamos para as idades seguintes: a população alcançou a Grécia e a Itália, e construiu cidades. As casas estão próximas umas das outras, e, no entanto, não são contíguas. O recinto sagrado ainda existe, mas em proporções menores; mais comumente ficou reduzido a um pequeno muro, uma vala, um sulco, ou a uma simples faixa de terra de alguns pés de largura. Seja como for, duas casas não devem ser vizinhas; a contigüidade é considerada impossível. A mesma parede não pode ser comum a duas casas, porque então o recinto sagrado dos deuses domésticos desapareceria. Em Roma, a lei fixa em dois pés e meio a largura do espaço que sempre deve separar duas casas, e esse espaço é consagrado ao “deus da divisa(6).”

O resultado dessas velhas regras religiosas é que entre os antigos jamais se estabeleceu uma vida de comunidade. O falanstério nunca foi conhecido. O próprio Pitágoras não conseguiu estabelecer instituições às quais a religião íntima dos homens resistia. Não se encontra também, em nenhuma época da vida dos antigos, nada que se assemelhe a essa promiscuidade das aldeias, tão comum na França do século doze. Como cada família tinha seus deuses e seu culto, devia ter também seu lugar particular sobre a terra, seu domicílio isolado, sua propriedade.

Os gregos diziam que o lar havia ensinado aos homens a construir casas(7). Com efeito, o homem, fixado pela religião em um lugar que não pensava abandonar jamais, logo deve ter pensado em levantar aí uma construção sólida. A tenda convém ao árabe, o carro ao tártaro, mas uma família que tem um altar doméstico precisa de uma casa que dure. À cabana de terra ou de madeira seguiu-se logo a casa de pedra. E esta não foi construída somente para a vida de um homem, mas para a família, cujas gerações deviam suceder-se na mesma morada.

A casa situava-se sempre no recinto sagrado. Entre os gregos, dividia-se em duas partes o quadrado formado pela cerca: a primeira parte era o pátio; a casa ocupava a segunda parte. O altar, colocado mais ou menos no centro da área total, encontrava-se assim no fundo do pátio, e perto da entrada da casa. Em Roma a disposição era diferente, mas o princípio era o mesmo. O altar ficava colocado no meio do recinto, mas as paredes elevavam-se ao seu redor pelos quatro lados, de maneira a fechá-lo no meio de um pequeno pátio.

Vê-se claramente o pensamento que inspirou esse sistema de construção: as paredes levantam-se ao redor do altar, para isolá-lo e protegê-lo; e podemos afirmar, como diziam os gregos, que a religião ensinou a construir casas.

Nessa casa a família é senhora e proprietária; a divindade doméstica lhe assegura esse direito. A casa é consagrada pela presença perpétua dos deuses; ela é o templo que os guarda. — “Que há de mais sagrado — diz Cícero — que a morada de um homem? Lá está o altar, lá brilha o fogo sagrado, lá estão as coisas santas e a religião(8).” — Penetrar nessa casa com intenções malévolas era sacrilégio. O domicílio era inviolável. Segundo uma tradição romana, o deus doméstico afugentava ladrões e afastava inimigos(9).

Passemos a outro objeto do culto, o túmulo, e veremos que a ele se ligam as mesmas idéias. O túmulo tinha grande importância na religião dos antigos, porque, por uma parte, devia-se cultuar os mortos, e, por outra, a principal cerimônia desse culto, isto é, o banquete fúnebre, devia ser realizado no mesmo lugar onde repousavam os antepassados(10). A família tinha, portanto, um túmulo comum, onde seus membros deviam repousar sucessivamente. Para o túmulo observavam-se as mesmas regras que para o fogo sagrado; não era permitido juntar duas famílias em uma mesma sepultura, como não se podiam unir dois altares domésticos em uma só casa. Tanto era impiedade enterrar um morto fora do túmulo da família, como colocar nesse túmulo o corpo de um estranho(11). A religião doméstica, na vida ou na morte, separava cada família de todas as outras, e afastava severamente qualquer aparência de comunidade. Assim como as casas não deviam ser contíguas, os túmulos não deviam ser vizinhos; cada um deles, como a casa, tinha uma espécie de baliza, que o isolava.

Como o caráter de propriedade privada está manifesto em tudo isso! Os mortos são deuses que pertencem apenas a uma família, e que apenas ela tem o direito de invocar. Esses mortos tomaram posse do solo, vivem sob esse pequeno outeiro, e ninguém, que não pertença à família, pode pensar em unir-se a eles. Ninguém, aliás, tem o direito de privá-los da terra que ocupam; um túmulo, entre os antigos, jamais pode ser mudado ou destruído(12); as leis mais severas o proíbem. Eis, portanto, uma parte da terra que, em nome da religião, torna-se objeto de propriedade perpétua para cada família. A família apropriou-se da terra enterrando nela os mortos, e ali se fixa para sempre. O membro mais novo dessa família pode dizer legitimamente: Esta terra é minha. — E ela lhe pertence de tal modo, que lhe é inseparável, não tendo nem mesmo o direito de desfazer-se dela. O solo onde repousam seus mortos é inalienável e imprescritível. A lei romana exige que, se uma família vende o campo onde está o túmulo, continua no entanto proprietária desse túmulo, e conserva eternamente o direito de atravessar o campo para nele cumprir as cerimônias do culto(13).

Era antigo costume enterrar os mortos, não em cemitérios, ou à beira das estradas, mas no campo de cada família. Esse costume dos tempos antigos é confirmado por uma lei de Sólon, e por diversas passagens de Plutarco(14). Lemos em um discurso de Demóstenes que, ainda em seu tempo, cada família enterrava seus mortos no próprio campo, e que quando se comprava uma propriedade na Ática, nela encontravam a sepultura dos antigos proprietários(15). Quanto à Itália, esse mesmo costume nos é atestado por uma lei das Doze Tábuas, pelos textos de dois jurisconsultos, e por esta frase de Siculo Flaco: “Antigamente havia duas maneiras de colocar os túmulos: uns punham-nos no limite dos campos, outros no meio(16).”

De acordo com esse costume, pode-se imaginar como a idéia de propriedade se tenha facilmente estendido da pequena colina onde repousavam os mortos ao campo que o rodeava. Pode-se ler em livro do velho Catão uma oração pela qual um lavrador italiano rogava aos manes que velassem sobre seu campo, guardando-o contra os ladrões, e concedendo-lhe colheita abundante. Assim as almas dos mortos estendiam sua ação tutelar, e com ela o direito de propriedade até os limites do domínio. Por meio delas a família era a única senhora daquele campo. A sepultura havia estabelecido a união indissolúvel da família com a terra, isto é, a propriedade.

Entre a maior parte das sociedades primitivas, foi pela religião que se estabeleceu o direito de propriedade. Na Bíblia, o Senhor diz a Abraão: “Sou o Eterno, que te fez sair da Ur dos caldeus, a fim de te dar este país.” — E a Moisés: “Eu vos farei entrar no país que jurei dar a Abraão, e que eu vos darei como herança.” — Assim Deus, proprietário primitivo por direito de criação, delegou ao homem sua propriedade sobre uma parte do solo(17). Há algo análogo entre as antigas populações greco-itálicas. Não é verdade que a religião de Júpiter tenha estabelecido esse direito, talvez porque ainda não existisse. Os deuses que conferiram a cada família direitos sobre a terra foram os deuses domésticos, o lar e os manes. A primeira religião que teve poder sobre suas almas foi também a que instituiu entre eles a propriedade.

É bastante evidente que a propriedade privada era uma instituição da qual a religião doméstica não se podia eximir. Essa religião prescrevia que se isolasse o domicílio e a sepultura: a vida em comum, portanto, tornava-se impossível. A mesma religião ordenava que o altar fosse fixado ao solo, e que a sepultura não fosse nem mudada, nem destruída. Suprimi a propriedade, e o altar ficará errante, as famílias confundir-se-ão, os mortos ficarão abandonados e sem culto. Por causa do altar irremovível e da sepultura permanente, a família tomou posse do solo; a terra, de certo modo, foi imbuída e penetrada pela religião do lar e dos antepassados. Por essa razão o homem das antigas idades ficou dispensado de resolver problemas muito difíceis. Sem discussão, sem trabalho, sem sombra de hesitação, chegou de um só golpe, e em virtude de suas crenças, à concepção do direito de propriedade, desse direito que é a origem de toda a civilização, pois que por ele o homem beneficia a terra, e se torna melhor a si mesmo.

Não foram as leis que a princípio garantiram o direito de propriedade; foi a religião. Cada domínio estava sob os olhos da divindade doméstica, que velava sobre ele(18). Cada campo devia estar rodeado, como o vimos para a casa, de uma cerca que o separava nitidamente dos domínios das outras famílias. Essa cerca não era um muro de pedra; era uma faixa de terra de alguns pés de largura, que devia permanecer inculta, e que a charrua jamais devia tocar. Esse espaço era sagrado; a lei romana declarava-o imprescritível(19); ele pertencia à religião. Em determinados dias do mês e do ano, o pai de família dava a volta a seu campo, seguindo essa linha; levava à sua frente as vítimas, cantava hinos, oferecia sacrifícios(20). Com essa cerimônia acreditava despertar a benevolência dos deuses em relação a seu campo e à sua casa; sobretudo, marcava seu direito de propriedade levando ao redor do campo seu culto doméstico. O caminho seguido pelas vítimas e as preces era o limite inviolável do domínio.

Sobre essa linha, de distância em distância, o homem colocava algumas pedras grandes, ou troncos de árvores, denominados termos. Podemos avaliar o que eram esses limites e que idéias inspiravam pela maneira pela qual a piedade dos homens depositava-os em terra. — “Eis — diz Siculo Flaco — o que nossos antepassados faziam: começavam por cavar um pequeno buraco, e, levando o termo à sua borda, coroavam-no de grinaldas, de ervas e flores. Depois ofereciam um sacrifício; imolada a vítima, derramavam o sangue no fosso, na qual lançavam carvões acesos (talvez acesos no fogo sagrado), semente, bolos, frutas, um pouco de vinho e mel. Quando tudo se consumia, sobre as cinzas ainda quentes, enterrava-se a pedra ou o pedaço de madeira(21).” — Vê-se por aí claramente que essa cerimônia tinha por objeto fazer do termo uma espécie de representante sagrado do culto doméstico. Para conservar-lhe esse caráter, cada ano renovava-se o ato sagrado, fazendo libações e recitando preces. O termo colocado em terra, era, de algum modo, a religião doméstica implantada no solo, para marcá-lo para sempre como propriedade da família. Mais tarde, com a ajuda da poesia, o termo foi considerado como um deus distinto e pessoal.

O uso dos termos ou limites sagrados dos campos parece ter sido universal na raça indo-européia. Existia entre os hindus, em idades remotíssimas, e as cerimônias sagradas da demarcação tinha entre eles grande analogia com as que Siculo Flaco descreveu para a Itália(22). Antes de Roma, encontramos o termo entre os sabinos(23), como também entre os etruscos. Os helenos também tinham seus marcos sagrados, que chamavam de òpoi, theà órioi(24).

O marco, uma vez plantado de acordo com os ritos, não havia poder no mundo capaz de movê-lo. Devia ficar eternamente no mesmo lugar. Esse princípio religioso era conhecido em Roma por uma lenda: Júpiter, desejando alojar-se sobre o monte Capitolino, para nele construir um templo, não o conseguiu por não poder tirar de lá o deus Termo. Essa velha tradição demonstra-nos como a propriedade era sagrada, porque o vocábulo imóvel não significa nada mais que propriedade inviolável.

O deus Termo, com efeito, guardava os limites do campo, e velava sobre ele. O vizinho não ousava aproximar-se muito, “porque então — como diz Ovídio — o deus, que se sentia ferido pela enxada ou pela relha do arado, gritava: Pára, este campo é meu; ali está o teu(25).” — Para invadir o campo de uma família era necessário derrubar ou deslocar um marco; ora, esse marco era um deus. O sacrilégio era horrível e o castigo severo; a velha lei romana dizia: “Se tocou o marco com a relha do arado, o homem e seus bois devem ser lançados aos deuses infernais(26).” — Isso significava que o homem e os bois seriam imolados em expiação. A lei etrusca, falando em nome da religião, exprimia-se assim: “Aquele que tocar ou remover um marco será condenado pelos deuses; sua casa desaparecerá, sua raça se extinguira; sua terra não produzirá mais frutos; o granizo, a ferrugem, o calor da canícula destruirão suas colheitas; os membros do culpado cobrir-se-ão de úlceras, e cairão de consumpção(27).”

Não possuímos o texto da lei ateniense sobre o assunto; não nos restam senão três palavras que significam: “Não ultrapasse os limites.” — Mas Platão parece completar o pensamento do legislador quando diz: “Nossa primeira lei deve ser esta: Que ninguém toque no marco que separa seu campo do do vizinho, porque ele deve continuar imóvel. Que ninguém cuide em deslocar a pequena pedra que separa a amizade da inimizade, a pedra que, por juramento, deve permanecer em seu lugar(28).”

De todas essas crenças, de todos esses costumes, de todas essas leis, resulta claramente que foi a religião doméstica que ensinou o homem a se apropriar da terra, e que lhe assegurou direitos sobre a mesma.

Compreende-se facilmente que o direito de propriedade, assim concebido e estabelecido, foi muito mais completo e mais absoluto em seus efeitos, do que o poderia ser em nossas sociedades modernas, onde se baseia sobre outros princípios. A propriedade era tão inerente à religião doméstica, que uma família não podia renunciar nem a uma, nem à outra. A casa e o campo estavam como que incorporadas a ela, e ela não podia nem perdê-la, nem privar-se dela. Platão, em seu Tratado das Leis, não pretendia dizer novidades quando proibia ao proprietário vender o campo; apenas lembrava uma lei antiga. Tudo leva a crer que nos tempos antigos a propriedade fosse inalienável. É de todos sabido que em Esparta era proibida a venda de terras(29). A mesma interdição estava escrita nas leis de Locres e de Leucádio(30). Fidon de Corinto, legislador do século IX, prescrevia que o número das famílias e das propriedades ficasse sempre o mesmo(31). Ora, essa prescrição não podia ser observada se não fosse proibido às famílias vender as próprias terras, ou dividi-las. A lei de Sólon, posterior a sete ou oito gerações à que Fidon de Corinto, não proibia mais ao homem a venda das propriedades, mas castigava o vendedor com pena severa, a perda dos direitos de cidadão(32). Enfim, Aristóteles nos informa de maneira geral que em muitas cidades as antigas legislações interdiziam as vendas das terras(33).

Tais leis não nos devem surpreender. Baseai a propriedade sobre o direito do trabalho, e o homem poderá renunciar à sua posse. Baseia-o sobre a religião, e ele não o poderá mais fazê-lo: um laço mais forte que a vontade humana o une à terra. Além do mais, esse campo, onde está o túmulo, onde vivem os antepassados divinos, onde a família deve celebrar um culto ininterrupto, não é propriedade de apenas um homem, mas de toda uma família. Não é o indivíduo, que agora está vivo, que estabeleceu direitos sobre a terra, mas o deus doméstico. O indivíduo a tem apenas em depósito; ela pertence àqueles que estão mortos e aos que estão por nascer; forma um só corpo com a família, e não pode mais separar-se da mesma. Destacar uma da outra, é alterar o culto e ofender à religião. Entre os hindus, a propriedade, também baseada sobre o culto, era igualmente inalienável(34).

Não conhecemos o direito romano senão a partir das Doze Tábuas; é claro que nessa época a venda de propriedades já era permitida. Mas há razões para pensar que, nos primeiros tempos de Roma, e na Itália antes da fundação de Roma, a terra era tão inalienável quanto na Grécia. Se não nos resta nenhuma testemunha dessa antiga lei, pelo menos se podem perceber pequenas mudanças que foram sendo introduzidas pouco a pouco. A lei das Doze Tábuas, deixando ao túmulo seu caráter inalienável, libertou o campo. Permitiu-se depois a divisão da propriedade, caso houvesse muitos irmãos, mas com a condição de se realizar nova cerimônia religiosa: somente a religião podia dividir o que a religião havia outrora proclamado indivisível. Enfim, permitiu-se a venda das terras, mas para isso ainda eram necessários algumas formalidades de caráter religioso. Essa venda não podia ser realizada senão na presença do libripens, e com todos os ritos simbólicos da mancipação. Na Grécia vê-se algo análogo: a venda de uma casa ou de uma propriedade era acompanhada de um sacrifício aos deuses(35). Parece que qualquer mudança de propriedade tinha necessidade de ser autorizada pela religião.

Se o homem não podia absolutamente, ou com muita dificuldade, desfazer-se da terra, com muito mais razão não o podiam privar dela contra sua vontade. A expropriação motivada pela utilidade pública era desconhecida entre os antigos. A confiscação não era praticada senão como conseqüência da pena de exílio(36), isto é, quando um homem, despojado do título de cidadão, não podia mais exercer nenhum direito sobre o solo da cidade. A expropriação por dívidas também é desconhecida pelo antigo direito das cidades(37). A lei das Doze Tábuas não poupa, naturalmente, o devedor; contudo, não permite que sua propriedade seja confiscada em proveito do credor. O corpo do homem responde pela dívida, mas não a terra, porque a terra é inseparável da família. É mais fácil escravizar um homem, que tirar-lhe o direito de propriedade, que pertence mais à família do que a ele próprio; o devedor é posto nas mãos do credor; sua terra, de algum modo, segue-o na escravidão. O patrão que usa em seu proveito das forças físicas do homem, usufrui também os frutos da terra, mas não se torna proprietário da mesma. Tanto o direito de propriedade é inviolável, e superior a tudo(38)!

CAPÍTULO VII

DIREITO DE SUCESSÃO

 

1.° Natureza e princípio do direito de sucessão entre os antigos

Como o direito de propriedade havia sido estabelecido para cumprimento de um culto hereditário, não era possível que se extinguisse depois da curta existência de um indivíduo. O homem morre, o culto continua; o lar não deve extinguir-se, nem o túmulo deve ser abandonado. Com a continuação da religião doméstica, o direito de propriedade também permanece.

Duas coisas estão estritamente unidas, tanto nas crenças como nas leis dos antigos: o culto da família e a propriedade. Por isso, esta era uma regra sem exceção, tanto no direito grego quanto no romano: não se podia adquirir a propriedade sem o culto, nem o culto sem a propriedade. — “A religião prescreve — diz Cícero — que os bens e o culto de cada família sejam inseparáveis, e que o cuidado dos sacrifícios seja sempre confiado àquele a quem cabe a herança(1).” — Em Atenas, os termos em que um litigante reclamava uma sucessão eram estes: “Refleti bem, juízes, e dizei qual de nós deve herdar os bens de Filoctémon, e fazer os sacrifícios sobre seu túmulo(2).” — Pode-se afirmar mais claramente que o cuidado do culto não se podia separar da sucessão? O mesmo acontece na Índia: “A pessoa que herda, seja quem for, fica encarregada de fazer ofertas sobre o túmulo(3).”

Deste princípio originaram-se todas as regras do direito de sucessão entre os antigos. A primeira é que sendo a religião doméstica, como vimos, hereditária de varão para varão, o mesmo acontecia com a propriedade. Como o filho é a continuação natural e obrigatória do culto, também é herdeiro dos bens. Assim é que surgiu a regra da hereditariedade; ela não é o resultado de uma simples convenção feita entre os homens; ela deriva de suas crenças, de sua religião, do que há de mais poderoso sobre as almas. O que faz com que o filho herde não é a vontade do pai. O pai não tem necessidade de fazer testamento; o filho herda de pleno direito — ipso jure heres exsistit — diz o jurisconsulto. É um herdeiro necessário: heres necessarius(4). Não tem que aceitar ou recusar a herança. A continuação da propriedade, como a do culto, é para ele obrigação e direito. Quer queira quer não, a herança lhe cabe, seja qual for, mesmo com suas obrigações e dívidas. O benefício de inventário e o benefício de desistência não são admitidos para o filho no direito grego, e não foram introduzidos senão muito tarde no direito romano.

A linguagem jurídica de Roma chama o filho de heres suus, como se dissesse: heres sui ipsius. Com efeito, ele não herda senão de si próprio. Entre o pai e ele não há nem doação, nem legado, nem mudança de propriedade. Há simplesmente continuação: Morte parentis continuatur dominium. — Ainda em vida do pai, o filho era co-proprietário do campo e da casa: Vivo quoque patre dominus existimatur(5).

Para se fazer uma idéia verdadeira da herança entre os antigos não é necessário pensar em uma fortuna que passa de mão em mão. A fortuna é imóvel, como o fogo sagrado e o túmulo aos quais está unida. O homem é que passa. É o homem que, à medida que a família estende suas gerações, chega à hora marcada para continuar o culto e cuidar de seu domínio.

2.° O filho herda, e não a filha

Aqui é que as leis antigas, à primeira vista, parecem estranhas e injustas. Sente-se alguma surpresa quando vê que no direito romano a filha não herda do pai, se é casada, e que no direito grego ela não herda em nenhum caso. Quanto aos colaterais, parece, à primeira vista, que a lei está ainda mais longe da natureza e da justiça. É que todas essas leis são decorrentes, não da razão e da lógica, não do sentimento de eqüidade, mas das crenças e da religião que reinavam sobre as almas.

A regra para o culto é a transmissão de varão para varão; a regra para a herança é conformar-se com o culto. A filha não é apta para continuar a religião paterna, pois ela se casa, e, casando-se, renuncia ao culto do pai para adotar o do esposo: não tem, portanto, nenhum título para herdar. Se por acaso um pai deixasse seus bens à filha, a propriedade seria separada do culto, o que não é admissível. A filha não poderia nem ao menos cumprir o primeiro dever do herdeiro, que é continuar a série de banquetes fúnebres, pois os sacrifícios que oferece dirigem-se aos antepassados do marido. A religião, portanto, proíbe-lhe herdar do pai.

Tal é o antigo princípio, também obedecido pelos legisladores hindus, como pelos da Grécia e de Roma. Os três povos têm as mesmas leis, não porque uns a aprendessem dos outros, mas porque tiraram suas leis das mesmas crenças.

“Depois da morte do pai — diz o Código de Manu — os irmãos devem dividir entre si o patrimônio” — e o legislador continua recomendando aos irmãos que dotem suas irmãs, o que acaba de provar que elas não têm por si mesmas nenhum direito à sucessão paterna.

O mesmo acontece em Atenas. Os oradores áticos, em seus discursos, demonstram freqüentemente que as filhas não herdam(1). O próprio Demóstenes é um exemplo da aplicação dessa lei grega, porque tinha uma irmã, e sabemos por seus próprios escritos que ele foi o único herdeiro do patrimônio; seu pai reservara apenas a sétima parte para dotar a filha.

Quanto a Roma, as disposições do direito primitivo nos são quase completamente desconhecidas. Não possuímos dessas épocas antigas nenhum texto de lei que se relacione com o direito de sucessão da filha; não possuímos tampouco nenhum documento análogo aos discursos de Atenas; enfim, somos obrigados a procurar fracos indícios do direito primitivo em um direito muito posterior e muito diverso. Gaio, e as Institutas de Justiniano, lembram ainda que a filha não pertence ao número dos herdeiros naturais senão quando se encontra em poder do pai no momento de sua morte(2); ora, se estiver casada de acordo com os ritos religiosos, não está mais sob a jurisdição paterna. Supondo-se, portanto, que antes de ser casada ela pudesse dividir a herança com um irmão, certamente não o poderá mais se a confarreatio a fizer sair da família paterna para ligar-se à do marido. É bem verdade que, não casada, a lei não a privava formalmente de sua parte na herança; mas é necessário perguntar se na prática ela podia ser verdadeiramente herdeira. Ora, não nos devemos esquecer de que essa filha estava colocada sob a tutela do irmão, ou dos parentes agnados, por toda a vida; que a tutela do antigo direito era estabelecida no interesse dos bens, e não da filha; que ela tinha por objeto a conservação dos bens da família(3); e que, enfim, a filha, em nenhuma idade, podia casar ou mudar de família sem autorização do tutor. Esses fatos, que são bem provados, permitem acreditar que havia, senão nas leis, pelo menos na prática e nos costumes, uma série de dificuldades que se opunham a que a filha fosse tão completamente proprietária de sua parte do patrimônio como o filho o era da sua. Não temos provas para afirmar que a filha fosse excluída do casamento, mas temos certeza de que, casada, ela não herdava do pai, e que, não casada, não podia jamais dispor do que havia herdado. Se era herdeira, não o era senão provisoriamente, e sob certas condições, quase em simples usufruto; não tinha o direito nem de testar, nem o de alienar sem autorização do irmão ou dos agnados, que, depois de sua morte, deviam herdar os mesmos bens que haviam administrado enquanto viveu(4).

Há ainda outra observação a ser feita. As Institutas de Justiniano lembram o velho princípio, então caído em desuso, mas não esquecido, que prescrevia que a herança devia passar de varão para varão apenas(5). É sem dúvida em lembrança dessa regra que a mulher, em direito civil, não podia jamais ser herdeira. Quanto mais nos afastamos da época de Justiniano para épocas mais antigas, mais nos aproximamos de uma regra que proíbe às mulheres herdar. Nos tempos de Cícero, se um pai deixa um filho e uma filha, não pode legar à filha senão um terço de sua fortuna; se não tem senão uma filha única, mesmo assim ela não pode receber senão a metade. Deve-se ainda notar que, para que essa filha receba um terço ou a metade do patrimônio, é necessário que o pai tenha feito um testamento em seu favor; a filha nada tem de pleno direito(6). Enfim, um século e meio antes de Cícero, Catão, querendo fazer reviver os antigos costumes, fez aprovar a lei Vocônia, que proibia: 1.° instituir como herdeira uma mulher, fosse embora filha única, casada ou não; 2.° legar a mulheres mais da metade do patrimônio(7). — A lei Vocônia nada fez senão renovar leis mais antigas, porque não se pode supor que tenha sido aceita pelos contemporâneos dos Cipiões se não estivesse baseada em antigos princípios ainda respeitados. Essa lei visava restabelecer o que o tempo havia alterado. Aliás, o que há de mais curioso na lei Vocônia é que ela não estipula nada a respeito da herança ab intestat. Ora, esse silêncio não pode significar que nesses casos a filha era herdeira legítima, porque não é admissível que a lei proíba à filha herdar do pai por testamento, se ela já é herdeira de pleno direito sem testamento. Esse silêncio significa antes que o legislador nada tinha a dizer sobre a herança ab intestat, porque para esses casos as antigas regras se haviam conservado melhor.

Assim, sem que se possa afirmar que a filha era claramente excluída da sucessão, pelo menos é certo que a antiga lei romana, tanto quanto a grega, dava à filha uma situação muito inferior à do filho, como conseqüência natural e inevitável dos princípios que a religião havia gravado em todos os espíritos.

É verdade que os homens logo encontraram uma evasiva para conciliar a prescrição religiosa, que proibia à filha herdar, com o sentimento natural, que exigia que ela pudesse gozar da fortuna paterna. Isso é evidente, sobretudo no direito grego.

A legislação ateniense visava manifestamente que a filha não herdeira, pelo menos se casasse com um herdeiro. Se, por exemplo, o defunto deixara um filho e uma filha, a lei autorizava o casamento entre irmão e irmã, contanto que não fossem nascidos da mesma mãe. O irmão, herdeiro único, podia à sua escolha casar com a irmã, ou dotá-la(8).

Se um pai não tinha senão uma filha, podia adotar um filho, e dar-lhe a filha em casamento. Podia ainda instituir por testamento um herdeiro que se casasse com a filha(9).

Se o pai de uma filha única morresse sem haver adotado nem testado, o antigo direito exigia que o parente mais próximo herdasse(10); mas esse herdeiro tinha obrigação de casar a filha. É em virtude desse princípio que o casamento do tio com a sobrinha era autorizado, e mesmo exigido por lei(11). Há mais: se essa filha já estava casada, devia deixar o marido, para se casar com herdeiro do pai(12). O herdeiro, por sua vez, podia ser já casado, mas devia divorciar para casar com a parenta(13). Vemos aqui quanto o direito antigo, para se conformar com a religião, desconhecia a natureza(14).

A necessidade de satisfazer à religião, combinada com o desejo de salvar os interesses das filhas únicas, fez com que se encontrasse outra solução. Sobre esse ponto o direito hindu e o direito ateniense coincidiam maravilhosamente. Lemos nas Leis de Manu: “Aquele que não tem filho varão, pode encarregar a filha de lhe dar um filho, que se torna seu, e que celebre em sua honra a cerimônia fúnebre.” — Para isso, o pai deve prevenir o esposo ao qual dá a própria filha, pronunciando esta fórmula: “Eu te dou, enfeitada de jóias, esta filha que não tem irmão; o filho que dela nascer será meu filho, e celebrará meus funerais(15).” — O costume era idêntico em Atenas; o pai podia fazer continuar a descendência pela filha, dando-a a um marido com essa condição especial. O filho que nascia desse casamento era considerado filho do pai da mulher; seguia seu culto, assistia a seus atos religiosos, e mais tarde cuidava de seu túmulo(16). No direito hindu essa criança herdava do avô como se fosse filho; o mesmo acontecia em Atenas. Quando um pai casava a filha única como acabamos de dizer, seu herdeiro não era nem a filha, nem o genro, era o filho de sua filha(17). Quando este atingisse a maioridade, tomava posse do patrimônio materno, embora o pai e a mãe ainda estivessem vivos(18).

Essas singulares tolerâncias da religião e da lei confirmam a regra que relatamos acima. A filha não era apta a herdar. Mas, pelo abrandamento muito natural desse princípio rigoroso, a filha única era considerada como intermediária pela qual a família podia continuar. Ela não herdava, mas o culto e a herança eram transmitidos por seu intermédio.

3.° Da sucessão colateral

Um homem morria sem filhos; para saber quem era o herdeiro de seus bens, bastava procurar quem devia ser o continuador de seu culto.

Ora, a religião doméstica se transmitia pelo sangue, de varão para varão. A descendência em linha masculina estabelecia somente entre dois homens a união religiosa, que permitia a um continuar o culto do outro. O que se chamava de parentesco não era nada mais, como vimos acima, que a expressão dessa união. Era-se parente porque se tinha o mesmo culto, um mesmo lar originário, os mesmos antepassados. Mas não se era parente pelo simples fato de se ter a mesma mãe; a religião não admitia parentesco pelas mulheres. Os filhos de duas irmãs, ou de uma irmã e de um irmão, não tinham entre si nenhum laço, e não pertenciam à mesma religião doméstica nem à mesma família.

Esses princípios regulavam a ordem de sucessão. Se um homem, tendo perdido filho e filha, não deixava senão netos, os filhos de seu filho herdavam, os de sua filha não. Na falta de descendentes, tinha por herdeiro o irmão, e não a irmã; os filhos do irmão, e não os da irmã. Em falta de irmãos e de sobrinhos, era necessário remontar à série dos ascendentes do defunto, sempre na linha masculina, até que se encontrasse um ramo que se houvesse destacado da família por um varão; depois, tornava-se a descer por esse ramo de varão a varão, até que se encontrasse um homem vivo: este era o herdeiro.

Essas regras estavam igualmente em vigor entre os hindus, entre os gregos, entre os romanos. Na Índia, a herança pertence ao sapinda mais próximo; em falta de um sapinda, ao samanodaca(1). — Ora, vimos que o parentesco que exprimiam essas duas palavras era parentesco religioso ou parentesco masculino, e correspondia à agnação romana.

Eis agora a lei de Atenas: “Se um homem morre sem filhos, o herdeiro é o irmão do defunto, contanto que seja irmão consangüíneo; em falta deste, o filho do irmão, porque a sucessão passa sempre aos varões e aos descendentes de varões(2).” — Citava-se ainda essa velha lei nos tempos de Demóstenes, embora já estivesse modificada, e já se começasse a admitir por essa época o parentesco pelo lado das mulheres.

As Doze Tábuas estabeleciam igualmente que, se um homem morresse sem herdeiro próprio, a sucessão pertencia ao agnado mais próximo. Ora, vimos que jamais se era agnado pelas mulheres. O antigo direito romano especificava ainda que o sobrinho herdava do patruus isto é, do irmão de seu pai, e não herdava do avunculus isto é, do irmão de sua mãe(3). Se nos reportarmos ao quadro que traçamos da família dos Cipiões, notaremos que, como Cipião Emiliano morreu sem deixar filhos, sua herança não devia passar nem a Cornélia, sua tia, nem a Caio Graco, que, de acordo com nossas idéias modernas, seria seu primo-irmão, mas a Cipião Asiático, que era, de acordo com o direito dos antigos, seu parente mais próximo.

Nos tempos de Justiniano, o legislador não compreendia mais essas velhas leis; elas lhe pareciam iníquas, e ele acusava de rigor excessivo o direito das Doze Tábuas “que concedia sempre preferência à posteridade masculina, e excluía da herança aqueles que não estavam ligados ao defunto senão pelas mulheres(4).” — Direito iníquo, se assim o quisermos, porque não tomava em consideração a natureza, mas direito singularmente lógico, porque, partindo do princípio de que a herança estava ligada ao culto, afastava da herança aqueles que a religião não autorizava a continuar o culto.

4.° Efeitos da emancipação e da adoção

Vimos precedentemente que a emancipação e a adoção produziam no homem mudança de culto. A primeira desligava-o do culto paterno, a segunda iniciava-o na religião de outra família. Ainda aqui o direito antigo conformava-se às regras religiosas. O filho que havia sido excluído do culto paterno pela emancipação, era excluído também da herança(1). Pelo contrário, o estranho, que havia sido associado ao culto de uma família pela adoção, e se tornava filho da mesma, continuava seu culto e herdava-lhe os bens. Em um e outro caso o antigo direito dava mais importância aos laços religiosos que aos laços de nascimento.

Como era contrário à religião que um mesmo homem tivesse dois cultos domésticos, ele não podia igualmente herdar de duas famílias. Também o filho adotivo, que herdava da família adotante, não herdava da família natural. O direito ateniense era muito explícito a esse respeito. Os discursos dos oradores áticos mostram-nos muitas vezes homens adotados por uma família, e que desejam herdar daquelas onde nasceram. Mas a lei não o permitia. O homem adotado não pode herdar de sua própria família senão voltando para ela; e não pode voltar a ela senão renunciando à família adotiva, e não pode sair desta senão sob duas condições: uma, que abandone o patrimônio dessa família; outra, que o culto doméstico, para cuja continuação fora adotado, não se extinga por seu abandono; e para isso ele deve deixar nessa família um filho que o substitua(2). Esse filho cuidará do culto e tomará posse dos bens; o pai então poderá voltar à família original e herdar. Mas esse pai e esse filho não podem mais herdar um do outro; eles não pertencem à mesma família, nem são parentes.

Por aí se vê qual era o pensamento do velho legislador quando estabelecia essas regras minuciosas. Ele não julgava possível que duas heranças se reunissem sob o mesmo teto, porque dois cultos domésticos não podiam ser servidos pela mesma mão.

5.° O testamento, a princípio, não era conhecido

O direito de testar, isto é, de dispor dos próprios bens depois da morte, para deixá-los a outros que não o herdeiro natural, estava em oposição com as crenças religiosas, que eram o fundamento do direito de propriedade e do direito de sucessão. Se a propriedade estava ligada ao culto, e o culto era hereditário, podia-se pensar em testamento? Além do mais, a propriedade não pertencia ao indivíduo, mas à família, porque o homem não a adquiriu por direito de trabalho, mas pelo culto doméstico. Ligada à família, ela se transmitia do morto ao vivo, não de acordo com a vontade ou escolha do morto, mas em virtude de regras superiores que a religião havia estabelecido.

O antigo direito hindu não conhecia o testamento. O direito ateniense, até Sólon, proibia-o de maneira absoluta(1), e o próprio Sólon não o permitiu senão aos que não tinham filhos(2). O testamento foi por muito tempo proibido ou ignorado em Esparta, e não foi autorizado senão depois da guerra do Peloponeso(3). Conserva-se ainda a lembrança de um tempo em que era proibido também em Corinto e em Tebas(4). É certo que a faculdade de legar arbitrariamente os próprios bens não foi reconhecida a princípio como direito natural; o princípio constante em todas as épocas antigas foi o de que a propriedade devia permanecer na família à qual a religião a havia ligado.

Platão, em seu Tratado das Leis, que em grande parte nada mais é que um comentário sobre as leis atenienses, explica com muita clareza o pensamento dos antigos legisladores. Ele supõe que um homem, em seu leito de morte, reclama a faculdade de fazer testamento, e exclama: “Ó deuses! não é crueldade que eu não possa dispor de meus bens como entendo, e em favor de quem quero, deixando mais a este, menos àquele, de acordo com o afeto que me demonstraram?” — Mas o legislador responde a esse homem: “Tu, que não podes prometer a ti mesmo mais um dia; tu, que não estás aqui senão de passagem, podes querer decidir tais negócios? Não és senhor nem de teus bens, nem de ti mesmo; tu, e teus bens, pertences à tua família, isto é, a teus antepassados e à tua posteridade(5).”

O antigo direito romano é para nós muito obscuro, como já o era para Cícero. O que conhecemos não vai além das Doze Tábuas, que não são certamente o direito primitivo de Roma, dos quais, aliás, não nos restam senão alguns fragmentos. Esse código autoriza o testamento; e ainda o fragmento que diz respeito a esse assunto é muito curto, e, evidentemente, incompleto, para que nos possamos orgulhar de conhecer as verdadeiras disposições do legislador nessa matéria: concedendo a faculdade de testar, não sabemos quais reservas ou condições poderia colocar(6). Antes das Doze Tábuas não possuímos nenhum texto de lei que proíba ou permita o testamento. Mas a língua conservava a lembrança de um tempo em que era desconhecido, porque chamava o filho de herdeiro seu e necessário. Esta fórmula, que Gaio e Justiniano usavam ainda, mas que não estava mais de acordo com a legislação de seu tempo, vinha sem dúvida alguma de época longínqua, na qual o filho não podia nem ser herdeiro, nem recusar a herança. O pai não tinha, portanto, livre disposição para legar sua fortuna. O testamento não era desconhecido por completo, mas era muito difícil. Faziam-se necessárias muitas formalidades. Para começar, o segredo devia ser revelado pelo testador em vida; o homem que deserdava a família, e violava a lei que a religião havia estabelecido, devia fazê-lo publicamente, e assumir sobre si, ainda em vida, todo o ódio que despertava esse ato. E isso não é tudo; era necessário ainda que a vontade do testador recebesse aprovação da autoridade soberana, isto é, do povo reunido por cúrias, sob a presidência de um pontífice(7). Não vamos pensar que isso fosse mera formalidade, sobretudo nos primeiros séculos. Esses comícios por cúrias eram a reunião mais solene da cidade romana, e seria pueril afirmar que se convocava um povo, sob a presidência do chefe religioso, apenas para assistir como simples testemunha à leitura de um testamento. Pode-se crer que o povo votava, e isso, se refletirmos bem, era até necessário; com efeito, havia uma lei geral que regulava a ordem da sucessão de maneira rigorosa; para que essa ordem fosse modificada em um caso particular, fazia-se necessária nova lei. Essa lei de exceção era o testamento. A faculdade de testar não era, portanto, plenamente reconhecida ao homem, e não o podia ser enquanto a sociedade continuasse sob o império da velha religião. Nas crenças dessas idades antigas, o homem vivo não era senão o representante, por alguns anos, de um ser constante e imortal, que era a família. O culto e a propriedade estavam apenas depositados em suas mãos; seu direito cessava com a vida.

6.° Antiga indivisão do patrimônio

Seria necessário avançarmos para além dos tempos de que a história nos conservou a lembrança, para os séculos longínquos durante os quais estabeleceram-se as instituições domésticas, e se prepararam as instituições sociais. Dessa época não nos resta, e não poderia restar, nenhum monumento escrito. Mas as leis que então regiam os homens deixaram alguns vestígios no direito das épocas seguintes.

Nesses tempos longínquos, distinguimos uma instituição que deve ter reinado por muito tempo, e que exerceu considerável influência sobre a constituição futura das sociedades; e sem a qual essa instituição não se poderia explicar. É a indivisão do patrimônio, com uma espécie de direito de primogenitura.

A velha religião estabelecia diferenças entre o filho mais velho e o mais novo: “O mais velho — diziam os antigos árias — foi gerado para o cumprimento do dever para com os antepassados; os outros nasceram por amor.” — Em virtude dessa superioridade original, o mais velho tinha o privilégio, depois da morte do pai, de presidir a todas as cerimônias do culto doméstico; oferecia o banquete fúnebre, e que pronunciava as fórmulas das orações “porque o direito de pronunciar as orações pertence ao filho que veio ao mundo por primeiro.” — O mais velho, portanto, era o herdeiro dos hinos, o continuador do culto, o chefe religioso da família. Dessa crença originou-se uma regra de direito: somente o mais velho podia herdar. Assim o afirmava um velho texto, que o último redator das Leis de Manu inseriu ainda em seu código: “O mais velho toma posse de todo o patrimônio, e os outros irmãos vivem sob sua autoridade, como viviam sob a autoridade paterna. O filho mais velho é que solve a dívida dos vivos para com os antepassados, e portanto deve herdar tudo(1).”

O direito grego originou-se das mesmas crenças religiosas que o direito hindu; não nos devemos portanto admirar ao encontrar nele também, em sua origem, o direito de primogenitura. Em Esparta, as divisões da propriedade a princípio estabelecidas eram indivisíveis, e o irmão mais novo não tinha parte alguma. O mesmo acontecia em muitas das antigas legislações que Aristóteles havia estudado; com efeito, ele nos diz que a lei de Tebas prescrevia de maneira absoluta que o número dos lotes de terra permanecesse inalterado, o que excluía certamente a partilha entre irmãos. Uma antiga lei de Corinto exigia também que o número de famílias permanecesse invariável, o que só se podia conseguir se o direito de primogenitura impedisse as famílias de se desmembrarem em cada geração(2).

Não vamos esperar que entre os atenienses essa velha instituição ainda estivesse em vigor nos tempos de Demóstenes; mas subsistia ainda nessa época o que se chamava de privilégio da primogenitura(3). Consistia, parece, em conservar o primogênito para si, além da partilha usual, a casa paterna, vantagem materialmente considerável, porque esta incluía o antigo lar da família. Enquanto o irmão mais novo, nos tempos de Demóstenes, devia acender um novo lar, o mais velho, na verdade, o único herdeiro, continuava na posse do lar paterno e do túmulo dos antepassados; assim, ele era o único a guardar o nome da família(4). Eram os vestígios de tempos em que havia um só patrimônio.

Pode-se notar, contudo, que a iniqüidade do direito de primogenitura, além de não ferir os espíritos sobre os quais a religião imperava, era contrabalançado por muitos costumes dos antigos. Às vezes o irmão mais novo era adotado por outra família, da qual tornava-se herdeiro; outras vezes casava-se com uma filha única; outras, ainda, recebia a porção de terra que era patrimônio de antiga família. Na falta de todos esses recursos, os irmãos mais novos eram mandados para as colônias.

Quanto a Roma, não encontramos nenhuma lei que se refira ao direito de primogenitura. Mas nem por isso devemos concluir que não fosse conhecido na Itália. Pode haver desaparecido, juntamente com sua lembrança. O que nos permite acreditar que além dos tempos que conhecemos tenha estado em vigor, é que a existência da gens romana e sabina não se poderia explicar sem ele. Como uma família poderia chegar a contar com vários milhares de pessoas livres, como a família Cláudia, ou várias centenas de combatentes, todos patrícios, como a família Fábia, se o direito de primogenitura não houvesse conservado a unidade durante uma longa série de gerações, e não a houvesse aumentado durante séculos, impedindo-a de se esfacelar? Esse velho direito de primogenitura se prova por suas conseqüências, e, por assim dizer, por suas obras.

Por outro lado, é necessário entender que o direito de primogenitura não era a espoliação dos irmãos mais novos em proveito do mais velho. O código de Manu esclarece-lhe o sentido quando ordena “que o mais velho tenha para com os irmãos menores o afeto de um pai por seus filhos, e que estes, por sua vez, o respeitem como pai.” — Segundo o pensamento desses tempos antigos, o direito de primogenitura implicava sempre a vida em comum. No fundo não era nada mais que o gozo de bens comuns para todos os irmãos, sob a autoridade do mais velho. Representava tanto a indivisão do patrimônio quanto a indivisão da família. É nesse sentido que podemos crer que esteve em vigor no mais antigo direito de Roma, ou, pelo menos, nos costumes, tornando-se a origem da gens romana(5).

CAPÍTULO VIII

A AUTORIDADE NA FAMÍLIA

 

1.° Princípio e natureza do poder paterno entre os antigos

A família não recebeu suas leis da cidade. Se a cidade houvesse estabelecido o direito privado, é provável que teria feito tudo diferente do que vimos até agora. Teria regulamentado, de acordo com outros princípios, o direito de propriedade e o direito de sucessão, porque não tinha interesse em que a terra fosse inalienável e o patrimônio indivisível. A lei que permite que o pai venda ou tire a vida ao filho, lei que encontramos tanto na Grécia como em Roma, não foi imaginada pela cidade. A cidade teria antes dito ao pai: “A vida de tua mulher e de teu filho não te pertence mais que sua liberdade; eu as protegerei, mesmo contra ti. Eles não serão julgados por ti, que haverás de matá-los caso falhem; eu serei seu juiz.” — Se a cidade não fala desse modo, aparentemente, é porque não pode fazê-lo. O direito privado existiu antes dela. Quando começou a escrever suas leis, encontrou esse direito já estabelecido, vivo, enraizado nos costumes, fortalecido pela adesão universal. Ela o aceitou, não podendo agir de outra maneira, e não ousando modificá-lo, senão com o correr do tempo. O antigo direito não é obra de um legislador; pelo contrário, foi imposto ao legislador. Nasceu na família. Surgiu espontaneamente, e já formado, dos antigos princípios que a constituíam. É a decorrência natural de crenças religiosas, universalmente admitidas na idade primitiva desses povos, e que exerciam império sobre as inteligências e as vontades.

Uma família compõe-se de um pai, de uma mãe, de filhos e de escravos. Esse grupo, por pequeno que seja, deve ter uma disciplina. A quem, portanto, pertencerá essa autoridade primitiva? Ao pai? Não. Em casa há algo que está acima do próprio pai: é a religião doméstica, é esse deus que os gregos chamam de lar-chefe, estia despoina, e que os latinos denominam lar familiae pater(1). Nessa divindade interior, ou, o que dá no mesmo, na crença que está na alma humana, reside a autoridade menos discutível. É ela que vai fixar os graus na família.

O pai é o primeiro junto ao lar: ele o alumia e conserva; é seu pontífice. Em todos os atos religiosos, ele exerce a mais alta função; degola a vítima; sua boca pronuncia a fórmula de oração, que deve atrair para si e para os seus a proteção dos deuses. A família e o culto se perpetuam por seu intermédio; representa, sozinho, toda a série dos descendentes. Sobre ele repousa o culto doméstico; quase pode dizer como o hindu: “Eu sou o deus.” — Quando a morte chegar, será um ser divino, que os descendentes invocarão.

A religião não coloca a mulher em posição tão elevada. É verdade que ela toma parte em todos os atos religiosos, mas ela não é a senhora do lar. Sua religião não lhe vem do nascimento; nela foi iniciada somente por ocasião do casamento; ela aprendeu do marido a prece que pronuncia. Não representa os antepassados, porque não descende deles. Não se tornará um deles, porque, sepultada, não receberá nenhum culto especial. Na morte, como na vida, ela não é considerada mais que um membro do esposo.

O direito grego, o direito romano, o direito hindu, que se originam dessas crenças religiosas, todos concordam em considerar a mulher como menor. Jamais pode ter seu próprio lar, jamais será chefe de um culto. Em Roma recebe o título de mater familias, mas perde-o por morte do marido(2). Não tendo nunca um lar que lhe pertença, nada possui que lhe dê autoridade na casa. Jamais dá ordens, jamais é livre, ou senhora de si mesma, sui juris. Sempre está ao lado do lar de outro, repetindo a oração de outro; para todos os atos da vida religiosa é-lhe necessário um chefe, e para todos os atos da vida civil um tutor.

A lei de Manu diz: “A mulher, durante a infância, depende do pai; durante a juventude, do marido; por morte do marido, depende dos filhos; se não tem filhos, depende dos parentes próximos do marido, porque uma mulher jamais se deve governar à sua vontade(3).” — As leis gregas e romanas dizem o mesmo. Filha, é submetida ao pai; morto o pai, fica submissa aos irmãos e aos agnados(4); casada, fica sob a tutela do marido; morto o marido, não volta para a própria família, porque renunciou para sempre a ela com o casamento sagrado(5); a viúva continua submissa à tutela dos agnados do marido, isto é, a seus próprios filhos, se os tem(6), ou, caso contrário, dos parentes mais próximos(7). O marido tem tal autoridade sobre ela, que pode, antes de morrer, designar-lhe um tutor, ou mesmo escolher-lhe novo marido(8).

Para assinalar o poder do marido sobre a mulher, os romanos tinham uma expressão mui antiga, que seus jurisconsultos nos conservaram; é a palavra manus. Não é fácil descobrir-lhe o sentido primitivo. Os comentadores têm-na como expressão da força material, como se a mulher estivesse colocada sob a mão brutal do marido. É bem provável que estejam enganados. O poder do marido sobre a mulher não resultava absolutamente da maior força do primeiro. Derivava, como todo direito privado, das crenças religiosas, que colocam o homem acima da mulher. O que o prova é que a mulher, que não se havia casado de acordo com os ritos sagrados, e que, por conseqüência, não estava associada ao culto, não estava submetida ao poder marital(9). O casamento é que constituía a subordinação e, ao mesmo tempo, a dignidade da mulher. Tanto é verdade, que não foi o direito do mais forte que constituiu a família!

Passemos à criança. Aqui a natureza fala por si mesma bastante alto; ela quer que a criança tenha um protetor, um guia, um mestre. A religião está de acordo com a natureza; ela afirma que o pai será o chefe do culto, e que o filho deverá somente ajudá-lo em suas funções sagradas. Mas a natureza não exige essa subordinação senão durante certo número de anos; a religião exige mais. A natureza dá ao filho uma maioridade, que a religião não lhe concede. De acordo com antigos princípios, o lar é indivisível, e a propriedade é como ele; os irmãos não se separam pela morte do pai; com muito mais razão não se podem separar dele durante a vida. No rigor do direito primitivo, os filhos continuam unidos ao lar paterno, e, por conseqüência, submetidos à sua autoridade; enquanto ele viver, são considerados menores.

Compreende-se que essa regra não pôde durar senão enquanto a velha religião doméstica estava em pleno vigor. Essa sujeição sem-fim do filho ao pai, desaparece e bem cedo em Atenas. Em Roma, a velha regra foi escrupulosamente conservada; o filho jamais pôde manter um lar particular durante a vida do pai; mesmo casado, mesmo tendo filhos, ficava sob a tutela paterna(10).

Além disso, com o poder paternal dava-se o mesmo que com o poder marital: tinha por princípio e por condição o culto doméstico. O filho nascido do concubinato não estava colocado sob a autoridade do pai. Entre o pai e ele não existia comunidade religiosa; não havia, portanto, nada que conferisse a um autoridade, e que ordenasse a outro obediência. A paternidade por si só não era suficiente para conferir direitos ao pai.

Graças à religião doméstica, a família era um pequeno corpo organizado, uma pequena sociedade, que tinha seu chefe e seu governo. Nada, em nossa sociedade moderna, pode dar-nos idéia desse poder paternal. Nesses tempos antigos, o pai não é somente o homem forte que protege, e que tem também poder para se fazer obedecer: ele é sacerdote, é o herdeiro do lar, e continuador dos antepassados, o tronco dos descendentes, o depositário dos ritos misteriosos do culto e das fórmulas secretas da oração. Toda a religião reside nele.

O próprio nome por que é chamado, pater, traz em si curiosos ensinamentos. A palavra é a mesma em grego, em latim e em sânscrito; donde podemos concluir que essa palavra data de um tempo em que os antepassados dos helenos, dos italianos e dos hindus viviam ainda juntos na Ásia central. Qual era seu sentido, e que idéia representava então no espírito dos homens? Podemos conhecê-la porque ela guardou esse significado primitivo nas fórmulas da língua religiosa e nas do vocabulário jurídico. Quando os antigos, invocando a Júpiter, chamavam-no pater hominum Deorumque, não queriam dizer que Júpiter fosse o pai dos deuses e dos homens, porque jamais o consideraram como tal, e criam, ao contrário, que o gênero humano existiu antes dele. O mesmo título de pater foi dado a Netuno, a Apolo, a Baco, a Vulcano, a Plutão, que os homens certamente não consideravam como pais(11); assim o título de mater aplicava-se a Diana, a Minerva, a Vesta, que eram consideradas deusas virgens. Do mesmo modo, na língua jurídica o título de pater, ou pater familias, podia ser dado a um homem que não tivesse filhos, que não fosse casado, e que não estava nem mesmo em idade de contrair casamento(12). A idéia de paternidade, portanto, não se ligava a essa palavra. A velha língua tinha outra, que designava propriamente o pai, e que, tão antiga quanto pater, encontra-se, como ela, nas línguas dos gregos, dos romanos, dos hindus (gânitar, ghennetér, genitor). A palavra pater tinha outro sentido. Na língua religiosa, aplicava-se a todos os deuses; na língua do direito, a todo homem que não dependesse de outro, e que tinha autoridade sobre uma família ou sobre um domínio: pater familias. Os poetas nos mostram que a empregavam a respeito de todos quantos queriam honrar. O escravo e o cliente davam-no ao mestre. Era sinônimo dos vocábulos rex, anax, basileus. Continha em si, não a idéia de paternidade, mas a de poder, de autoridade, de dignidade majestosa.

Que tal palavra se tenha aplicado ao pai de família, até poder tornar-se aos poucos seu nome mais comum, é certamente fato bem significativo, e que parecerá grave a quem quer que deseje conhecer as antigas instituições. A história dessa palavra nos bastará para dar idéia do poder que o pai exerceu por muito tempo na família, e do sentimento de veneração que se ligava a ele, como a pontífice e soberano.

2.° Enumeração dos direitos que compunham o poder paterno

As leis gregas e romanas reconheceram ao pai esse poder ilimitado, do qual a religião o revestira a princípio. Os vários e numerosos direitos que as leis lhe conferiram podem ser catalogados em três categorias, segundo se considera o pai de família como chefe religioso, como senhor da propriedade ou como juiz.

I. O pai é o chefe supremo da religião doméstica; dirige todas as cerimônias do culto como bem entende, ou antes, como vira fazer seu pai. Ninguém na família lhe contesta a supremacia sacerdotal. A própria cidade, e seus pontífices, nada podem mudar em seu culto. Como sacerdote do lar, não reconhece nenhum superior.

A título de chefe religioso, ele é o responsável pela perpetuidade do culto, e, por conseqüência, pela perpetuidade da família. Tudo o que se relaciona com essa perpetuidade, que é seu primeiro cuidado e seu primeiro dever, depende apenas dele. Daí deriva uma série de direitos:

Direito de reconhecer a criança no ato do nascimento, ou de rejeitá-la. Esse direito é atribuído ao pai tanto pelas leis gregas(1), quanto pelas leis romanas. Por mais bárbaro que seja, não está em contradição com os princípios básicos da família. A filiação, mesmo incontestada, não basta para ingressar no círculo da família; é necessário o consentimento do chefe, e a iniciação ao culto. Enquanto a criança não for associada à religião doméstica, nada representa para o pai.

Direito de repudiar a mulher, quer em caso de esterilidade, porque a família não se deve extinguir; quer em caso de adultério, porque a família e a descendência devem ficar isentas de toda e qualquer alteração.

Direito de casar a filha, isto é, de ceder a outro o poder que tem sobre ela. Direito de casar o filho: o casamento do filho interessa à perpetuação da família.

Direito de emancipar, isto é, de excluir um filho da família e do culto. Direito de adotar, isto é, de introduzir um estranho junto ao lar doméstico.

Direito de designar, ao morrer, um tutor para a mulher e os filhos.

É necessário notar que todos esses direitos eram atribuídos somente ao pai, com exclusão de todos os outros membros da família. A mulher não tinha o direito de divorciar, pelo menos nas épocas mais antigas. Mesmo quando viúva, não podia nem emancipar, nem adotar. Jamais podia ser tutora, mesmo de seus filhos. Em caso de divórcio, os filhos ficavam com o pai, assim como as filhas. Jamais tinha os filhos sob seu poder. Para o casamento da filha, não lhe pediam seu consentimento(2).

II. Vimos acima que a propriedade não havia sido concebida, a princípio, como um direito individual, mas como direito de família. A fortuna pertencia, como diz formalmente Platão, e como dizem implicitamente todos os antigos legisladores, aos antepassados e descendentes. Essa propriedade, por sua própria natureza, era indivisível. Em cada família não podia haver mais de um proprietário, que era a própria família, nem mais de um usufrutuário, que era o pai. Esse princípio explica várias disposições do direito antigo.

Como a propriedade era indivisível, e repousava por completo sobre a cabeça do pai. nem a mulher, nem o filho tinham nada de próprio. O regime dotal era então desconhecido, e teria sido impraticável. O dote da mulher pertencia sem reserva ao marido, que exercia sobre os bens dotais não somente direitos de administrador, mas de proprietário. Tudo o que a mulher podia adquirir durante o casamento caía nas mãos do marido. Mesmo tornando-se viúva, não readquiria direitos sobre seu próprio dote(3).

O filho estava nas mesmas condições que a mulher: não possuía coisa alguma. Nenhuma doação feita por ele era válida, pela mesma razão que nada possuía de próprio. Não podia adquirir coisa alguma; os frutos de seu trabalho, os lucros de seu comércio eram devidos ao pai. Se um testamento era feito em seu favor por algum estranho, o pai, e não ele, recebia o legado. Por aí se explica o texto do direito romano que proíbe qualquer contrato de venda entre pai e filho. Se o pai vendesse algo ao filho, vendia para si mesmo, porque o filho só podia adquirir por intermédio do pai(4).

Vemos no direito romano, e o encontramos nas leis de Atenas, que o pai podia vender o filho(5). É que o pai podia dispor de toda a propriedade que estava na família, e o próprio filho podia ser considerado como simples propriedade do pai, pois seus braços e seu trabalho eram fonte de renda. O pai, portanto, podia, de acordo com sua vontade, guardar para si mesmo esse instrumento de trabalho, ou cedê-lo a outro. Cedê-lo era o que se chamava vender o filho. Os textos que possuímos do direito romano não nos esclarecem devidamente sobre a natureza desse contrato de venda, e sobre as reservas que nele podiam estar contidas. Parece certo que o filho assim vendido não se tornava por completo escravo do comprador. O pai podia estipular no contrato que o filho lhe seria revendido. Guardava, portanto, seu poder sobre ele, e, depois de recebê-lo de volta, podia tornar a vendê-lo(6). A lei das Doze Tábuas autorizou essa operação até três vezes, declarando, porém, que depois dessa tríplice venda o filho seria enfim liberto do poder paternal(7). Por aí se pode julgar como, no direito antigo, a autoridade do pai era absoluta(8).

III. Plutarco nos informa que em Roma as mulheres não podiam comparecer perante a justiça, mesmo como testemunhas(9). Lemos no jurisconsulto Gaio: “É necessário que se saiba que não se pode ceder, nada em justiça às pessoas que estão sob poder de outras, isto é, à mulher, ao filho, ao escravo. Porque, desde que essas pessoas nada podiam possuir de próprio, concluiu-se com razão que igualmente nada podiam reivindicar em justiça. Se vosso filho, submetido a vosso poder, cometeu um crime, a ação em justiça é movida contra vós. O crime cometido por um filho contra o pai não dá lugar a nenhuma ação em justiça(10).” — De tudo isso resulta claramente que mulher e filho não podiam ser nem demandistas, nem defensores, nem acusadores, nem acusados, nem testemunhas. De toda a família, apenas o pai podia apresentar-se diante do tribunal da cidade; a justiça pública não existia senão para ele. Desse modo, o pai ficava responsável pelos delitos cometidos pelos seus.

Se a justiça, para o filho e a mulher, não estava na cidade, é porque ela estava no lar. Seu juiz era o chefe da família, sentado como que num tribunal, em virtude de sua autoridade conjugal ou paterna, em nome da família e sob os olhos das divindades domésticas(11).

Tito Lívio conta que o senado, desejando extirpar de Roma as bacanais, decretou a pena de morte contra todos os que delas participassem. O decreto foi facilmente executado no que respeita aos cidadãos. Mas a respeito das mulheres, que não eram as menos culpadas, surgiu grave dificuldade: as mulheres não eram condenáveis pelo estado; somente a família tinha o direito de julgá-las. O senado respeitou esse velho princípio, e deixou aos maridos e aos pais o encargo de pronunciar contra as mulheres a sentença de morte(12).

Esse direito de justiça, que o chefe de família exercia na casa, era completo e sem apelação. Podia condenar à morte, como fazia o magistrado na cidade; nenhuma autoridade tinha direito de modificar sua sentença. — “O marido — diz Catão, o Antigo — é juiz da mulher; seu poder não tem limites; pode o que quer. Se ela cometeu alguma falta, ele a castiga; se bebeu vinho, ele a condena; se teve relações com outro homem, ele a mata.” — O direito era o mesmo a respeito dos filhos. Valério Máximo cita certo Atílio, que matou a filha culpada de impudicícia, e todo mundo conhece aquele pai que matou o filho, cúmplice de Catilina(13).

Fatos dessa natureza são numerosos na história romana. Seria formar-se idéia falsa pensar que o pai tinha o direito absoluto de matar mulher e filhos. Ele era o juiz. Se condenava à morte, fazia-o apenas em virtude de seu direito de justiça. Como o pai de família submetia-se apenas ao julgamento da cidade, a mulher e o filho não podiam encontrar outro juiz além dele. No seio da família ele era o único magistrado.

É necessário, além do mais, notar que a autoridade paterna não era um poder arbitrário, como o seria aquele que derivava do direito do mais forte. Ela tinha seu princípio nas crenças que estavam no fundo das almas, e encontrava seus limites nessas mesmas crenças. Por exemplo, o pai tinha direito de excluir o filho da família, mas sabia que, se o fizesse, a família correria o risco de se extinguir, e os manes de seus antepassados cairiam no eterno esquecimento. Tinha o direito de adotar estranhos, mas a religião proibia-lhe fazê-lo, se tivesse filhos. Era proprietário único dos bens, mas não tinha, pelo menos na origem, o direito de aliená-los. Podia repudiar a mulher, mas para fazê-lo era necessário que ousasse quebrar o laço religioso que o casamento havia estabelecido. Assim, a religião impunha ao pai tanto obrigações como direitos.

Foi assim por muito tempo, a família antiga. As crenças que reinavam nos espíritos bastaram, sem que houvesse necessidade do direito da força ou da autoridade de um poder social, para constituí-la regularmente, para dar-lhe disciplina, governo, justiça, e para fixar em todos esses detalhes o direito privado.

CAPÍTULO IX

A ANTIGA MORAL DA FAMÍLIA

 

A história não estuda somente os fatos materiais e as instituições; seu verdadeiro objeto de estudo é a alma humana; ela deve aspirar a conhecer o que essa alma acreditou, pensou, sentiu nas diferentes idades da vida do gênero humano.

No início deste livro mostramos antigas crenças que o homem concebeu sobre seu destino depois da morte. Dissemos depois como essas crenças deram origem às instituições domésticas e ao direito privado. Resta procurar qual era a ação dessas crenças sobre a moral nas sociedades primitivas. Sem pretender que essa velha religião tenha criado os sentimentos morais no coração do homem, pode-se pelo menos crer que se tenha unido a eles para fortalecê-los, para dar-lhes maior autoridade, para assegurar seu império e seu direito de comando sobre a conduta do homem, e às vezes também para falseá-los.

A religião desses primeiros tempos era exclusivamente doméstica; o mesmo acontecia com a moral. A religião não dizia ao homem, mostrando-lhe outro homem: Eis ali teu irmão. — Ela lhe dizia: Eis ali um estranho, que não pode participar dos atos religiosos de teu lar, não pode aproximar-se do túmulo de tua família; ele tem outros deuses, e não pode unir-se a ti por uma prece comum; teus deuses rejeitam sua adoração, e o encaram como inimigo; ele é também teu inimigo.

Nessa religião do lar, o homem jamais reza à divindade em favor dos outros homens; ele não a invoca senão para si e para os seus. Um provérbio grego ficou como lembrança e vestígio desse antigo isolamento do homem na oração. Nos tempos de Plutarco, dizia-se ainda ao egoísta: “Sacrificas ao lar(1).” — Isso significava: Tu te afastas de teus concidadãos; não tens amigos; teus semelhantes nada significavam para ti; não vives senão para ti e para os teus. — Esse provérbio era o indício de um tempo em que, gravitando toda a religião ao redor do lar, o horizonte da moral e do afeto não chegava a ultrapassar os estreitos limites da família.

É natural que a idéia moral tenha tido seu começo e tenha progredido como a idéia religiosa. O Deus das primeiras gerações, nessa raça, era bem mesquinho; pouco a pouco os homens tornaram-no maior; assim a moral, a princípio muito restrita e incompleta, alargou-se insensivelmente, até que, de progresso em progresso, chegou a proclamar o dever do amor para com todos os homens. Seu ponto de partida foi a família, e foi sob a ação das crenças da religião doméstica que os deveres começaram a aparecer aos olhos do homem.

Imaginemos essa religião do lar e do túmulo na época de seu pleno vigor. O homem vê bem perto de si a divindade. Ela está presente, como a própria consciência, a todas as suas mínimas ações. Essa criatura frágil, encontra-se sob os olhos de uma testemunha que não a abandona. Ele não se sente jamais só. A seu lado, em sua casa, em seu campo, tem protetores para ampará-lo nos labores da vida, e juízes para punir suas ações delituosas. — “Os lares — dizem os romanos — são divindades temíveis, encarregadas de castigar os homens, e de velar sobre tudo o que se passa no interior das casas.” — “Os penates — dizem eles ainda — são os deuses que nos fazem viver; eles nutrem nosso corpo e dirigem nossa alma(2).”

Era grato aos homens desse tempo dar ao lar o epíteto de casto(3), e acreditava-se até que o lar ordenava aos homens a observância da castidade. Nenhum ato material ou moralmente impuro devia ser cometido em sua presença.

As primeiras idéias de falta, de castigo, de expiação parecem ter aí a sua origem. O homem que se sente culpado não pode mais aproximar-se do lar; seu deus o repele. Para quem quer que haja derramado sangue não há mais sacrifício possível, nem libação, nem prece, nem banquete fúnebre. O deus é tão severo, que não admite desculpas; não distingue entre morte involuntária e crime premeditado. A mão manchada de sangue não pode mais tocar os objetos sagrados(4). Para que o homem possa retomar seu culto, e voltar à posse de seu deus, é necessário pelo menos que se purifique por uma cerimônia expiatória(5). Essa religião conhece a misericórdia; possui ritos capazes de limpar as impurezas da alma; por mais acanhada e grosseira que seja, ela sabe consolar o homem por suas próprias faltas.

Se ela ignora de modo absoluto os deveres de caridade, pelo menos traça ao homem, com admirável nitidez, seus deveres de família. Torna o casamento obrigatório; o celibato é um crime aos olhos de uma religião que faz da continuidade da família o primeiro e mais santo dos deveres. Mas a união que prescreve não pode realizar-se senão na presença das divindades domésticas; é a união religiosa, sagrada, indissolúvel, do esposo e da esposa. Não se julgue o homem autorizado a deixar de lado os ritos, e a fazer do casamento um simples contrato consensual, como aconteceu no fim das sociedades grega e romana. A antiga religião lho proíbe, e, se ousar fazê-lo, ela o castiga, porque o filho que vier a nascer dessa união é considerado bastardo, isto é, uma criatura que não tem lugar no lar, não tem o direito de realizar nenhum ato sagrado, não pode orar(6).

Essa mesma religião vela com cuidado sobre a pureza da família. A seus olhos, a mais grave falta que possa ser cometida é o adultério, porque a primeira regra do culto é que o lar se transmite de pai para filho; ora, o adúltero perturba a ordem do nascimento. Outra regra é que o túmulo não encerra senão os membros da família; ora, o filho do adultério é um estranho, que será enterrado nesse túmulo. Todos os princípios da religião são violados, o culto é maculado, o lar se torna impuro, cada oferta ao túmulo transforma-se em simples ato de impiedade. Há mais: pelo adultério a série dos descendentes fica rompida; a família, mesmo sem que os homens vivos o saibam, está extinta, e não há mais felicidade divina para os antepassados. Assim diz o hindu: “O filho do adultério aniquila nesta vida e na outra as ofertas dedicadas aos manes(7).”

Eis por que as leis da Grécia e de Roma dão ao pai o direito de rejeitar a criança que acaba de nascer. Eis também por que elas são tão rigorosas, tão inexoráveis para o adultério. Em Atenas permite-se ao marido matar o culpado. Em Roma, o marido julga a mulher, e a condena à morte. Essa religião era tão severa, que o homem nem mesmo tinha o direito de perdoar completamente, sendo, no mínimo, forçado a repudiar a mulher(8).

Eis aí, pois, as primeiras leis da moral doméstica conhecidas e confirmadas. Eis aí, além do sentimento natural, uma religião imperiosa, que diz ao homem e à mulher que eles estão unidos para sempre, e que dessa união derivam deveres rigorosos, cujo esquecimento acarretaria as conseqüências mais graves nesta vida e na outra. Daí se derivou o caráter sagrado e sério da união conjugal entre os antigos, e a pureza que a família conservou por tanto tempo.

Essa moral doméstica prescreve ainda outros deveres. Diz à esposa que ela deve obedecer, e ao marido que deve mandar. Ensina a ambos a se respeitarem mutuamente. A mulher tem direitos, porque tem seu lugar no lar; é a encarregada de conservá-lo sempre aceso, e, sobretudo, deve velar pela sua pureza; invoca-o, e lhe oferece sacrifícios(9). A mulher, portanto, também tem seu sacerdócio. Sem a presença da mulher, o culto doméstico torna-se incompleto e insuficiente. É grande desgraça para um grego ter “um lar sem esposa(10).” Entre os romanos a presença da mulher é tão necessária no sacrifício, que o padre perde o sacerdócio ao se tornar viúvo(11).

Pode-se acreditar que é a essa divisão do sacerdócio doméstico que a mãe de família deve a veneração que jamais deixou de cercá-la nas sociedades grega e romana. Donde resulta a mulher ostentar na família o mesmo título que o marido; os latinos dizem pater familias e mater familias; os gregos: oikodespótes e oikodéspoina; os hindus: grihapati, grihapatni. Daí procede também esta fórmula, que a mulher pronunciava no casamento romano: Ubi tu Caius, ego Caia — fórmula que nos diz que, se na casa a mulher não tem autoridade igual, pelo menos tem igual dignidade(12).

Quanto ao filho, vimo-lo submisso à autoridade de um pai; que pode vendê-lo e condená-lo à morte. Mas esse filho tem seu papel também no culto; ele desempenha uma função nas cerimônias religiosas; sua presença em certos dias, é de tal modo necessária, que o romano que não tem filhos se vê forçado a adotar um ficticiamente para esses dias, a fim de que os ritos sejam observados(13). Vede agora que laço poderoso a religião estabelece entre pai e filho! Acredita-se em uma segunda vida no túmulo, vida feliz e calma, se os banquetes fúnebres são oferecidos regularmente. Assim o pai está convencido de que seu destino, depois desta vida dependerá do cuidado que o filho terá de seu túmulo; e o filho, por sua vez, está convencido de que o pai morto se tornará um deus, a quem deverá invocar.

Pode-se adivinhar todo o respeito e afeto recíproco que essas crenças inspiravam na família. Os antigos davam às virtudes domésticas o nome de piedade: a obediência do filho ao pai, o amor que dedicava à mãe, eram piedade: pietas erga parentes; o afeto do pai ao filho, a ternura da mãe, eram ainda piedade: pietas erga liberos. Tudo era divino na família. Sentimento de dever, afeição natural, idéia religiosa, tudo se confundia e se exprimia pela mesma palavra.

Parecerá talvez estranho contar o amor do lar entre as virtudes, e esta era uma das virtudes dos antigos. Esse sentimento era profundo e poderoso em suas almas. Vede Anquises, que, à vista de Tróia em chamas, não quer contudo abandonar a velha casa. Vede Ulisses, a quem oferecem todos os tesouros, até a imortalidade, e nada deseja, senão rever a chama de seu lar. Avancemos até Cícero; não é mais um poeta, é um homem de Estado que fala: “Aqui está minha religião, aqui está minha raça, aqui estão as pegadas de meus pais; não sei que encanto é este que penetra meu coração e meus sentidos(14).” — É necessário que nos coloquemos em pensamento entre as mais antigas gerações, para compreender como esses sentimentos, já enfraquecidos nos tempos de Cícero, haviam sido vivos e poderosos. Para nós a casa é somente um domicílio, um abrigo; deixamo-la e nos esquecemos dela sem muito sacrifício, e, se a amamos, não o fazemos senão pela força do hábito e das recordações. Porque para nós a religião não está no lar; nosso Deus é o Deus do universo, e nós o encontramos em toda parte. Entre os antigos não se dava o mesmo: era no interior das casas que encontravam sua principal divindade, sua providência, aquela que os protegia individualmente, que escutava suas orações e atendia-lhes os votos. Fora do lar o homem não sentia mais deus; o deus do vizinho era um deus hostil. O homem amava então a casa como agora ama a igreja(15).

Destarte as crenças das primeiras idades não ficaram estranhas ao desenvolvimento moral dessa parte da humanidade. Seus deuses prescreviam a pureza, e proibiam o derramamento de sangue; a noção de justiça, se não se originou dessa crença, pelo menos se tornou forte por meio dela. Seus deuses pertenciam em comum a todos os membros de uma mesma família; a família se encontra assim unida por forte laço, e todos seus membros aprenderam a se respeitar e amar uns aos outros. Os deuses viviam no interior de cada casa: o homem, portanto, amava a própria casa, morada fixa e duradoura, que herdara dos antepassados, e que legaria aos filhos como um santuário.

A antiga moral, pautada por essas crenças, ignorava a caridade, mas, pelo menos, ensinava as virtudes domésticas. O isolamento da família foi, entre essas raças, o início da moral. Então os deveres apareceram claros, precisos, imperiosos, mas confinados a um círculo restrito. E não nos devemos esquecer, na continuação deste livro, desse caráter restrito da moral primitiva, porque a sociedade civil, fundada mais tarde sobre idênticos princípios, revestiu-se dos mesmos caracteres, e muitos traços singulares da antiga política terão nela sua explicação(16).

CAPÍTULO X

A GENS EM ROMA E NA GRÉCIA

 

Encontramos entre os jurisconsultos romanos e os escritores gregos os traços de uma antiga instituição, que parece ter tido grande vigor na primeira idade das sociedades modernas grega e italiana, mas que, com seu paulatino enfraquecimento, não deixou senão vestígios apenas perceptíveis na última parte de sua história. Queremos falar do que os latinos chamavam de gens e os gregos ghénos.

Muito se discutiu sobre a natureza e a constituição da gens. Talvez não seja inútil esclarecer, antes de mais nada, o que constitui a dificuldade do problema.

A gens, como veremos adiante, formava um corpo, cuja constituição era puramente aristocrática; é graças à sua organização interior que os patrícios de Roma e os eupátridas de Atenas perpetuaram por muito tempo seus privilégios. Quando o partido popular subiu ao poder, não deixou de combater com todas as forças essa velha instituição. Se conseguisse aniquilá-la por completo, é provável que não nos restaria dela a menor lembrança. Mas estava tão singularmente viva e enraizada nos costumes, que não se conseguiu fazê-la desaparecer inteiramente. Contentaram-se então em modificá-la, tiraram-lhe o que constituía seu caráter essencial, e não ficaram senão suas formas exteriores, que não prejudicavam em nada o novo regime. Assim, em Roma, os plebeus imaginaram formar gentes, à imitação dos patrícios; em Atenas, tentou-se alterar os ghéne, fundindo-os entre si, e substituindo-os pelos demos, estabelecidos à sua semelhança. Explicaremos esses fatos quando falarmos das revoluções. Baste-nos agora notar aqui que essa alteração profunda, introduzida pela democracia no regime da gens, é de natureza a confundir aqueles que desejam conhecer sua primitiva constituição. Com efeito, quase todos os comentários que chegaram até nós datam da época em que ela se transformou, e não nos mostram das mesmas senão o que as revoluções deixaram subsistir.

Suponhamos que, em vinte séculos, todo o conhecimento da Idade Média desaparecesse, e que não restasse nenhum documento sobre o que precedeu a revolução de 1789, e que, no entanto, um historiador desse tempo quisesse fazer idéia das instituições anteriores. Os únicos documentos que terá em mãos mostrarão a nobreza do século décimo nono, isto é, algo muito diferente do regime feudal. Mas o historiador haveria de imaginar que nesse intervalo dera-se uma grande revolução, e concluiria, com razão, que essa instituição, como todas as outras, deve ter-se transformado; a nobreza que os textos lhe mostrariam, não seria para ele mais que a imagem ou sombra, muito alterada, de outra nobreza incomparavelmente mais poderosa. Depois, examinando com atenção os escassos restos dos antigos documentos, algumas expressões lingüísticas, alguns termos escapados à lei, vagas lembranças ou queixas estéreis, chegaria talvez a adivinhar alguma coisa do regime feudal, e conseguiria fazer das instituições da Idade Média uma idéia que não ficaria muito distante da verdade. A dificuldade seria realmente grande, e não é menor para o historiador de hoje, desejoso de conhecer antiga gens, porque não há outros ensinamentos a respeito além daqueles que datam de uma época em que ela não era mais que a sombra de si mesma.

Começaremos por analisar tudo o que os escritores antigos nos dizem a respeito da gens, isto é, o que subsistia dela na época em que já estava muito modificada. Depois, com o auxílio desses elementos, tentaremos entrever o verdadeiro regime da antiga gens.

1.° O que os escritores antigos nos dão a conhecer a respeito da gens

Se abrirmos a história romana no tempo das guerras púnicas, encontraremos três personagens, que se chamam Claudius Pulcher, Claudius Nero e Claudius Centho. Todos pertencem à mesma gens, a gens Cláudia.

Demóstenes, em um de seus discursos, apresenta cinco testemunhas que afirmam pertencer ao mesmo ghénos, o dos brítidas. O que se deve notar neste exemplo é que os sete personagens citados como membros do mesmo ghénos achavam-se inscritos em seis demos diferentes; isso demonstra que o ghénos não correspondia exatamente ao demo, e não constituía, como este, uma simples divisão administrativa(1).

Eis, portanto, provado um primeiro fato: havia gentes em Roma e em Atenas. Poderíamos citar exemplos relativos a muitas outras cidades da Grécia e da Itália, e concluir que, de acordo com toda verossimilhança, essa instituição era universal entre os povos antigos.

Cada gens tinha um culto especial. Na Grécia reconheciam-se os membros de uma mesma gens “pela identidade dos sacrifícios comuns desde época bastante remota(2).” — Plutarco menciona o lugar dos sacrifícios da gens dos Licomedos, e Ésquino fala do altar da gens dos Butados(3).

Também em Roma cada gens tinha atos religiosos a cumprir; o dia, o lugar, os ritos, eram fixados por sua religião particular(4). O Capitólio é bloqueado pelos gauleses; surge um Fábio, e atravessa as linhas inimigas, vestindo o hábito religioso, e carregando objetos sagrados; ele vai oferecer o sacrifício sobre o altar de sua gens, que está situado sobre o Quirinal. Durante a segunda guerra púnica, outro Fábio, a quem chamavam de broquel de Roma, enfrenta Aníbal; é fora de dúvida que a república tem grande necessidade de que não abandone o exército; contudo, ele o deixa nas mãos do imprudente Minúcio, porque chegara o dia do aniversário de sua gens, e é necessário que corra a Roma para realizar o ato sagrado(5).

O culto devia ser perpetuado de geração em geração; era dever de cada um deixar filhos para continuá-los. Um inimigo pessoal de Cícero, Cláudio, abandona sua gens para entrar em uma família plebéia; Cícero lhe diz: “Por que expões a religião da gens Cláudia, a se extinguir por tua causa(6)?”

Os deuses da gens, dii gentiles, não protegiam senão a ela, e não queriam ser invocados senão por ela. Nenhum estranho podia ser admitido às cerimônias religiosas. Acreditava-se que, se um estranho recebia parte da vítima, ou apenas assistia ao sacrifício, os deuses da gens ficavam ofendidos, e todos seus membros estavam sob a ameaça de uma grave impiedade.

Assim como cada gens tinha seu culto e suas festas religiosas, possuía também seu túmulo comum. Lemos em um discurso de Demóstenes: “Este homem, tendo perdido os filhos, enterrou-os no túmulo de seus pais, túmulo comum a todos os de sua gens.” — A continuação do discurso mostra que nenhum estranho podia ser enterrado no mesmo túmulo. Em outro discurso, o mesmo orador fala de um túmulo onde a gens dos Busélidas enterra seus membros, e onde celebra cada ano um sacrifício fúnebre: “Esse lugar da sepultura é um campo bastante vasto, cercado por um muro, de acordo com antigo costume(7).”

O mesmo acontecia entre os romanos. Veléio fala do túmulo da gens Quintília, e Suetônio nos diz que a gens Cláudia tinha o seu túmulo na encosta do monte Capitolino(8).

O antigo direito de Roma considera os membros de uma gens como aptos a herdar uns dos outros. As Doze Tábuas afirmam que, na falta de filhos e de agnados, o gentilis é o herdeiro natural. Nessa legislação, o gentilis é, portanto, parente mais próximo que o cognado, isto é, mais próximo que o parente pela parte das mulheres(9).

Nada está mais estreitamente unido que os membros de uma gens. Unidos na celebração das mesmas cerimônias sagradas, eles se ajudam mutuamente em todas as necessidades da vida. Toda a gens responde pela dívida de qualquer de seus membros; resgata os prisioneiros, e paga a multa dos condenados. Se um dos seus se torna magistrado, ela se cotiza para pagar as despesas que acarreta toda magistratura(10).

O acusado faz-se acompanhar ao tribunal por todos os membros de sua gens: isso marca a solidariedade que a lei estabelece entre o homem e o corpo de que faz parte. É ato contrário à religião queixar-se contra um homem de sua gens, ou mesmo prestar testemunho contra ele. Um Cláudio, personagem considerável, era inimigo pessoal de Ápio Cláudio, o decênviro; quando este foi citado em justiça, e ameaçado de morte, Cláudio apresentou-se para defendê-lo, e implorou ao povo em seu favor não, porém, sem antes advertir de que, se dava esse passo, “não o fazia por afeto, mas por dever(11).”

Se um membro da gens não tinha direito de citar outro perante a justiça da cidade, é porque na própria gens administrava-se justiça. Cada uma, com efeito, tinha seu chefe, que era ao mesmo tempo juiz, sacerdote e comandante militar(12). Sabe-se que quando a família sabina dos Cláudios veio estabelecer-se em Roma, as três mil pessoas que a compunham obedeciam a um único chefe. Mais tarde, quando os Fábios tomam sobre os ombros a guerra contra os Veianos, vemos que essa gens tem um chefe que fala em seu nome diante do senado, e que a conduz contra o inimigo(13).

Também na Grécia cada gens tinha um chefe; as inscrições no-lo afirmam, e nos mostram que esse chefe usava geralmente o título de arconte(14). Enfim, tanto em Roma como na Grécia a gens tinha suas assembléias, promulgava decretos, aos quais seus membros deviam obedecer, e que eram respeitados pela própria cidade(15).

Tal é o conjunto de costumes e de leis que encontramos em vigor em épocas nas quais a gens já se achava enfraquecida e quase desnaturada. São estes os vestígios dessa antiga instituição(16).

2.° Exame de algumas opiniões emitidas a fim de explicar a gens romana.

Sobre esse assunto, de há muito entregue à disputa dos eruditos, vários sistemas têm sido propostos. Uns dizem: a gens não é nada mais que uma semelhança de nome. Segundo outros, a gens não é senão a expressão de certa relação entre uma família que exerce o patronado e outras famílias suas clientes. — Cada uma dessas opiniões contém parte da verdade, mas nenhuma corresponde a toda a série de fatos, de leis e costumes que acabamos de enumerar.

De acordo com outra teoria, a palavra gens designa uma espécie de parentesco artificial; a gens é a associação política de várias famílias, que em sua origem eram estranhas umas às outras; na falta de laços de sangue, a cidade estabelecera entre elas uma união fictícia, um parentesco convencional.

Mas uma primeira objeção se nos apresenta. Se a gens não é senão uma associação fictícia, como explicar que seus membros tenham direito de herdar uns dos outros? Por que o gentilis é preferido ao cognado? Vimos acima as regras da hereditariedade, e declaramos a relação estrita e necessária que a religião estabelecera entre o direito de herdar e o parentesco masculino. Poderemos supor que a antiga lei se afastasse tanto desse princípio, a ponto de conceder a sucessão aos gentiles, se estes fossem considerados estranhos?

O caráter mais evidente e melhor constatado da gens, é que ela possui culto próprio, como a família. Ora, se procurarmos qual é o deus adorado por cada uma, notaremos que é sempre um antepassado divinizado, e que o altar onde oferece o sacrifício é um túmulo. Em Atenas os Eumólpidas veneram a Eumolpos, tronco de sua raça; os Fitálidas, adoram ao herói Fitalos; os Butadas, a Butos; os Busélidas, a Buselos; os Laquiadas, a Laquos; os Aminandridos, a Cécrops(1). Em Roma, os Cláudios descendem de certo Clausus; os Cecílios honram como chefe da raça, o herói Céculo; os Calpúrnios, a Calpo; os Júlios, a um Júlio; os Clélios, a certo Clélio(2).

É verdade que bem podemos crer que muitas dessas genealogias foram imaginadas mais tarde; mas devemos notar que esse embuste não tem razão de ser, se não estivesse em constante uso entre as verdadeiras gentes reconhecer um antepassado comum, e render-lhe culto. A mentira procura sempre imitar a verdade.

Aliás, o embuste não seria tão fácil como parece. O culto não era apenas uma mera formalidade para se exibir. Uma das regras mais rigorosas da religião era que não se deviam honrar como antepassados senão aqueles dos quais se descendia realmente; oferecer culto a um estranho, era impiedade grave. Se, portanto, a gens adorava em comum algum antepassado, é porque acreditava sinceramente descender dele. Simular um túmulo, inventar aniversários e banquetes fúnebres, seria mentir no que havia de mais sagrado, seria zombar da religião. Tal ficção foi possível nos tempos de César, quando a velha religião das famílias já não impressionava a ninguém. Mas, se nos reportarmos aos tempos em que essas crenças eram poderosas, não podemos imaginar que várias famílias, associando-se em uma mesma farsa, tenham dito entre si: Vamos fingir ter um mesmo antepassado; nós lhes levantaremos um túmulo, oferecer-lhe-emos banquetes fúnebres, e nossos descendentes o adorarão pelos tempos afora. — Tal pensamento não se devia apresentar aos espíritos, de onde devia ser expulso como culposo.

Nos problemas difíceis que a história oferece freqüentemente, é bom perguntar aos termos da língua todos os ensinamentos que ela nos pode dar. Uma instituição é às vezes explicada pelo vocábulo que a designa. Ora, a palavra gens exprime exatamente o mesmo que a palavra genus, a ponto de se poder tomá-las uma pela outra, e dizer indiferentemente gens Fabia ou genus Fabium(3); ambas correspondem ao verbo gignere, e ao substantivo genitor, absolutamente como ghénos corresponde a ghennãn e a ghonéus. Todas essas palavras trazem idéia de filiação. Também os gregos designavam os membros de um ghonéus pela palavra homogálactes, que significa nutrido pelo mesmo leite(4). Comparemos todas essas palavras com as que temos o costume de traduzir por família, o latim familia e o grego õikos. Nem uma, nem outra contêm em si o sentido de geração ou de parentesco. O verdadeiro significado de familia é propriedade; designa o campo, a casa, o dinheiro, os escravos, e é por isso que as Doze Tábuas dizem, falando do herdeiro, familiam nancitor: o que aceita a sucessão. Quanto a õikos, é claro que não apresenta ao espírito outra idéia que a de propriedade ou de domicílio. Eis aí contudo os vocábulos que traduzimos ordinariamente por família. Ora, é admissível que palavras cujo sentido intrínseco, é domicílio ou propriedade, tenham sido empregadas tantas vezes para designar a família, e que outras palavras, cujo sentido interno é filiação, nascimento, paternidade, jamais designassem mais que uma associação artificial? Certamente isso não é conforme à nitidez e à precisão das línguas antigas. É fora de dúvida que gregos e romanos ligavam às palavras gens e ghénos a idéia de uma origem comum. Essa idéia pode haver desaparecido quando a gens foi alterada, mas a palavra ficou como testemunho de sua existência.

O sistema que apresenta a gens como uma associação factícia tem, portanto, a seu desfavor: 1.° a velha legislação, que dá aos gentiles direito de sucessão; 2.° as crenças religiosas, que não admitem comunidade de culto senão onde há comunidade de nascimento; 3.° Os termos da língua, que atestam na gens uma origem comum. — Outro defeito deste sistema é que supõe que as sociedades humanas puderam começar por uma convenção, por um artifício, o que a ciência histórica não pode admitir como verdade.

3.° A gens é a família mantendo ainda sua organização primitiva e sua unidade

Tudo nos apresenta a gens como unida por um laço de origem. Consultemos ainda a linguagem: os nomes das gentes, tanto na Grécia como em Roma, todos têm a forma que era usada em ambas as línguas para os nomes patronímicos. Cláudio significa filho de Clausus, e Butadas filho de Butas.

Os que julgam ver na gens uma associação artificial, partem de uma idéia falsa. Supõem que uma gens contava sempre várias famílias com nomes diversos, e citam de bom grado o exemplo da gens Cornélia, que na verdade teve entre seus membros alguns Cipiões, Lêntulos, Cossus e Silas. Estaria certo, se tudo corresse sempre assim. A gens Márcia parece não ter tido jamais senão uma única linhagem; o mesmo acontece com a gens Lucrécia e a gens Quintília, durante muito tempo. Seria na verdade muito difícil dizer quais são as famílias que formaram a gens Fábia, porque todos os Fábios conhecidos na história pertencem manifestamente à mesma estirpe, e de começo todos levam o mesmo sobrenome Vibulano; trocam-no logo depois por Ambusto, que mais tarde substituem pelo sobrenome de Máximo ou de Dorso.

Sabe-se que era costume em Roma que todo patrício tivesse três nomes. Chamava-se, por exemplo, Públio Cornélio Cipião. Não é inútil saber qual dessas três palavras era considerada nome verdadeiro. Públio não passava de um nome posto na frente, praenomen; Cipião era um nome ajuntado, agnomen. O verdadeiro nome, nomen, era Cornélio: ora, esse nome era ao mesmo tempo o nome de toda a gens. Se não tivéssemos acerca da antiga gens nada mais além desse ensinamento, este só bastaria para afirmar que houve Cornélios antes que existissem Cipiões, e não, como se costuma dizer, que a família dos Cipiões se uniu a outras para formar a gens Cornélia.

Com efeito, vemos pela história, que a gens Cornélia foi por muito tempo indivisa, e que todos seus membros ostentavam igualmente o cognome de Malugenenses e o de Cossus. Somente no tempo do ditador Camilo é que um de seus ramos adotou o sobrenome de Cipião; pouco mais tarde, outro ramo toma o sobrenome de Rufo, substituído depois pelo de Sila. Os Lêntulos não aparecem senão na época da guerra dos Samnitas, e os Cetegos apenas durante a segunda guerra púnica. O mesmo acontece com a gens Cláudia. Os Cláudios ficam por muito tempo unidos em uma única família, e todos levam o sobrenome de Sabinos ou de Regilenses, sinal de sua origem. Durante sete gerações não se distinguem ramos nessa família, aliás muito numerosa. Somente na oitava geração, isto é, nos tempos da primeira guerra púnica, é que vemos três ramos separarem-se, e adotar sobrenomes que se lhes tornam hereditários: são os Claudius Pulcher, que continuam por dois séculos; os Claudius Centho, que não demoram a desaparecer; e os Claudius Nero, que se perpetuam até os tempos do império.

Disso tudo se conclui que a gens não era uma associação de famílias, mas a própria família. Podia indiferentemente compreender uma única estirpe, ou produzir ramos numerosos; mas nunca deixava de ser uma só família.

Todavia, torna-se fácil entender a formação da gens antiga, e de sua natureza, se nos reportarmos às velhas crenças e instituições que observamos acima. Reconhecer-se-á mesmo que a gens derivou-se naturalmente da religião doméstica e do direito privado das antigas idades. Que prescreve, com efeito essa religião primitiva? Que o antepassado, isto é, o homem que por primeiro foi sepultado no túmulo familiar, seja honrado perpetuamente como deus, e que seus descendentes, reunidos cada ano junto ao lugar sagrado onde repousa, lhe ofereçam o banquete fúnebre. O lar sempre aceso, o túmulo sempre honrado pelo culto, eis o centro ao redor do qual todas as gerações vêm viver, e pelo qual todos os ramos da família, por mais numerosos que possam ser, continuam agrupados em um único feixe. Que diz ainda o direito privado desses velhos tempos? Observando-se o que era a autoridade na família antiga, vimos que os filhos não se separavam do pai; estudando-se as regras da transmissão do patrimônio, constatamos que, graças ao princípio da comunidade do domínio, os irmãos menores não se separavam do mais velho. Lar, túmulo, patrimônio, tudo isso em sua origem era indivisível. A família o era, por conseqüência. O tempo não a desmembrava. Essa família indivisível, que se desenvolvia através das idades, perpetuando de século em século seu culto e seu nome, era verdadeiramente a gens antiga. A gens era a família, mas a família conservando a unidade ordenada pela religião e atingindo todo o desenvolvimento que o antigo direito privado lhe permitia atingir(1).

Admitida essa verdade, tudo o que os antigos escritores nos dizem a respeito da gens torna-se claro. A estreita solidariedade, que há pouco notamos entre seus membros, nada tem mais de surpreendente; eles são parentes por nascimento. O culto que praticam em comum não é uma ficção: vem-lhes de seus antepassados. Como eles são uma mesma família, têm sepultura comum. Pela mesma razão, a lei das Doze Tábuas declara-os aptos a herdar uns dos outros. Como todos eles tinham, na origem, um mesmo patrimônio indivisível, tornou-se costume e mesmo necessidade que a gens inteira respondesse pela dívida de um de seus membros, que pagasse a ração do prisioneiro ou a multa do condenado. Todas essas regras haviam sido estabelecidas por si mesmas, quando a gens ainda estava unida; com seu desmembramento, não puderam desaparecer completamente. Da unidade antiga e santa da família ficaram marcas persistentes no sacrifício anual, que tornava a congregar os membros dispersos; na legislação, que lhes reconhecia direitos de hereditariedade; nos costumes, que lhes ordenava que se ajudassem mutuamente.

Era natural que os membros de uma mesma gens usassem um mesmo nome, e foi o que aconteceu. O uso dos nomes patronímicos data dessa antiguidade, e se relaciona visivelmente com a velha religião. A unidade de nascimento e de culto era indicada pela unidade do nome. Cada gens transmite de geração em geração o nome do antepassado, e o perpetua com o mesmo cuidado que demonstrava para com o culto. O que os romanos chamavam propriamente de nomen era esse nome do antepassado, que todos os descendentes e todos os membros da gens deviam levar. Dia veio em que cada ramo, tornando-se independente em algumas coisas, marcou sua individualidade adotando o sobrenome (cognomen). Contudo, como cada pessoa devia distinguir-se por uma denominação particular, cada um recebeu um agnomem, como Caius ou Quintus. Mas o verdadeiro nome era o da gens; este era o usado oficialmente, este era o nome sagrado, este era o que, remontando ao primeiro antepassado conhecido, devia durar tanto quanto a família e seus deuses. O mesmo acontecia na Grécia; romanos e helenos assemelham-se também nesse pormenor. Cada grego, pelo menos se pertencia a uma família antiga e regularmente constituída, tinha três nomes, como os patrícios romanos. Um destes lhe era particular, outro era o nome do pai; e como esses dois nomes alternavam-se ordinariamente entre si, o conjunto de ambos equivalia ao cognome hereditário, que designava em Roma um ramo da gens; enfim, o terceiro nome era o de toda a gens. Assim, dizia-se: Milcíades, filho de Címon, Laquia; e na geração seguinte: Címon, filho de Milcíades, Laquiadas: Kimõn Miltiádou Lakiádes. Os Laquiadas formavam um ghénos, como os Cornélios uma gens. Assim acontecia com os Butados, os Filatidos, os Britidos, os Aminandridos, etc. Podemos notar que Píndaro jamais faz o elogio desses gregos, sem lembrar-lhes o nome de seu ghénos. Esse nome, entre os gregos, ordinariamente terminava em ides ou ades, e tinha assim uma forma de adjetivo, do mesmo modo que o nome da gens entre os romanos, terminava invariavelmente em ius. Não era esse o verdadeiro nome; na linguagem diária podia-se designar o homem por seu sobrenome individual, mas na linguagem oficial, da política ou da religião, era necessário dar ao homem sua denominação completa, e, sobretudo, não esquecer o nome do ghénos(2). — É digno de nota que a história dos nomes seguiu caminho completamente diverso entre os antigos do que nas sociedades cristãs. Na Idade Média, até o século doze, o verdadeiro nome era o nome de batismo, ou nome individual, e os nomes patronímicos não apareceram senão muito tarde, como nomes de terra, ou como sobrenomes. Entre os antigos deu-se exatamente o contrário. Ora, essa diferença, se a observarmos bem, relaciona-se à diferença das duas religiões. Para a antiga religião doméstica a família era o verdadeiro corpo, o verdadeiro ser vivente, do qual o indivíduo era membro inseparável; assim o nome patronímico foi o primeiro em data e o primeiro em importância. A nova religião, pelo contrário, reconhecia ao indivíduo uma vida própria, uma liberdade completa, uma independência toda pessoal, e não lhe repugnou de modo algum isolá-lo da família; destarte, o nome de batismo foi o primeiro, e, por muito tempo, o único nome.

4.° Extensão da família: a escravidão e a clientela

O que temos visto da família, sua religião doméstica, os deuses por ela instituídos, as leis por ela estabelecidas, o direito de primogenitura, sobre o qual se baseava, sua unidade, seu desenvolvimento de idade em idade, até formar a gens, sua justiça, seu sacerdócio, seu governo interior, tudo isso leva forçosamente nosso pensamento para uma época primitiva, em que a família era independente de todo poder superior, e em que a cidade ainda não existia.

Vejamos essa religião doméstica: os deuses, que não que não pertenciam senão a uma família, e não exerciam sua providência além dos muros de uma casa; o culto secreto, a religião que não queria ser propagada; a antiga moral, que prescrevia o isolamento das famílias; é claro que crenças dessa natureza não puderam aparecer no espírito dos homens senão em épocas em que as grandes sociedades ainda não estavam formadas. Se o sentimento religioso contentou-se com uma concepção tão restrita da divindade, é porque a associação humana era então proporcionalmente acanhada. Os tempos em que o homem não acreditava senão nos deuses domésticos, é também o tempo em que não existiam senão famílias. É bem verdade que essas crenças subsistiram depois, e até por muito tempo, quando as cidades e nações já estavam formadas. O homem não se liberta facilmente das opiniões que uma vez o dominaram. Essas crenças, portanto, puderam durar, embora estivessem em contradição com o estado social. Com efeito, que há de mais contraditório que viver em sociedade civil, e ter em cada família deuses particulares? Mas é claro que essa contradição não existiu sempre, e que na época em que essas crenças se haviam estabelecido nos espíritos, e se haviam tornado tão poderosas para formar uma religião, elas correspondiam exatamente ao estado social dos homens. Ora, o único estado social que pode estar de acordo com elas é aquele em que a família vive independente e isolada.

É nesse estado que toda a raça ariana parece ter vivido por muito tempo. Os hinos dos Vedas o atestam para o ramo que deu nascimento aos hindus: as velhas crenças e o velho direito privado o atestam para aqueles que depois se tornaram os gregos e os romanos.

Se compararmos as instituições políticas dos árias do Ocidente com as dos árias do Oriente, não encontraremos quase nenhuma analogia. Se compararmos, pelo contrário, as instituições domésticas desses diversos povos, perceberemos que a família estava constituída de acordo com os mesmos princípios tanto na Grécia como na Índia; esses princípios eram, aliás, como constatamos acima, de natureza tão singular, que não devemos supor que a semelhança fosse simples efeito do acaso; enfim, não somente essas instituições oferecem evidente analogia, mas ainda as palavras que as designam são muitas vezes as mesmas, nas diferentes línguas que essa raça falou desde o Ganges até o Tibre. Daí podemos tirar duas conclusões: uma é que o nascimento das instituições domésticas nessa raça é anterior à época em que seus diferentes ramos se separaram; outra é que, pelo contrário, o nascimento das instituições políticas é posterior a essa separação. As primeiras foram fixadas desde os tempos em que a raça vivia ainda em seu antigo berço da Ásia central; as segundas se formaram pouco a pouco, nos diversos lugares onde suas migrações a conduziram.

Pode-se, pois, entrever um longo período durante o qual os homens não conheceram nenhuma outra forma de sociedade além da família. Foi então que surgiu a religião doméstica, que não teria podido nascer em sociedade constituída de modo diverso, e que por muito tempo serviu até de obstáculo ao desenvolvimento social. Estabeleceu-se então o antigo direito privado, que mais tarde achou-se em desacordo com os interesses de uma sociedade pouco desenvolvida, mas que estava em perfeita harmonia com o estado da sociedade na qual se formou.

Ponhamo-nos, portanto, com o pensamento no meio dessas antigas gerações, cuja lembrança não pôde perecer por completo, e que legaram suas crenças e leis às gerações seguintes. Cada família tem sua religião, seus deuses, seu sacerdócio. O isolamento religioso é sua lei; seu culto é seu segredo. Na mesma morte, e na existência que se lhe segue, as famílias não se confundem: cada uma continua a viver à parte em seu túmulo, de onde os estranhos são excluídos. Cada família tem também sua propriedade, isto é, a parte de terra que lhe está ligada inseparavelmente pela religião; seus deuses Termos guardam-lhe os limites, e seus manes a protegem. O isolamento da propriedade é de tal modo obrigatório, que dois domínios não podem avizinhar-se, e devem deixar entre si uma faixa de terra neutra, que se torna inviolável. Enfim, cada família tem seu chefe, como uma nação teria um rei; tem suas leis, que sem dúvida não são escritas, mas que a crença grava no coração de cada homem; tem sua justiça interior, acima da qual não há nenhuma outra à qual possa apelar. Tudo aquilo de que o homem tem rigorosa necessidade para sua vida material ou para sua vida moral, a família o possui em si. Não precisa de coisa alguma de fora; é um estado organizado, uma sociedade auto-suficiente.

Mas essa família das antigas idades não está reduzida às proporções da família moderna. Nas grandes sociedades a família se desmembra, e diminui, mas na ausência de qualquer outra sociedade ela se estende, se desenvolve, ramifica-se sem se dividir. Os ramos mais novos continuam agrupados ao redor do mais velho, perto do lar único e do túmulo comum.

Outro elemento ainda entra na composição dessa família antiga. A necessidade recíproca que o pobre tem do rico, e que o rico tem do pobre, criou os servos. Mas nessa espécie de regime patriarcal, servos ou escravos, tudo é a mesma coisa. Com efeito, concebe-se que o princípio do serviço livre, voluntário, podendo cessar à vontade do servidor, não se pode coadunar com um estado social em que a família vive isolada. Aliás, a religião doméstica não permite admitir na família nenhum estranho. É necessário, portanto, que por algum meio o servo se torne membro e parte integrante da família, o que se consegue por uma espécie de iniciação do recém-vindo no culto doméstico.

Um costume curioso, que por muito tempo subsistiu nas casas atenienses, mostra-nos como o escravo entrava para a família. Faziam-no aproximar do lar, colocavam-no em presença da divindade doméstica, derramavam-lhe sobre a cabeça a água lustral, e faziam-no compartilhar com a família de alguns bolos e frutas(1). Essa cerimônia tinha analogia com a do casamento e da adoção. Significava sem dúvida que o novo membro, outrora estranho, de agora em diante passava a ser membro da família, cuja religião adotava. Assim, o escravo assistia às preces e participava das festas(2). O lar o protegia; a religião dos deuses lares pertencia-lhe tanto quanto a seu dono(3). É por essa razão que o escravo devia ser enterrado na sepultura da família.

Mas, por isso mesmo que o servo adquiria o culto e o direito de orar, perdia a liberdade. A religião era uma cadeia que o retinha. Estava ligado à família por toda a vida, e mesmo para o tempo que se seguia à morte.

Seu senhor podia libertá-lo, e tratá-lo como homem livre. Mas o servo não deixava por isso a família. Como estava ligado a ela pelo culto, não podia sem impiedade separar-se da mesma. Sob o nome de liberto ou de cliente, continuava a reconhecer a autoridade do chefe ou patrono, e não deixava de ter obrigações para com ele. Não se casava senão com sua autorização, e seus filhos continuavam a dever-lhe obediência(4).

Formava-se assim, no seio da grande família, certo número de pequenas famílias clientes e subordinadas. Os romanos atribuíam o estabelecimento da clientela a Rômulo, como se uma instituição dessa natureza pudesse ser obra de um só homem. A clientela é mais antiga que Rômulo. Aliás, existia em toda parte, tanto na Grécia como em toda a Itália(5). Não foram as cidades que estabeleceram regras: pelo contrário, como veremos mais adiante, elas pouco a pouco diminuíram-nas, destruíram-nas. A clientela é uma instituição do direito doméstico, e existiu nas famílias antes que existissem cidades.

Não devemos julgar a clientela dos tempos antigos pelos clientes que vemos no tempo de Horácio. É claro que o cliente foi por muito tempo um servo ligado ao patrão. Mas havia então algo que constituía sua dignidade: ele tomava parte no culto, e estava associado à religião da família. Tinha o mesmo lar, as mesmas festas, os mesmos sacra que o patrono. Em Roma, em sinal dessa comunidade religiosa, tomava o nome da família. Era considerado membro da mesma pela adoção. Daí um laço estreito, e uma reciprocidade de deveres entre o patrono e o cliente. Ouvi a velha lei romana: “Se o patrono causou dano ao cliente, que seja maldito — sacer esto — que morra(6).” — O patrono deve proteger o cliente por todos os meios e todas as forças de que dispõe: por sua oração como sacerdote; por sua lança, como guerreiro; por sua lei, como juiz. Mais tarde, quando a justiça da cidade chamar o cliente, o patrono deverá defendê-lo, deverá mesmo revelar-lhe as fórmulas misteriosas da lei que o farão ganhar a causa(7). Pode-se testemunhar em justiça contra um cognado, mas nunca contra um cliente(8), e os deveres para com os clientes continuarão a ser considerados muito acima dos deveres para com os cognados(9). Por que? Porque um cognado, ligado somente pelas mulheres, não é parente, e não toma parte na religião da família. O cliente, pelo contrário, tem a comunidade do culto; goza, por mais inferior que seja, do verdadeiro parentesco, que consiste, segundo expressão de Platão, em adorar os mesmos deuses domésticos.

A clientela é um laço sagrado que a religião formou, e que nada poderá romper. Uma vez que se é cliente em uma família, não se pode mais separar-se dela. A clientela desses tempos primitivos não é relação voluntária e passageira entre dois homens: é hereditária; é-se cliente por dever, de pai a filho(10).

Por tudo isso vemos que a família nos tempos antigos, com seu ramo mais velho e seus ramos mais novos, seus servos e clientes, podia formar um grupo de homens muito numeroso. Uma família, graças à religião, que a mantinha unida; graças a seu direito particular, que a tornava indivisível; graças às leis da clientela, que mantinha seus servos, chegou a formar com o tempo uma sociedade muito extensa, que tinha seu chefe hereditário. Foi de um número indefinido de sociedades dessa natureza que a raça ariana parece haver sido composta durante uma longa série de séculos. Esses milhares de pequenos grupos viviam isolados, com poucas relações entre si, sem necessidade uns dos outros, sem estarem unidos por nenhum laço, nem religioso, nem político, tendo cada um seu domínio, cada um seu governo interior, cada um seus deuses particulares.


LIVRO TERCEIRO
A CIDADE


CAPÍTULO I

A FRATRIA E A CÚRIA. A TRIBO

 

Até aqui não apresentamos e não pudemos apresentar nenhuma data. Na história dessas sociedades antigas, as épocas são mais facilmente marcadas pela sucessão das idéias e das instituições que pela dos anos.

O estudo das antigas regras do direito privado fez-nos entrever, para além dos tempos chamados históricos, um período de séculos, durante os quais a família foi a única forma de sociedade. Essa família podia então conter em seu extenso quadro vários milhares de criaturas humanas. Mas nesses limites a associação humana era ainda muito acanhada; muito estreita para as necessidades materiais, porque era difícil que a família fosse auto-suficiente para todas as necessidades da vida; era também muito acanhada para as necessidades morais de nossa natureza, porque vimos como nesse pequeno mundo a inteligência do divino era insuficiente e a moral incompleta.

A pequenez dessa sociedade primitiva correspondia bem à pequenez da idéia que se tinha da divindade. Cada família tinha seus deuses, e o homem não concebia nem adorava senão divindades domésticas. Mas ele não devia contentar-se por muito tempo com esses deuses, tão abaixo do que sua inteligência podia atingir. Se lhe eram necessários ainda para chegar a imaginar Deus como um ser único, incomparável, infinito, pelo menos devia aproximar-se insensivelmente desse ideal, engrandecendo de geração em geração sua concepção, e recuando pouco a pouco o horizonte cuja linha para ele separa o Ser divino das coisas da terra.

A idéia religiosa e a sociedade humana, portanto, deviam crescer juntas.

A religião doméstica proibia a duas famílias unir-se ou confundir-se. Mas era possível que várias famílias, sem nada sacrificar de sua religião particular, se unissem pelo menos para a celebração de outro culto, que lhes fosse comum. E foi o que aconteceu. Certo número de famílias formaram um grupo, que a língua grega chamava fratria, e a latina cúria(1). Existiria entre as famílias de um mesmo grupo algum laço de nascimento? É impossível afirmá-lo. O que é certo é que essa associação nova não se fez sem certo progresso da idéia religiosa. No mesmo momento em que se uniam, essas famílias conceberam uma divindade superior às divindades domésticas, um deus comum a todas, e que velava sobre todo o grupo. Levantaram-lhe um altar, acenderam um fogo sagrado, e instituíram um culto(2).

Não havia cúria ou fratria que não tivesse seu altar e seu deus protetor. O ato religioso conservava as mesmas características que na família. Consistia essencialmente em um banquete fúnebre, realizado em comum; o alimento era preparado sobre o próprio altar, e, conseqüentemente, era sagrado, e era consumido enquanto se recitavam preces; a divindade estava presente, e recebia seu quinhão de alimentos e bebidas(3).

Essas refeições fúnebres da cúria subsistiram por tempo em Roma; Cícero fala delas, Ovídio descreve-as(4). Nos tempos de Augusto ainda conservavam sua forma antiga. — “Vi nessas moradas sagradas — diz um historiador da época — a refeição servida diante do deus; as mesas eram de madeira, de acordo com o uso dos antepassados, e a baixela de barro. Os alimentos eram pão, bolos de flor de farinha, e algumas frutas. Vi que faziam libações, que não caíam de cálices de ouro ou prata, mas de vasos de argila; e admirei os homens de hoje, que continuam tão fiéis aos ritos e costumes de seus pais(5).” — Em Atenas, em dias de festa, tais como as Apatúrias e as Targélias, cada fratria se reunia ao redor do altar; imolava-se uma vítima; as carnes, cozidas sobre o fogo sagrado, eram divididas entre todos os membros da fratria, e cuidava-se muito para que nenhum estranho delas participasse(6).

Há costumes que duraram até os últimos tempos da história grega, e que lançam alguma luz sobre a natureza da antiga fratria. Assim vemos que nos tempos de Demóstenes, para se fazer parte de uma fratria, era necessário nascer de casamento legítimo, em uma das famílias que a compõem. Porque a religião da fratria, como a da família, não se transmitia senão pelo sangue. O jovem ateniense era apresentado à fratria pelo pai, que jurava ser ele seu filho. A admissão era realizada sob forma religiosa. A fratria imolava uma vítima, cuja carne era cozida sobre o altar; todos os membros estavam presentes. Recusavam admitir o novo candidato, como de direito, quando duvidavam da legitimidade do nascimento, casos em que deviam tirar as carnes de sobre o altar. Se não o faziam, se depois de cozidas eles dividiam com o candidato as carnes da vítima, o jovem era admitido, e se tornava irrevogavelmente membro da associação(7). O que explica essas práticas é que os antigos acreditavam que todo alimento preparado sobre o altar, e dividido entre várias pessoas, estabelecia entre elas um laço indissolúvel, uma união santa, que não cessava com a morte(8).

Cada fratria ou cúria tinha um chefe, curião ou fratriarca, cuja principal função era presidir aos sacrifícios. Talvez suas atribuições a princípio tenham sido mais extensas. A fratria tinha suas assembléias, suas deliberações, e podia promulgar decretos(9). Nela, como na família, havia um deus, um culto, um sacerdote, uma justiça e um governo. Era uma pequena sociedade, modelada exatamente sobre a da família.

A associação, naturalmente, continuou a crescer, e da mesma maneira. Várias cúrias ou fratrias agruparam-se, e formaram a tribo.

Esse novo círculo teve também sua religião; em cada tribo havia um altar e uma divindade protetora(10).

O deus da tribo era ordinariamente da mesma natureza que o da fratria ou o da família. Era um homem divinizado, um herói. Dele a tribo tirou seu nome: também os gregos chamavam-nos heróis epônimos, com um dia consagrado à sua festa anual. A parte principal da cerimônia religiosa era um banquete, do qual toda a tribo participava(11).

A tribo, como a fratria, tinha assembléias e promulgava decretos, aos quais todos os membros deviam submeter-se. Tinha um tribunal e direito de justiça sobre seus membros. Tinha um chefe, tribunus, phylobasiléus(12). Pelo que nos resta da instituição das tribos, vemos que havia sido constituída, em sua origem, para ser uma sociedade independente, como se não tivesse nenhum poder social sobre si(13).

CAPÍTULO II

NOVAS CRENÇAS RELIGIOSAS

 

1.° Os deuses da natureza física

Antes de passar da formação das tribos para o nascimento das cidades, devemos mencionar um elemento importante da vida intelectual desses povos antigos.

Ao procurarmos conhecer as antigas crenças desses povos, encontramos uma religião que tinha por objeto os antepassados, e por principal símbolo o lar; ela é que constituiu a família e estabeleceu as primeiras leis. Mas essa raça teve também, em todos seus ramos, uma outra religião, cujas principais figuras foram Zeus, Hera, Atenas, Juno, a do Olimpo helênico e a do Capitólio romano.

Dessas duas religiões, a primeira tomava seus deuses da alma humana, a segunda da natureza física. Se o sentimento da força física, e da consciência que leva consigo, inspirou ao homem a primeira idéia da divindade, a vista dessa imensidão que o rodeia e que o esmaga deu outro curso a seu sentimento religioso.

O homem dos primeiros tempos estava continuamente à frente da natureza; os hábitos da vida civilizada ainda não haviam estendido um véu entre ela e o homem. Seu olhar encantava-se com suas belezas, admirava-se por suas grandezas. Gozava da luz, assustava-se com a noite, e quando via voltar “a santa claridade dos céus(1),” sentia-se reconhecido. Sua vida estava nas mãos da natureza: esperava a nuvem benfazeja, da qual dependia a colheita; temia a tempestade, que podia destruir-lhe o trabalho e a esperança de todo um dia. Sentia a todo momento a própria fraqueza, e a incomparável força de tudo o que o rodeava. Sentia perpetuamente um misto de veneração, de amor e de terror, por aquela natureza poderosa.

Esse sentimento, não o conduziu imediatamente à concepção de um deus único, senhor de todo o universo, porque ele não tinha ainda a idéia de universo. Não sabia que a terra, o sol, os astros, fossem partes de um mesmo corpo, e não podiam pensar que pudessem ser governados por um mesmo ser. Aos primeiros olhares que lançou sobre o mundo exterior, o homem o imaginou como uma espécie de república confusa, na qual forças rivais guerreavam entre si. Como julgava as coisas exteriores por si próprio, e sentia em si uma pessoa livre, viu também em cada parte da criação, no solo, nas árvores, nas nuvens, nas águas dos rios, no sol, outras tantas pessoas semelhantes a si; atribuiu-lhes pensamento, vontade, discernimento; como as sentia poderosas, e como estava submetido a seu império, confessou-lhes sua dependência; dirigiu-lhes preces e adorações, transformando-as em deuses.

Assim, nessa raça, a idéia religiosa se apresentou sob três formas muito diversas. De uma parte, o homem ligou o atributo divino ao princípio invisível, à inteligência, ao que entrevia da alma, ao que sentia de sagrado em si. Por outra parte, aplicou sua idéia de divindade aos objetos exteriores que contemplava, que amava e temia, aos agentes físicos, senhores de sua felicidade e de sua vida.

Essas duas ordens de crenças deram lugar a duas religiões, que vemos durar tanto quanto as sociedades grega e romana. Elas não se combateram, vivendo até em muito boa inteligência, dividindo entre si o império sobre o homem; mas jamais se confundiram. Sempre tiveram dogmas distintos, muitas vezes contraditórios, cerimônias e práticas absolutamente diversas. O culto dos deuses do Olimpo e o dos heróis e dos manes, jamais tiveram algo em comum. Qual dessas duas religiões foi a primeira a aparecer, não saberíamos dizer; não saberíamos nem mesmo afirmar que uma tenha sido anterior à outra; o que é certo é que uma, a dos mortos, tendo sido fixada em época muito longínqua, continuou imutável em suas práticas, enquanto seus dogmas desapareciam aos poucos; a outra, a da natureza física, foi mais progressiva, e se desenvolveu livremente através das idades, modificando pouco a pouco suas fábulas e doutrinas, e aumentando continuamente sua autoridade sobre o homem.

2.° Relação dessa religião com o desenvolvimento da sociedade humana

Podemos acreditar que os rudimentos dessa religião da natureza são muito antigos, talvez tanto quanto o culto dos antepassados; mas, como correspondia a concepções mais gerais e mais altas, foi-lhe necessário muito tempo para se fixar em uma doutrina precisa(1). É bem verdade que ela não surgiu no mundo em um dia, e que não nasceu completa do cérebro de um só homem. Não vemos na origem dessa religião nem um profeta, nem um corpo de sacerdotes. Aparece nas diferentes inteligências por efeito de sua força natural. Cada um a fez à sua moda. Entre todos esses deuses, nascidos de espíritos diversos, houve semelhanças, porque as idéias se formavam no homem de acordo com um modo quase uniforme; mas houve também grande variedade, porque cada espírito era o autor de seus deuses, resultando daí que essa religião por muito tempo foi confusa, e seus deuses foram inumeráveis.

Entretanto, os elementos que se podiam divinizar não eram muitos. O sol que fecunda, a terra que alimenta, a nuvem ora benfazeja ora funesta, tais eram os principais poderes com os quais se podiam fazer deuses. Mas de cada um desses elementos nasceram milhares de deuses. É que o mesmo agente físico, visto sob aspectos diversos, recebeu dos homens nomes diferentes. O sol por exemplo, aqui chamava-se Héracles — o glorioso; — ali Febos — o brilhante; — mais além Apolo — aquele que afasta a noite ou o mal; um o chamou de Ser elevado (Hipérion), outro de compassivo (Alexicacos), e, com o tempo, os grupos de homens que haviam dado esses nomes ao astro brilhante, não reconheceram que tinham o mesmo deus.

De fato, cada homem não adorava senão um número muito restrito de divindades, mas os deuses de um não pareciam ser os deuses do outro. Os nomes, na verdade, podiam assemelhar-se; muitos homens teriam podido dar separadamente a seu deus o nome de Apolo ou de Hércules, porque essas palavras pertenciam à língua usual, e não passavam de adjetivos que designavam o Ser divino, por um ou outro de seus atributos mais evidentes. Mas, sob esse mesmo nome, os diferentes grupos de homens não podiam acreditar na existência de um só deus. Contavam-se milhares de Júpiteres diferentes; havia uma multidão de Minervas, de Dianas, de Junos, que pouco se assemelhavam. Como cada uma dessas concepções eram formadas pelo trabalho livre de cada espírito, e sendo, de algum modo, propriedade sua, aconteceu que esses deuses por muito tempo ficaram independentes uns dos outros, e cada um teve sua fábula particular e seu culto(2).

Como a primeira aparição dessas crenças deu-se em época em que os homens ainda viviam no estado de família, esses novos deuses tiveram a princípio, como os demônios, os heróis e os lares, o caráter de divindades domésticas. Cada família fizera seus deuses, e cada uma os guardava para si, como protetores, cujas boas graças não podia dividir com estranhos. Este é um pensamento que aparece freqüentemente nos hinos dos Vedas, e não há dúvida de que o mesmo acontecia com o espírito dos árias do Ocidente, porque deixou vestígios visíveis em sua religião. À medida que uma família, ao personificar um agente físico, criava um deus, ela o associava ao lar, contava-o entre seus penates, e acrescentava em suas preces algumas palavras a ele dirigidas. É por isso que freqüentemente encontramos entre os antigos expressões como estas: Os deuses que residem junto de meu lar, o Júpiter de meu lar, o Apolo de meus pais(3). — “Eu te conjuro — diz Tecmesse a Ajax — em nome do Júpiter que mora junto de teu lar.” — Medéia, a mágica, diz em Eurípides: “Juro-o por Hecate, minha deusa principal, que venero, e que habita o santuário de meu lar.” — Quando Virgílio descreve o que há de mais velho na religião de Roma, mostra Hércules associado ao lar de Evandro, e adorado por ele como divindade doméstica.

Daí se originaram aqueles milhares de cultos locais, entre os quais a unidade jamais se pôde estabelecer. Daí as lutas de deuses, tão numerosas no politeísmo, e que representam lutas de famílias, de cantões ou de cidades. Daí, enfim, essa multidão inumerável de deuses e deusas, dos quais conhecemos certamente a menor parte, porque muitos desapareceram sem deixar nem a lembrança de seu nome, pois as famílias que os adoravam se extinguiram, ou as cidades que lhes dedicaram culto foram destruídas.

Foi necessário muito tempo para que esses deuses saíssem do seio das famílias que os haviam concebido, e que os encaravam como patrimônio. Sabemos até que muitos deles nunca conseguiram sair dessa espécie de círculo doméstico. Deméter, de Elêusis, ficou sendo a divindade particular da família dos Eumólpidas; a Atenas da acrópole de Atenas pertencia à família dos Butados. Os Potícios de Roma tinham um Hércules, e os Náutios uma Minerva(4). É muito provável que o culto de Vênus tenha ficado por muito tempo restrito à família dos Júlios, e que essa deusa não teve culto público em Roma.

Com o tempo, à medida que a divindade de uma família ia adquirindo grande prestígio sobre a imaginação dos homens, mostrando-se poderosa na proporção da prosperidade da mesma família, toda uma cidade desejava adotá-la, e render-lhe culto público para impetrar-lhe favores. Foi o que aconteceu com a Deméter dos Eumólpidas, a Atenas dos Butados, o Hércules dos Potícios. Mas, quando uma família consentia em tornar públicos seus deuses, reservava para si o respectivo sacerdócio. Pode-se notar que a dignidade do sacerdócio, para cada deus em particular, foi por muito tempo hereditária, e não pôde sair de determinadas famílias(5). É o vestígio de um tempo em que o próprio deus era propriedade da família, não protegia senão a ela, e não desejava ser obsequiado senão por ela.

É, portanto, certo dizer-se que essa segunda religião estava de inteiro acordo com o estado social dos homens. Ela teve por berço a família, e ficou por muito tempo confinada dentro desse horizonte restrito. Mas se prestava melhor que o culto dos mortos para os futuros progressos da associação humana. Com efeito, os antepassados, os heróis, os manes, eram deuses que, por sua própria essência, não podiam ser adorados senão por pequeno número de homens, traçando para sempre intransponíveis linhas de demarcação entre as famílias. A religião dos deuses da natureza era campo mais vasto. Nenhuma lei rigorosa se opunha a que cada um desses cultos se propagasse; não estava na natureza íntima desses deuses serem adorados apenas por uma família, rejeitando os estranhos. Enfim, os homens deviam chegar insensivelmente a perceber que o Júpiter de uma família era, no fundo, o mesmo ser, ou a mesma concepção que o Júpiter de outra, o que jamais poderiam acreditar se se tratasse de dois manes, de dois antepassados ou de dois lares.

Acrescentemos ainda que essa nova religião tinha também outra moral. Não se limitava a ensinar ao homem os deveres da família. Júpiter era o deus da hospitalidade; a ele se dirigiam os estrangeiros, os suplicantes, “os veneráveis indigentes”, que deviam ser tratados “como irmãos”. Todos esses deuses tomavam muitas vezes forma humana, e apareciam aos mortais. Às vezes apareciam para assistir a suas lutas e tomar parte em seus combates; muitas vezes também para prescrever-lhes a concórdia, e ensinar-lhes o auxílio mútuo.

À medida que essa segunda religião se ia desenvolvendo, a sociedade cresceu. Ora, é claro que essa religião, a princípio fraca, depois estendeu-se muito. Na origem, quase que se havia abrigado no seio das famílias, sob a proteção do lar doméstico. Lá o novo deus conseguira um pequeno lugar, uma exígua cella, à vista e ao lado do altar venerado, a fim de que recebesse um pouco do respeito que os homens tinham pelo lar. Pouco a pouco esse deus, tomando mais autoridade sobre a alma, renunciou a essa espécie de tutela, e deixou o lar doméstico; teve um lugar a parte, e sacrifícios que lhe eram próprios. Esse lugar (naós, de naio, habitar) foi, aliás, construído à imagem do antigo santuário; foi, como a princípio, uma cella à frente do lar; mas a cella tornou-se mais espaçosa, mais bonita, transformou-se em templo. O lar continuou à entrada da casa do deus, mas ficou bem pequeno em relação a ele. Ele que fora o principal, tornou-se acessório. Deixou de ser o deus, e desceu para a condição de altar, de instrumento para o sacrifício. Foi encarregado de queimar a carne da vítima, e de levar a oferenda, juntamente com a prece do homem, à divindade majestosa, cuja estátua residia no interior do templo.

Quando vemos levantarem-se esses templos, abrindo as portas diante de uma multidão de adoradores, podemos ter a certeza de que a inteligência humana e a sociedade cresceram.

CAPÍTULO III

FORMA-SE A CIDADE

 

A tribo, como a família e a fratria, estava constituída para ser um corpo independente, porque tinha culto especial, do qual os estranhos eram excluídos. Uma vez formado, nenhuma nova família podia ser nela admitida. Duas tribos também não podiam fundir-se em uma: a religião opunha-se a isso. Mas, assim como várias fratrias se haviam unido em uma tribo, várias tribos puderam associar-se entre si, com a condição de que o culto de cada uma fosse respeitado. No dia em que se fez essa aliança, a cidade começou a existir.

Pouco importa procurar a causa que determinou a união de tribos vizinhas. Às vezes a união foi voluntária, às vezes foi imposta pela força superior de uma tribo, pela vontade poderosa de um homem. O que é certo é que foi ainda o culto que constituiu o vínculo dessa nova associação. As tribos que se agruparam, para formar uma cidade, jamais deixaram de acender o fogo sagrado e de instituir uma religião comum.

Assim a sociedade humana, nessa raça, não cresceu como um círculo, que se estenderia pouco a pouco, vencendo progressivamente. Pelo contrário, são pequenos grupos, há muito constituídos, que se agregaram uns aos outros.

Várias famílias formaram a fratria, várias fratrias formaram a tribo, várias tribos formaram a cidade. Família, fratria, tribo, cidade, são, portanto, sociedades exatamente semelhantes entre si, nascidas uma da outra, por uma série de federações.

Convém notar que, à medida que esses diferentes grupos se associavam assim entre si, nenhum deles, todavia, perdia sua individualidade ou independência. Embora várias famílias se unissem em uma fratria, cada uma delas continuava constituída como na época em que viviam isoladas; nada era mudado, nem o culto, nem o sacerdócio, nem o direito de propriedade, nem a justiça interior. As cúrias uniram-se depois, mas cada uma conservava seu próprio culto, suas reuniões, suas festas, seu chefe. Da tribo passou-se à cidade, mas nem por isso aquelas se dissolveram, e cada uma delas continuou a formar corpo à parte, quase como se a cidade não existisse. Na religião subsistia uma multidão de pequenos cultos, acima dos quais estabeleceu-se um culto comum; em política, uma multidão de pequenos governos continuava a funcionar, e acima deles levantou-se um governo comum.

A cidade era uma confederação. Por essa razão foi obrigada, pelo menos durante muitos séculos, a respeitar a independência religiosa e civil das tribos, das cúrias e das famílias; e por isso, a princípio, não teve o direito de intervir nos negócios particulares dessas pequenas entidades. Ela nada tinha a ver com o que se passava no interior de uma família; não era juiz do que acontecia; deixava ao pai o direito de julgar a mulher, o filho, os clientes. É por essa razão que o direito privado, que havia sido fixado na época de isolamento entre as famílias. pôde subsistir nas cidades, e não foi modificado senão muito mais tarde.

Esse modo de formação das cidades antigas é atestado por costumes que duraram muito tempo. Se observarmos o exército da cidade, nos primeiros tempos, vemo-lo distribuído em tribos, em cúrias, em famílias(1), “de tal sorte — diz um antigo — que o guerreiro tinha por vizinho no combate aquele com quem, em tempos de paz, fazia a libação e oferecia sacrifícios no mesmo altar(2).” — Se observarmos o povo reunido, nos primeiros séculos de Roma, vemo-lo votar por cúrias e por gentes(3). Se observarmos o culto, vemos em Roma seis vestais, duas para cada tribo; em Atenas, o arconte faz a maior parte dos sacrifícios em nome de toda a cidade, mas restam ainda algumas cerimônias religiosas, que devem ser realizadas, em comum pelos chefes das tribos(4).

Destarte a cidade não é um ajuntamento de indivíduos: é uma confederação de vários grupos, constituídos antes dela, e que ela deixa subsistir. Lemos nos oradores áticos que cada ateniense faz parte, ao mesmo tempo, de quatro sociedades distintas: é membro de uma família, de uma fratria, de uma tribo e de uma cidade. Não entra ao mesmo tempo e no mesmo dia em todas as quatro, como o francês que, no momento do nascimento, pertence ao mesmo tempo a uma família, a uma comuna, a um departamento e a uma pátria. A fratria e a tribo não são divisões administrativas. O homem ingressa em épocas diversas nessas quatro sociedades, e de um modo ou de outro passa de uma para outra. A criança, a princípio, é admitida na família, pela cerimônia religiosa celebrada dez dias depois do nascimento. Alguns anos depois, ingressa na fratria por nova cerimônia, que descrevemos acima. Enfim, na idade de dezesseis anos, ou de dezoito, apresenta-se para ser admitido na cidade. Nesse dia, na presença do altar, e diante das carnes fumegantes de uma vitima, faz um juramento, mediante o qual se obriga, entre outras coisas, a respeitar para sempre a religião da cidade(5). A partir desse instante está iniciado no culto público, e se torna cidadão(6). Observemos esse jovem ateniense, subindo de degrau em degrau, de culto em culto, e teremos a imagem das épocas pelas quais a sociedade humana passou. O caminho que esse jovem é obrigado a trilhar é o mesmo que antes dele trilhou a sociedade.

Um exemplo tornará esta verdade mais clara. Restam-nos das antiguidades de Atenas bastantes tradições e lembranças para que possamos ver com alguma nitidez como se formou a cidade ateniense. Na origem, diz Plutarco, a Ática estava dividida por famílias(7). Algumas dessas famílias da época primitiva, como os Eumólpidas, os Cecrópidas, os Gefirenses, os Fitálidas, os Laquiadas, perpetuaram-se até as idades seguintes. A cidade ateniense não existia ainda; mas cada família, rodeada desses ramos mais novos, e de seus clientes, ocupava um cantão, onde vivia em absoluta independência. Cada uma tinha religião própria: os Eumólpidas, fixados em Elêusis, adoravam Deméter; os Cecrópidas, que habitavam o rochedo onde mais tarde surgiu Atenas, tinham como divindades protetoras Poséidon e Atenas. Ao lado, sobre a pequena colina do Areópago, o deus protetor era Ares; em Maratona, era um Hércules; em Prásias, um Apolo; outro Apolo em Flias, os Dioscuros em Cefalônia, e assim por todos os outros cantões(8).

Cada família, além do deus e do altar, tinha também um chefe. Quando Pausânias visitou a Ática, encontrou nos pequenos burgos tradições antigas, que se haviam perpetuado com o culto; ora, essas tradições ensinaram-lhe que cada burgo tivera um rei antes da época em que Cécrops reinava em Atenas(9). Não seria a lembrança de uma época longínqua, onde essas grandes famílias patriarcais, semelhantes aos clãs célticos, tinham cada uma um chefe hereditário, que era ao mesmo tempo juiz e sacerdote? Uma centena de pequenas sociedades viviam, portanto, isoladas no país, sem haver entre elas laço religioso ou político, cada uma com seu território, guerreando-se freqüentemente; enfim, a tal ponto separadas umas das outras, que o casamento entre seus membros nem sempre era permitido(10).

Mas as necessidades ou os sentimentos aproximaram-nas. Insensivelmente, uniram-se em pequenos grupos, de quatro e de seis. Assim vemos nas tradições que os quatro burgos da planície de Maratona se associaram para adorar em conjunto a Apolo Delfiniano; os homens do Pireu, de Falera, e de dois cantões vizinhos, uniram-se por sua vez, e construíram em comum um templo dedicado a Hércules(11). Com os anos, essa centena de pequenos estados reduziu-se a doze confederações. Essa mudança, pela qual a população da Ática passou do estado de família patriarcal a sociedade um pouco mais ampla, foi atribuído pela lenda aos esforços de Cécrops; por isso devemos apenas entender que tal transformação só foi terminada na época em que se colocou o reinado desse personagem, isto é, pelo século décimo sexto de nossa era. Vemos, aliás, que Cécrops não reinou senão sobre uma das doze associações, a que mais tarde foi Atenas; as outras onze eram completamente independentes; cada uma tinha seu deus protetor, seu altar, seu fogo sagrado e seu chefe(12).

Várias gerações se passaram, durante as quais o grupo dos Cecrópidas, insensivelmente, adquiriu mais importância. Desse período ficou a lembrança de uma luta sangrenta, que sustentaram contra os Eumólpidas de Elêusis, e cujo resultado foi a submissão destes últimos, com a única condição de conservar o sacerdócio hereditário de sua divindade(13). Cremos que houve outras lutas e outras conquistas, cuja lembrança se perdeu. O rochedo dos Cecrópidas, onde aos poucos se desenvolveu o culto de Atenas, e que acabou por adotar o nome de sua divindade principal, conquistou a supremacia sobre os outros onze estados. Surgiu então Teseu, herdeiro dos Cecrópidas. Todas as tradições concordam em dizer que ele reuniu os doze grupos em uma cidade. Com efeito, Teseu conseguiu que toda a Ática adotasse o culto de Atenas Polias, de modo que todo o país desde essa época passou a celebrar em comum o sacrifício das Panatenéias. Antes dele, cada pequeno burgo tinha seu fogo sagrado e seu pritaneu: ele fez com que o pritaneu de Atenas fosse o centro religioso de toda a Ática(14). Desde então a unidade ateniense foi fundada; religiosamente, cada cantão conservou seu antigo culto, mas todos adotaram um culto comum; politicamente, cada um conservou seus chefes, seus juízes, seus direitos de assembléia, mas, acima desses governos, tiveram o governo central da cidade(15).

Dessas lembranças e tradições tão precisas, que Atenas conservou religiosamente, parece-nos que surgem duas verdades igualmente manifestas: uma é que a cidade era uma confederação de grupos constituídos antes dela; outra é que a sociedade não se desenvolveu senão paralelamente à religião. Não se saberia dizer se foi o progresso religioso que causou o progresso social; o que é certo é que ambos apareceram ao mesmo tempo, e com notável concórdia.

Devemos considerar atentamente a excessiva dificuldade que havia nas populações primitivas para fundarem sociedades regulares. Não é fácil estabelecer um vínculo social entre criaturas humanas tão diversas, tão livres, tão inconstantes. Para dar-lhes regras comuns, para instituir decretos, e fazer aceitar a obediência, para fazer ceder a paixão à razão, e a razão individual à razão pública, é necessário certamente algo mais forte que a força material, algo mais respeitável que o interesse, mais seguro que uma teoria filosófica, mais imutável que uma convenção; algo que esteja igualmente no fundo de todos os corações, algo que se imponha aos mesmos.

Isso é a crença. Não há nada mais poderoso sobre a alma. Uma crença é a obra de nosso espírito, mas nós não temos liberdade para modificá-la a nosso bel-prazer. É nossa criação, mas nós não o sabemos. É humana, e nós a julgamos como um deus. É o efeito de nosso poder, e é mais forte do que nós. Está em nós, não nos abandona, fala-nos a cada instante. Se nos manda obedecer, obedecemos; se nos traça deveres, submetemos-nos. O homem pode muito bem domar a natureza, mas sujeita-se ao pensamento.

Ora, uma antiga crença mandava ao homem que honrasse os antepassados; o culto dos antepassados reuniu a família ao redor de um altar. Daí a primeira religião, as primeiras orações, a primeira idéia do dever, e a primeira moral; daí também a propriedade estabelecida, a ordem de sucessão fixada. Daí enfim, todo o direito privado, e todas as regras da organização doméstica. Depois essa crença progrediu, acompanhada pela sociedade. À medida que os homens sentem que têm divindades comuns, unem-se em grupos mais amplos. As mesmas regras, encontradas e estabelecidas na família, aplicam-se sucessivamente à fratria, à tribo, à cidade.

Abarquemos com o olhar o caminho percorrido pelos homens. Na origem, a família vive isolada, e o homem não conhece senão deuses domésticos, theòi patrõi, dii gentiles. Acima da família forma-se a fratria, com seu deus, theòs phrátrios, Juno curialis. Em seguida vem a tribo, e o deus da tribo theòs phylios. Chega-se, enfim, à cidade, e imagina-se um deus que abraça toda a cidade, theòs polièus, penates publici. Hierarquia de crenças, hierarquia de associações. A idéia religiosa foi, entre os antigos, o sopro inspirador e organizador da sociedade.

As tradições dos hindus, dos gregos, dos etruscos, contavam que os deuses haviam revelado aos homens as leis sociais. Sob essa forma legendária há uma verdade. As leis sociais foram obra dos deuses; mas esses deuses, tão poderosos e tão benfajezos, não eram nada mais que as crenças dos homens.

Essa foi a forma do nascimento do Estado entre os antigos; seu estudo era necessário para podermos considerar em seguida a natureza e as instituições da cidade. Mas devemos fazer aqui uma reserva. Se as primeiras cidades se formaram pela confederação de pequenas sociedades constituídas anteriormente, isso não quer dizer que todas as cidades que conhecemos se formaram do mesmo modo. Uma vez encontrada a organização municipal, não era mais necessário que cada nova cidade recomeçasse o mesmo caminho longo e difícil. Pode muito bem ser que muitas vezes se seguisse a ordem inversa. Quando um chefe, saindo de uma cidade já constituída, ia fundar outra, não levava de ordinário consigo mais que um pequeno número de cidadãos; a eles se juntavam muitas outras pessoas, provenientes de diversos lugares, e que podiam até pertencer a raças diferentes. Mas esse chefe nunca deixou de constituir o novo Estado à imagem daquele que acabava de deixar. Em conseqüência, dividia o povo em tribos e em fratrias. Cada uma dessas pequenas associações teve um altar, sacrifícios, festas; cada uma imaginou até um antigo herói, que honrou com um culto, e do qual, com o tempo, passou a julgar-se descendente.

Muitas vezes sucedeu também, que os homens certo país viviam sem leis, sem ordem, ou porque a organização social não conseguiu se estabelecer, ou por ter sido corrompida e dissolvida por revoluções demasiado bruscas, como em Cirene e em Thurii. Se um legislador se abalançasse a impor ordem a esses homens, nunca deixava de começar por reparti-los em tribos e em fratrias, como se não houvesse outro tipo de sociedade. Em cada um desses grupos, instituía um herói epônimo, estabelecia sacrifícios, inaugurava tradições. Era sempre por aí que se começava, se se queria fundar uma sociedade regular(16). Assim procedeu o próprio Platão, ao imaginar a cidade modelo.

CAPÍTULO IV

A CIDADE

 

Cidade e urbe não eram palavras sinônimas entre os antigos. A cidade era a associação religiosa e política das famílias e das tribos; a urbe, o lugar de reunião, o domicílio, e, sobretudo, o santuário dessa associação(*).

Não devemos imaginar as cidades antigas de acordo com as que costumamos ver nos dias de hoje. Constroem-se algumas casas, e temos uma aldeia. Insensivelmente o número de casas aumenta, e temos a cidade; e, se for o caso, acabamos por rodeá-la por um fosso e uma muralha. Uma cidade, entre os antigos, não se formava com o tempo, pelo lento crescimento do número dos homens e das construções. Fundava-se uma cidade de um só golpe, inteiramente, em um dia.

Mas era necessário que a cidade fosse constituída antes, o que era a obra mais difícil, e ordinariamente a mais longa. Uma vez que as famílias, as fratrias e as tribos concordavam em se unir, e em adotar o mesmo culto, logo se fundava a cidade, para ser o santuário desse culto comum. Também a fundação de uma cidade sempre constituiu ato religioso.

Por primeiro exemplo, tomaremos Roma, a despeito da reputação de incredulidade que se liga a essa antiga história. Muito se repetiu que Rômulo era chefe de aventureiros, que constituíra um povo chamando para junto de si vagabundos e ladrões, e que todos esses homens, reunidos sem escolha, haviam construído ao acaso algumas cabanas, para abrigar nelas o fruto de suas rapinas. Mas os escritores antigos apresentam-nos o fato de maneira bem diversa; parece-nos que, se queremos conhecer a antiguidade, devemos apoiar-nos sobre os testemunhos que a mesma nos apresenta. Esses escritores, na verdade, falam de um asilo, isto é, de um recinto sagrado, no qual Rômulo admitiu todos os que se apresentaram, no que seguiu o exemplo dado por muitos dos fundadores de cidades(1). Mas esse asilo não era a cidade, e não foi franqueado senão depois de fundada e completamente construída a cidade(2). Era um apêndice acrescentado a Roma; não era Roma. Não fazia parte da cidade de Rômulo, porque estava situado nas encostas do monte Capitolino, enquanto a cidade ocupava o planalto do Palatino(3). É importante distinguir nitidamente o duplo elemento da população romana. No asilo estão os aventureiros sem eira nem beira; sobre o Palatino estão os homens vindos de Alba, isto é, homens já organizados em sociedade, distribuídos em gentes e em cúrias, com seus cultos domésticos e suas leis. O asilo não é nada mais que uma espécie de aldeia ou subúrbio, onde as cabanas são levantadas ao acaso, e sem regras; sobre o Palatino ergue-se uma cidade religiosa e santa.

Sobre a maneira pela qual essa cidade foi fundada, a antiguidade é pródiga em informações; encontramo-las em Dionísio de Halicarnasso, que as busca em autores mais antigos; encontramo-las em Plutarco, nos Fastos de Ovídio, em Tácito, em Catão, o Antigo, que havia consultado os velhos anais, e em outros escritores, que sobretudo nos devem inspirar grande confiança, o sábio Varrão e o sábio Vérrio Flaco, que Festo nos conservou em parte, ambos muito informados acerca das antiguidades romanas, amigos da verdade, nada crédulos, e que conheciam muito bem as regras da crítica histórica. Todos esses escritores nos transmitiram a lembrança da cerimônia religiosa que havia marcado a fundação de Roma, e não temos direito de rejeitar tão grande número de testemunhos.

Não é raro encontrarmos entre os antigos fatos que nos espantam; seria isso motivo para falar em fábulas, sobretudo se esses fatos, que tanto se afastam das idéias modernas, concordam perfeitamente com as dos antigos? Vimos em sua vida privada uma religião que regrava todos os atos; vimos em seguida que essa religião os havia constituído em sociedade; depois disso, por que nos deveremos admirar se a fundação de uma cidade constituiu ato sagrado, e que o próprio Rômulo tenha obedecido a ritos que eram observados em toda parte?

O primeiro cuidado do fundador é escolher o local da nova cidade. Mas essa escolha, coisa grave, e da qual se crê depender o destino do povo, sempre foi deixada à decisão dos deuses. Se Rômulo fosse grego, teria consultado o oráculo de Delfos; se fosse samnita, teria seguido o animal sagrado, o lobo ou o picanço. Latino, muito vizinho dos etruscos, iniciado na ciência augural(4), pede aos deuses que lhe revelem sua vontade pelo vôo dos pássaros. Os deuses apontam-lhe o Palatino.

Chegado o dia da fundação, oferece primeiramente um sacrifício. Seus companheiros enfileiram-se ao seu redor, acendem um fogo de ramos, e cada um deles pula através das chamas(5). A explicação desse rito é que, para o ato que se vai cumprir, é necessário que o povo esteja puro: ora, os antigos julgavam purificar-se de toda mancha física ou moral pulando através da chama sagrada.

Depois que essa cerimônia preliminar preparou o povo para o grande ato da fundação, Rômulo cava um pequeno fosso de forma circular, onde lança um torrão, por ele trazido da cidade de Alba(6). Depois, cada um de seus companheiros, um por um, lança no mesmo lugar um pouco de terra, trazida de seu país de origem. Esse rito é notável, e revela nesses homens um pensamento que é preciso assinalar. Antes de chegar ao Palatino, eles moravam em Alba, ou em alguma outra cidade vizinha. Lá estava seu lar, lá seus pais haviam vivido, e estavam sepultados. Ora, a religião proibia abandonar a terra onde o lar estava fixado e onde repousavam os antepassados divinos. Era preciso, pois, para se livrarem de toda impiedade, que cada um daqueles homens usasse de uma ficção, e que levasse consigo, sob o símbolo de um torrão de terra, o solo sagrado em que seus antepassados estavam sepultados, e ao qual estavam ligados os manes. O homem não podia mudar-se sem levar consigo a terra e seus ancestrais. Era necessário que observasse esse rito para que pudesse dizer, mostrando o novo lugar que adotara: Esta é ainda a terra de meus pais: Terra patruum, patria, aqui é minha pátria, porque aqui estão os manes de minha família.

O fosso onde cada um lançara um pouco de terra chamava-se mundus; ora, essa palavra designava, especialmente na antiga língua religiosa, a região dos manes(7). Desse mesmo lugar, segundo a tradição, os manes dos mortos escapavam três vezes por ano, desejosos de rever a luz por um momento(8). Não vemos ainda, nessa tradição, o verdadeiro pensamento dos homens antigos? Lançando ao fosso um torrão de terra da antiga pátria, acreditavam encerrar nela também as almas dos antepassados. Essas almas, ali reunidas, deviam receber culto perpétuo, e velar sobre seus descendentes. Rômulo, nesse mesmo lugar, levantou um altar, e acendeu o fogo. Este foi o fogo sagrado da nova cidade(9).

Ao redor desse fogo devia erguer-se a cidade, como a casa se eleva ao redor do lar doméstico. Rômulo traça um sulco, que marca os limites. Ainda aqui os mínimos detalhes estão fixados pelo ritual. O fundador deve servir-se de uma relha de cobre; a charrua é puxada por um touro branco e uma vaca da mesma cor. Rômulo, de cabeça coberta, trajando vestes sacerdotais, segura ele mesmo a rabiça da charrua, e a dirige, entoando preces. Seus companheiros o seguem, observando religioso silêncio. À medida que a relha levanta torrões de terra, lançam-nos cuidadosamente para o interior do recinto, a fim de que nenhuma parcela daquela terra sagrada fique do lado do estrangeiro(10).

Esses limites traçados pela religião são invioláveis. Nem o estrangeiro, nem o cidadão têm o direito de transpô-los. Pular por cima desse pequeno sulco é ato de impiedade; a tradição romana diz que o irmão do fundador havia cometido esse sacrilégio, e o havia pago com a vida(11).

Mas, para que se pudesse entrar na cidade, e sair dela, o sulco era interrompido em alguns lugares; para isso Rômulo levantava a relha; esses intervalos chamavam-se portae, as portas da cidade(12).

Sobre o sulco sagrado, ou um pouco atrás, levantam-se depois muralhas, também sagradas(13). Ninguém poderá tocá-las, mesmo para restaurá-las, sem permissão dos pontífices. De ambos os lados dessa muralha, um espaço de alguns pés é reservado à religião; chamam-no pomoerium; não se permite passar por ali a charrua, nem levantar ali construção alguma(14).

Tal foi, de acordo com uma multidão de testemunhos antigos, a cerimônia da fundação de Roma. Aos que perguntarem como a lembrança dessa cerimônia pôde se conservar até os escritores que no-la transmitiram, responderemos que ela era lembrada cada ano, à memória do povo, por uma festa de aniversário, a que chamavam dia natal de Roma(15). Essa festa foi celebrada em toda a antiguidade, de ano em ano, e o povo romano ainda a celebra na mesma data de outrora, no dia 21 de abril: assim é que os homens, através de suas incessantes transformações, ficam fiéis aos velhos costumes!

Não podemos supor razoavelmente que esses ritos tenham sido imaginados pela primeira vez por Rômulo. Pelo contrário, é certo que muitas cidades antes de Roma foram fundadas da mesma maneira. Varrão disse que esses ritos eram comuns ao Lácio e à Etrúria. Catão, o Antigo, que, para escrever seu livro Origines, havia consultado os anais de todos os povos italianos, informa-nos que ritos análogos eram observados por todos os fundadores de cidades. Os etruscos possuíam livros litúrgicos, onde estava consignado o ritual completo dessas cerimônias(16).

Os gregos, como os italianos, acreditavam que o local de uma cidade devia ser escolhido e revelado pela divindade. Assim, quando queriam fundar alguma, consultavam o oráculo de Delfos(17). Heródoto assinala como ato de impiedade ou de loucura o fato de o espartano Dória ter ousado construir uma cidade “sem consultar o oráculo, e sem praticar nenhuma das cerimônias prescritas”, e o piedoso historiador não se surpreende ao ver que uma cidade assim construída, contra as regras, não tenha durado mais de três anos(18). Tucídides, recordando o dia da fundação de Esparta, menciona os cantos piedosos e os sacrifícios daquele dia(19). O mesmo historiador nos diz que os atenienses possuíam ritual particular, e que jamais fundavam uma colônia sem obedecê-lo(20). Pode-se ver em uma comédia de Aristófanes um quadro bastante exato da cerimônia usada em tais casos. Quando o poeta imaginou a alegre fundação da cidade das Aves, pensava certamente nos costumes que eram observados na fundação das cidades dos homens; assim, pôs em cena um sacerdote que acendia o fogo invocando os deuses, um poeta que cantava hinos, e um adivinho que recitava oráculos.

Pausânias percorria a Grécia nos tempos de Adriano. Chegando a Messênia, fez com que os sacerdotes lhe contassem a história da fundação da cidade de Messena, e assim nos transmitiu sua narrativa(21). O acontecimento não era muito antigo; dera-se nos tempos de Epaminondas. Três séculos antes os messênios haviam sido expulsos de seu país, e desde esse tempo viviam dispersos entre os outros gregos, sem pátria, mas guardando com piedoso cuidado seus costumes e sua religião nacional. Os tebanos queriam reconduzi-los ao Peloponeso, para estabelecer um inimigo ao lado de Esparta, mas o mais difícil era fazer com que os messênios se decidissem. Epaminondas, que os conhecia como homens supersticiosos, achou bom espalhar um oráculo, que predizia a esse povo a volta para a antiga pátria. Aparições miraculosas atestaram que os deuses nacionais dos messênios, que os haviam traído à época da conquista, voltavam a ser-lhes favoráveis. Esse povo tímido decidiu-se então a voltar para o Peloponeso, atrás de um exército tebano. Mas tratava-se de saber onde levantariam a cidade, porque nem se podia pensar em reocupar as antigas cidades do país: elas haviam sido manchadas pela conquista. Para escolher o lugar em que se estabeleceriam, não tinham o recurso ordinário de consultar o oráculo de Delfos, porque a Pítia estava do lado de Esparta. Por felicidade, os deuses possuíam outros meios de revelar suas vontades; um sacerdote dos messênios teve um sonho, no qual um dos deuses de sua nação lhe apareceu, e lhe disse que ia estabelecer-se sobre o monte Itoma, e que convidava o povo a segui-lo. Sendo assim indicado o local da nova cidade, restava ainda conhecer os ritos necessários para a fundação, mas os messênios os haviam esquecido; eles não podiam, aliás, adotar os dos tebanos, nem de outro povo qualquer, e não sabiam como construir a cidade. Muito a propósito, outro messênio sonhou que os deuses mandaram que se dirigisse ao monte Itoma, procurasse um seixo, que se encontrava ao pé de um mirto, e cavasse a terra nesse local. Ele obedeceu, e descobriu uma urna, e nessa urna folhas de estanho, sobre as quais se encontrava gravado o ritual completo da cerimônia sagrada. Os sacerdotes imediatamente fizeram cópias, e o inscreveram nos livros sagrados. E ninguém deixou de acreditar que a urna fora ali depositada por um antigo rei dos messênios, antes da conquista do país.

Uma vez de posse do ritual, iniciou-se a fundação. Os sacerdotes, em primeiro lugar, ofereceram um sacrifício; invocaram os antigos deuses de Messênia, os Dioscuros, o Júpiter de Itoma, os antigos heróis, os antepassados conhecidos e venerados. Todos esses protetores do país, aparentemente o haviam abandonado, de acordo com as crenças dos antigos, no dia em que o inimigo tomou posse de suas terras; conjuraram-nos então a voltar. Pronunciaram-se fórmulas, que deviam ter por efeito determiná-los a habitar a nova cidade em comum com os cidadãos. Isso é que era importante: fixar os deuses em sua companhia era o que mais lhes importava, e podemos acreditar que a cerimônia religiosa não tivesse outra finalidade. Assim como os companheiros de Rômulo cavaram um fosso, e acreditaram depositar nele seus antepassados, assim os contemporâneos de Epaminondas chamavam a si seus heróis, seus antepassados divinos, os deuses do país. Acreditavam assim, por meio de fórmulas e de ritos, ligá-los ao solo que iam ocupar, e encerrá-los dentro dos limites que iam traçar. Assim, diziam-lhes: “Vinde conosco, ó seres divinos! Habitai nesta cidade em nossa companhia.” — O primeiro dia transcorreu com esses sacrifícios e essas preces. No dia seguinte traçaram-se os limites, enquanto o povo cantava hinos religiosos.

Surpreendemo-nos, à primeira vista, quando vemos nos autores antigos que não havia cidade, por mais antiga que fosse, que não pretendesse conhecer o nome do fundador e a data da fundação. É que uma cidade não podia perder a lembrança da cerimônia sagrada que havia marcado seu nascimento, porque cada ano celebrava esse aniversário por um sacrifício. Atenas, como Roma, também festejava seu dia natalício(22).

Muitas vezes acontecia que colonos ou conquistadores se estabeleciam em uma cidade já construída. Não tinham necessidade de construir casas, porque nada lhes impedia a que ocupassem as dos vencidos. Mas eram obrigados a observar a cerimônia da fundação, isto é, tinham de assentar o próprio lar, e fixar em sua nova morada os deuses nacionais. É por isso que lemos em Tucídides e em Heródoto que os dórios fundaram Esparta, e os jônios Mileto, embora esses dois povos tenham encontrado as cidades já construídas, e muito antigas.

Esses costumes nos dizem claramente o que era uma cidade no pensamento dos antigos. Fechada dentro de limites sagrados, estendendo-se ao redor do altar, a cidade era o domicílio religioso, que recebia deuses e homens. Tito Lívio dizia de Roma: “Não há nesta cidade lugar que não esteja impregnado de religião, e que não esteja ocupado por alguma divindade... Os deuses têm nela sua morada.” — O que Tito Lívio dizia de Roma, qualquer um podia dizer da própria cidade, porque, se havia sido fundada de acordo com os ritos, recebera em seu recinto os deuses protetores, que estavam como que implantados em seu solo, e não deviam abandoná-lo jamais. Toda cidade era um santuário; toda cidade podia ser chamada santa(23).

Como os deuses estavam para sempre ligados à cidade, o povo não devia abandonar nunca o local onde seus deuses estavam fixados. A esse respeito havia um acordo mútuo, uma espécie de contrato entre deuses e homens. Os tribunos da plebe disseram certo dia que Roma, devastada pelos gauleses, não era mais que um montão de ruínas, e que a cinco léguas dali havia uma cidade completamente construída e bela, bem situada, e sem habitantes, desde que os romanos a haviam conquistado; era necessário, pois, abandonar Roma destruída, e mudar para Veios. Mas o piedoso Camilo respondeu-lhes: “Nossa cidade foi fundada religiosamente; os próprios deuses designaram seu lugar, e nela se estabeleceram em companhia de nossos pais. Embora em ruínas, ela é ainda a morada de nossos deuses nacionais.” — Os romanos ficaram em Roma.

Algo de sagrado e de divino ligava-se naturalmente àquelas cidades que os deuses haviam levantado(24), e que continuavam a impregnar, com sua presença. Sabemos que as tradições romanas prometiam a Roma a eternidade. Cada cidade tinha tradições semelhantes. Todas as cidades eram construídas para serem eternas.

CAPÍTULO V

O CULTO DO FUNDADOR. A LENDA DE ENÉIAS

 

O fundador era o homem que realizava o ato religioso, sem o qual uma cidade não podia existir. Era o fundador que assentava o lar, onde devia brilhar eternamente o fogo sagrado; era ele que, com suas preces e ritos, chamava os deuses, fixando-os para sempre na nova cidade.

Podemos imaginar o respeito que dedicavam a esse homem sagrado. Durante sua vida, os homens viam nele o autor do culto e o pai da cidade; morto, tornava-se um antepassado comum para todas as gerações que se sucediam; o fundador era para a cidade o que o primeiro antepassado era para a família, um lar familiar. Sua lembrança perpetuava-se como o fogo do lar que havia acendido. Dedicavam-lhe um culto, consideravam-no deus, e a cidade o adorava como sua providência. Sacrifícios e festas renovavam-se cada ano sobre seu túmulo(1).

Todos sabem que Rômulo era adorado, que tinha templo e sacerdotes. Os senadores puderam matá-lo mas não puderam privá-lo de um culto ao qual tinha direito como fundador(2). Cada cidade adorava do mesmo modo aquele que a havia fundado: Cécrops e Teseu, considerados como sucessivos fundadores de Atenas, tinham seus templos na cidade. Abdera oferecia sacrifícios a seu fundador Timésios, Tera a Teras, Delos a Ânios, Cirene a Batos, Mileto a Neléia, Anfípolis a Hagnon(3). Nos tempos de Pisístrato, Milcíades fundou uma colônia no Quersoneso da Trácia; essa colônia instituiu-lhe um culto depois de sua morte, “de acordo com o costume”. Hierão de Siracusa, fundador da cidade de Etna, recebeu ali depois “o culto dos fundadores(4).”

Não havia nada mais caro ao coração de uma cidade que a lembrança de sua fundação. Quando Pausânias visitou a Grécia, no século segundo de nossa era, cada cidade sabia dizer-lhe o nome do fundador, com sua genealogia, e os principais fatos de sua existência. Esse nome e esses fatos não podiam ser esquecidos, porque faziam parte da religião, e eram lembrados cada ano nas cerimônias sagradas.

Conserva-se a memória de um grande número de poemas gregos que tinham por tema a fundação de cidades. Filócoro, cantou a fundação de Salamina, Íon a de Quios, Criton a de Siracusa, Zopiro a de Mileto; Apolônio, Hermógenes, Helânico e Diocles, haviam composto sobre o mesmo tema poemas e histórias. Talvez não houvesse uma cidade que não possuísse um poema, ou, pelo menos, um hino sobre o ato sagrado que lhe dera origem.

Entre todos os antigos poemas que tinham por tema a fundação de uma cidade, há um que ainda existe, porque, se o tema tornava-o caro a uma cidade, suas belezas tornaram-no precioso para todos os povos e para todos os séculos. Sabemos que Enéias fundou Lavínio, de onde se originaram albanos e romanos, e que, por conseqüência, era considerado o fundador de Roma. Sobre ele estabeleceu-se um conjunto de tradições e lembranças, que encontramos já consignadas nos versos do velho Névio e nas histórias de Catão, o Antigo. Virgílio aproveitou-se desse tema, e escreveu o poema nacional da cidade de Roma.

O tema da Eneida é a chegada de Enéias, ou melhor, o transporte dos deuses de Tróia para a Itália. O poeta canta o homem que atravessou os mares para fundar uma cidade, e levar seus deuses para o Lácio:

dum conderet urbem
Inferretque deos Latio.

Não devemos julgar a Eneida de acordo com nossas idéias modernas. Há quem se queixe às vezes por não encontrar em Enéias audácia, arrojo, paixão, cansado do epíteto de piedoso, que se repete continuamente. Admiramo-nos por ver esse guerreiro consultar seus penates com cuidado tão escrupuloso, invocar por qualquer motivo uma divindade, levantar os braços para o céu quando se tratava de combater, deixar-se levar pelos oráculos através dos mares, e derramar lágrimas à vista do perigo. Criticam-lhe até sua frieza para com Dido, e chegam a acusá-lo de insensível:

Nullis ille movetur
Fletibus, aut voces ullas tractabilis audit.

Não se trata aqui de um guerreiro, ou de um herói de romance. O poeta quer mostrar-nos um sacerdote. Enéias é o chefe de um culto, o homem sagrado, o fundador divino, cuja missão é salvar os penates da cidade:

Sum pius Æneas raptos qui ex hoste Penates
Classe veho mecum.

Sua qualidade dominante deve ser a piedade, e o epíteto que o poeta lhe aplica mais freqüentemente é também o que melhor lhe cabe. Sua virtude deve ser uma fria e altiva impersonalidade, que faça dele, não um homem, mas um instrumento dos deuses. Por que procurar nele paixões? Não tem direito a elas; deve recalcá-las no fundo do coração:

Multa gemens multoque animum labefactus amore,
Jussa tamen divum insequitur.

Em Homero Enéias já era um personagem sagrado, um grande sacerdote, que o povo “venerava como um deus”, e que Júpiter preferia a Heitor. Em Virgílio, é o guarda e salvador dos deuses de Tróia. Durante a noite que consumou a ruína da cidade, Heitor apareceu-lhe em sonhos. — “Tróia — diz-lhe este — confia-te seus deuses; procura uma nova cidade.” — E ao mesmo tempo entregou-lhe os objetos sagrados, estatuetas protetoras, e o fogo do lar que não devia extinguir-se. Esse sonho não é uma simples figura, inventada pela fantasia do poeta. Pelo contrário, é o fundamento sobre o qual repousa todo o poema, porque é por ele que Enéias se tornou depositário dos deuses da cidade, revelando-se-lhe então sua missão sagrada.

A cidade de Tróia desapareceu, mas não a cidade troiana; graças a Enéias, o fogo sagrado não se extinguiu, e os deuses têm ainda um culto. A cidade e os deuses fogem com Enéias, e percorrem os mares, à procura de um lugar onde possam estabelecer-se:

Considere Teucros
Errantesque deos agitataque numina Trojae...

Enéias procura uma morada fixa, por pequena que seja, para os deuses de seus pais:

Dis sedem exiguam patriis.

Mas a escolha dessa morada, à qual o destino da cidade estará ligado para sempre, não depende dos homens, mas dos deuses. Enéias consulta os adivinhos e interroga os oráculos. Não marca para si mesmo a rota e a meta: deixa-se conduzir pela divindade:

Italiam non sponte sequor.

Gostaria de parar na Trácia, em Creta, na Sicília, em Cartago, com Dido: fata obstant. Entre ele e seu desejo de repouso, entre ele e seu amor, sempre se interpõe a vontade dos deuses, a palavra revelada, fata.

Não nos devemos enganar: o verdadeiro herói do poema são os deuses de Tróia, aqueles mesmos deuses que um dia serão os deuses de Roma. O tema da Eneida é a luta dos deuses romanos contra a divindade hostil. Obstáculos de toda natureza procuram detê-los:

Tantae molis erat romanam condere gentem!

Pouco faltou para que a tempestade não os engolisse, ou para que o amor de uma mulher não os cativasse. Mas eles triunfam de tudo, e chegam à meta desejada:

Fata viam inveniunt.

Eis o que devia despertar singularmente o interesse dos romanos. Nesse poema viam seu fundador, sua cidade, suas instituições, suas crenças, seu império, porque sem esses deuses a cidade de Roma não existiria(5).

CAPÍTULO VI

OS DEUSES DA CIDADE

 

Não nos devemos esquecer de que, nos tempos antigos, o que constituía o vínculo de toda sociedade era o culto. Assim como o altar doméstico mantinha unidos a seu redor os membros de uma família, assim o culto de uma cidade era a reunião daqueles que tinham os mesmos deuses protetores, e que celebravam os atos religiosos no mesmo altar.

O altar da cidade estava fechado dentro de um edifício, que os gregos chamavam pritaneu(1), e os romanos templo de Vesta(2).

Não havia nada mais sagrado em uma cidade que esse altar, sobre o qual o fogo sagrado estava sempre aceso. É verdade que essa grande veneração logo se enfraqueceu na Grécia, porque a imaginação grega deixou-se levar pela beleza dos templos, a riqueza das lendas, a beleza das estátuas. Mas em Roma não se deu o mesmo. Os romanos nunca perderam a convicção de que o destino da cidade estava ligado ao lar, que representava seus deuses(3). O respeito que se dedicava às vestais prova a importância de seu sacerdócio(4). Se um cônsul encontrasse uma no caminho, mandava abaixar diante dela as armas. Em compensação, se uma vestal deixasse apagar o fogo, ou maculasse o culto, faltando a seus deveres de castidade, a cidade, que então se julgava ameaçada de perder seus deuses, vingava-se da mesma enterrando-a viva(5).

Certo dia o templo de Vesta esteve em risco de ser queimado por um incêndio na redondeza, e Roma ficou alarmada, porque sentia que todo seu futuro estava em perigo. Passado este, o senado ordenou ao cônsul que procurasse descobrir os autores do incêndio, e o cônsul logo acusou a alguns habitantes de Cápua, que se encontravam em Roma. Não porque houvesse alguma prova contra eles, mas porque raciocinou desta maneira: “Um incêndio ameaçou nosso lar; esse incêndio, que devia destruir toda nossa grandeza, e cortar nossos destinos, não poderia ser atiçado senão pela mão de nossos mais cruéis inimigos. Ora, não temos inimigos mais encarniçados que os habitantes de Cápua, cidade atualmente aliada de Aníbal, e que aspira ocupar nosso lugar, como capital da Itália. Esses homens, portanto, é que quiseram destruir o templo de Vesta, nosso eterno lar, penhor e garantia de nossa grandeza futura(6).” — Assim um cônsul, dominado por idéias religiosas, julgava que os inimigos de Roma não haviam encontrado meio mais seguro de vencê-la do que destruir-lhe o lar. Vemos aí as antigas crenças: o lar público era o santuário da cidade, que a fizera nascer e que a conservava.

Assim como o culto do lar doméstico era secreto, e somente a família podia tomar parte no mesmo, assim o culto do lar público era interditado aos estrangeiros. Ninguém, a não ser os cidadãos, podia assistir aos sacrifícios. O simples olhar de um estranho manchava o ato religioso(7).

Cada cidade tinha deuses próprios, que não pertenciam senão a ela. Esses deuses eram ordinariamente da mesma natureza que os da religião primitiva das famílias. Como eles, chamavam-nos de lares, penates, gênios, demônios, heróis(8); sob todos esses nomes havia almas humanas divinizadas pela morte. Já vimos que, na raça indo-européia, o homem tivera a princípio o culto da força invisível e imortal, que sentia em si mesmo. Aqueles gênios ou heróis eram quase sempre antepassados do povo(9). Os corpos haviam sido enterrados, quer na própria cidade, quer em seus arredores, e como, de acordo com as crenças que relatamos acima, a alma não abandonava o corpo, esses mortos divinos ficavam ligados ao solo onde jaziam seus ossos. Do fundo de seus túmulos, velavam sobre a cidade, protegiam o país, dos quais eram de algum modo chefes e senhores, Essa expressão de chefes do país, aplicada aos mortos, encontra-se em um oráculo dirigido pela Pítia a Sólon: — “Rende culto aos chefes do país, os mortos que habitam debaixo da terra(10).” — Essas opiniões provinham do grande poder que as antigas gerações haviam atribuído à alma humana depois da morte. Todo homem que houvesse prestado grandes serviços à cidade, desde o que a fundara, até o que lhe alcançara uma vitória ou aperfeiçoara suas leis, tornava-se um deus para essa cidade(11). Nem era necessário ter sido grande homem ou benfeitor; bastava haver impressionado vivamente a imaginação dos contemporâneos, e ter-se tornado objeto de uma tradição popular para se tornar herói, isto é, um morto poderoso, cuja proteção era desejada e cuja cólera era temida. Os tebanos continuaram durante dez séculos a oferecer sacrifícios a Etéocles e a Polinice(12). Os habitantes de Acanto rendiam culto a um persa, morto entre eles durante a expedição de Xerxes(13). Hipólito era venerado como deus em Trezena(14). Pirro, filho de Aquiles, era deus em Delfos, unicamente porque ali morrera, e ali fora enterrado(15). Crotona rendia culto a um herói, somente porque, quando vivo, fora o homem mais belo da cidade(16). Atenas adorava como um de seus protetores a Euristeu, que, no entanto, era argiano; Eurípides explica-nos o nascimento desse culto, quando faz aparecer em cena Euristeu prestes a morrer, e o faz dizer aos atenienses: “Enterrem-me na Ática: eu vos serei propício, e do seio da terra serei para vosso país um hóspede protetor(17).” — Toda a tragédia de Édipo em Colônia repousa nessas crenças: Creon e Teseu, isto é, Tebas e Atenas, disputam o corpo de um homem que vai morrer e tornar-se deus; Édipo, de acordo com a fábula, decide-se por Atenas, e marca o lugar onde quer ser enterrado: “Morto, não serei — diz ele — um habitante inútil para esta região(18); eu vos defenderei contra vossos inimigos; serei para vós escudo mais forte que o de milhões de combatentes(19); meu corpo, adormecido sob a terra, saciar-se-á com o sangue dos guerreiros tebanos(20).”

Os mortos, fossem quais fossem, eram os guardas do país, sob a condição de lhes renderem culto. — “Os megarianos perguntaram um dia ao oráculo de Delfos o modo pelo qual sua cidade poderia ser feliz; o deus respondeu que ela o seria se tivessem o cuidado de deliberar sempre de acordo com o maior número; eles compreenderam que por essas palavras o deus designava os mortos, que são, com efeito, mais numerosos que os vivos; em conseqüência, construíram a sala de conselho no mesmo lugar onde se levantavam as sepulturas dos heróis(21).” — Era grande felicidade para uma cidade possuir mortos de algum modo notáveis. Mantinéia falava com orgulho dos ossos de Arcas; Tebas fazia o mesmo a respeito de Gerião; o mesmo acontecia com Messênia relativamente aos ossos de Arístômenes(22). Para conseguirem essas preciosas relíquias às vezes usavam de astúcia. Heródoto conta as artimanhas em as quais os espartanos roubaram os ossos de Orestes(23). É verdade que esses ossos, aos quais estava unida a alma do herói, deram imediata vitória aos espartanos. Desde que Atenas adquiriu poder, seu primeiro ato foi apoderar-se dos ossos de Teseu, que haviam sido enterrados na ilha de Siro, e levantar-lhe um templo na cidade, para aumentar o número dos deuses protetores.

Além desses heróis e desses gênios, os homens possuíam deuses de outra espécie, como Júpiter, Juno, Minerva, para os quais o espetáculo da natureza havia atraído seus pensamentos. Mas vimos que essas criações da inteligência humana tiveram por muito tempo o caráter de divindades domésticas ou locais. A princípio esses deuses não foram imaginados como guardiões de todo o gênero humano; acreditava-se que cada um deles pertencia propriamente a uma família ou a uma cidade.

Destarte, era costume que cada cidade, além dos heróis, tivesse ainda um Júpiter, uma Minerva, ou alguma outra divindade, que associava a seus primeiros penates e ao primitivo lar. Na Grécia e na Itália havia uma multidão de divindades políadas. Cada cidade tinha alguns deuses, que a habitavam(24).

Os nomes de muitas dessas divindades estão esquecidos; por acaso conservou-se a lembrança do deus Satranas, que pertencia à cidade de Elis; da deusa Dindimenes, que pertencia a Tebas; de Soteria, de Ægium; de Britomartis, de Creta; de Hibléia, de Hibla. Os nomes de Zeus, Atenas, Hera, Júpiter, Minerva e Netuno, nos são mais conhecidos, e sabemos que às vezes eram aplicados às divindades políadas. Mas não vamos concluir pela identidade dos nomes a identidade dos deuses; havia uma Atenas em Atenas e uma em Esparta: eram duas deusas diferentes(25). Grande número de cidades tinham Júpiter como divindade políada; eram tantos os Júpiteres quantas as cidades. Na lenda da guerra de Tróia vemos uma Palas que combate pelos gregos, e entre os troianos há outra Palas, que recebe culto, e que protege seus adoradores(26). Dir-se-á que a mesma divindade figurava em ambos os exércitos? Não, certamente, porque os antigos não atribuíam aos deuses o dom da ubiqüidade(27). As cidades de Argos e de Samos tinham cada qual uma Hera políada; não se tratava da mesma deusa, porque era representada nas duas cidades com atributos diferentes. Roma tinha uma Juno; a cinco léguas de lá, na cidade de Veios, havia outra Juno; e tanto uma não era a outra, que vemos o ditador Camilo, no assédio de Veios, dirigir-se à Juno do inimigo, a fim de conjurá-la a abandonar a cidade etrusca, e passar para seu lado. Senhor da cidade, ele toma a estátua, muito persuadido de que arrebata uma deusa, e a transporta devotamente para Roma. Roma teve desde então duas Junos protetoras. A mesma história, alguns anos depois, deu-se com um Júpiter, que outro ditador levou de Prenesta, quando Roma já possuía três ou quatro deles(28).

A cidade que possuía divindade própria não queria que esta protegesse os estrangeiros, e não permitia que a mesma fosse adorada por eles. O templo, quase sempre não era acessível senão aos cidadãos. Somente os argivos tinham direito de entrar no templo da deusa Hera, de Argos. Para entrar no de Atenas, era necessário ser ateniense(29). Os romanos, que adoravam a duas Junos, não podiam entrar no templo de uma terceira Juno, que se erguia na pequena cidade de Lanúvio(30).

Devemos reconhecer que os antigos, com exceção de algumas raras inteligências de elite, jamais representaram a Deus como ser único, exercendo sua ação sobre o universo. Cada um de seus inumeráveis deuses possuía um pequeno domínio: a família, a tribo, a cidade; esse era o mundo que bastava à providência de cada um. Quanto ao deus do gênero humano, alguns filósofos conseguiram adivinhá-lo, os mistérios de Elêusis puderam fazê-lo entrever aos mais inteligentes de seus iniciados, mas o povo jamais acreditou. Durante muito tempo o homem não compreendeu o ser divino senão como uma força que o protegia pessoalmente, e cada homem, ou cada grupo de homens, quis ter deuses próprios. Ainda hoje, entre os descendentes dos gregos, vêem-se rústicos camponeses rezando fervorosamente a seus santos, mas não se sabe se eles têm idéia de Deus; cada um deles quer ter entre os santos um protetor particular, uma providência especial. Em Nápoles, cada bairro tem sua Madona; o lazzarone ajoelha-se diante da Madona de sua rua e insulta a da rua vizinha; não é raro encontrar-se dois facchini discutindo ou brigando a facadas pelos méritos de suas respectivas madonas. Atualmente, isso constitui exceção, que encontramos apenas entre alguns povos, e em determinadas classes. Mas essa era a regra geral entre os antigos.

Cada cidade tinha seu corpo de sacerdotes, que não dependia de nenhuma autoridade estrangeira. Entre os sacerdotes de duas cidades não havia nenhum vínculo, nenhuma comunicação, nenhuma troca de ensinamentos ou de ritos. Se se passava de uma cidade para outra, encontravam-se outros deuses, outros dogmas, outras cerimônias. Os antigos tinham livros litúrgicos, mas os de uma cidade não se assemelhavam aos de outra. Cada cidade tinha seu livro de preces e de práticas, que eram mantidos no maior segredo, julgando comprometer a religião, e seu próprio destino, se os deixassem nas mãos de estrangeiros. Assim, a religião era absolutamente civil, tomando essa palavra em seu sentido antigo, isto é, no de especial para cada cidade(31).

Em geral o homem não conhecia senão os deuses da própria cidade, e não honrava ou respeitava senão a eles. Cada um podia repetir o que, em uma tragédia de Ésquilo, um estranho diz aos argivos: “Não temo os deuses de vosso país, e nada devo a eles(32).”

Cada cidade esperava a salvação desses deuses. Invocavam-nos nos perigos, dizendo-lhes: “Deuses desta cidade, não deixeis que ela seja destruída, juntamente com nossas casas e lares... Ó tu que habitas há tanto tempo em nossa terra, serias capaz de traí-la? Ó vós todos, guardas de nossas torres, não as entregueis ao inimigo(33).” — Destarte, era para assegurar sua proteção que os homens rendiam-lhes culto. Eram deuses ávidos de ofertas: prodigavam-lhas, a fim de que cuidassem da salvação da cidade Não nos esqueçamos de que a idéia de um culto puramente moral, de uma adoração espiritual, não é muito antiga na humanidade. Nas idades antigas o culto consistia em nutrir os deuses, em dar-lhes tudo o que lhes lisonjeasse os sentidos: carnes, bolos, vinhos, perfumes, roupas, jóias, danças e música. Em troca, exigiam deles benefícios e serviços. Assim, na Ilíada, Crises diz a seu deus: “Durante muito tempo queimei para ti touros gordos; hoje, ouve meus votos, e lança tuas flechas contra meus inimigos.” — Algures, os troianos, invocando sua deusa, oferecem-lhe uma bela veste, e prometem-lhe doze bezerras, “se ela salvar Ílion(34).” Há sempre um contrato entre deuses e homens; a piedade destes não é gratuita, e aqueles não dão nada por nada. Em Ésquilo, os tebanos se dirigem a suas divindades políadas, e lhes dizem: “Sede nossa defesa; nossos interesses são comuns: se a cidade prospera, ela honra os deuses. Mostrai que amais nossa cidade; pensai no culto que esse povo vos rende, e lembrai-vos dos pomposos sacrifícios que vos são oferecidos(35).” — Esse pensamento é expresso cem vezes pelos antigos; Teógnis diz que Apolo salvou Mégara do ataque dos persas, “a fim de que a cidade lhe oferecesse cada ano brilhantes hecatombes(36).”

Por isso as cidades não permitiam que os estranhos apresentassem ofertas às divindades políadas, ou entrassem em seus templos(37). Para que os deuses não velassem senão sobre elas, era necessário que não recebessem culto senão dela. Os deuses não sendo honrados senão naquela cidade, se desejavam a continuação dos sacrifícios e das hecatombes, que lhes eram caros, eram obrigados a defender a cidade, a torná-la eterna, rica e poderosa.

Ordinariamente, com efeito, os deuses esforçavam-se muito por suas cidades; vede em Virgílio, como Juno “se esforça e trabalha” para que Cartago alcance um dia o império do mundo. Cada um desses deuses, como a Juno de Virgílio, interessava-se apenas pela grandeza de sua cidade. Os deuses tinham os mesmos interesses que os homens, seus concidadãos. Em tempos de guerra, marchavam para as batalhas entre eles. Vemos em Eurípides um personagem que diz à aproximação da batalha: “Os deuses que combatem conosco não são menos fortes que os que estão do lado de nossos inimigos(38).” — Os eginetos jamais entraram em combate sem levar consigo as estátuas de seus heróis nacionais, os eácidas. Os espartanos levavam a todas as expedições os tindáridas(39). Na batalha, deuses e cidadãos auxiliavam-se mutuamente, e, quando venciam, era porque todos haviam cumprido com seu dever. Se, pelo contrário, eram vencidos, os deuses eram os culpados pela derrota; repreendiam-nos, por terem desempenhado mal o papel de defensores da cidade; chegavam às vezes até a destruir-lhes os altares, e a arremessar pedras contra seus templos(40).

Se uma cidade era vencida, acreditava-se que seus deuses estavam vencidos com ela(41). Se era conquistada, seus deuses também ficavam cativos.

É verdade que sobre esse último ponto as opiniões eram incertas, e variavam. Muitos estavam persuadidos de que uma cidade jamais podia ser conquistada enquanto lá residissem os deuses; se sucumbia, é porque antes havia sido abandonada por eles. Quando Enéias vê os gregos senhores de Tróia, grita que os deuses da cidade haviam partido, desertando de seus templos e altares(42). Em Ésquilo, o coro dos tebanos exprime a mesma crença à aproximação do inimigo, e conjura os deuses a não abandonar a cidade(43).

Em virtude dessa opinião, para tomar uma cidade era indispensável fazer com que saíssem antes os deuses. Os romanos usavam para isso de certa fórmula, que tinham em seus rituais, e que Macróbio nos conservou: “Ó poderoso, que tens sob tua proteção a cidade, eu te adoro e te peço a graça de abandonar esta cidade e este povo, de deixar estes templos, estes lugares sagrados, e de afastar-se deles, vindo à minha casa, em Roma, entre os meus. Que nossa cidade, nossos templos, nossos lugares sagrados te sejam mais agradáveis e mais caros; toma-nos sob tua proteção. Se assim o fizeres, erguerei um templo em tua honra(44).” — Ora, os antigos estavam convencidos de que havia fórmulas de tal modo eficazes e poderosas que, se as pronunciassem exatamente, e sem mudar uma só palavra, a divindade não podia resistir ao pedido dos homens. O deus, assim chamado, passava para o lado do inimigo, e a cidade era conquistada(45).

Encontramos na Grécia idênticas opiniões e idéias análogas. Ainda nos tempos de Tucídides, quando se sitiava uma cidade, não se deixava de dirigir uma invocação a seus deuses, para que permitissem que ela fosse capturada(46). Muitas vezes, em vez de usar de uma fórmula para conquistar a divindade, os gregos preferiam raptar habilmente sua estátua. Todos conhecem a lenda de Ulisses roubando a Palas dos troianos. Em outra época, os eginetas, querendo mover guerra a Epidauro, começaram por roubar duas estátuas protetoras da cidade, transportando-as para seu país(47).

Heródoto conta que os atenienses queriam mover guerra contra os eginetas; mas a empresa era arriscada, porque Egina tinha um herói protetor de grande poder e de singular fidelidade: era Éaco. Os atenienses, depois de refletir maduramente, adiaram por trinta anos a execução de seu intento, ao mesmo tempo em que levantavam em seu país uma capela ao deus Éaco, e lhe rendiam culto. Estavam persuadidos de que, se esse culto fosse prestado sem interrupção durante trinta anos, o deus não pertenceria mais aos eginetas, mas aos atenienses. Parecia-lhes, com efeito, que um deus não podia aceitar por muito tempo gordas vítimas, sem se tornar obrigado para com aqueles que lhas ofereciam. Éaco, portanto, seria enfim forçado a abandonar os interesses dos eginetas, e a dar a vitória aos atenienses(48).

Em Plutarco encontramos outra história. Sólon queria que Atenas se tornasse senhora da pequena ilha de Salamina, que pertencia então aos mégaros. Consultou o oráculo. Este lhe respondeu: “Se queres conquistar a ilha, é preciso que antes conquiste o favor dos heróis que a protegem e que a habitam.” — Sólon obedeceu; em nome de Atenas ofereceu sacrifícios aos dois principais heróis salaminos. Os heróis não resistiram aos dons que lhes faziam, passaram para o lado de Atenas, e a ilha, privada de seus protetores, foi conquistada(49).

Em tempos de guerra, se os sitiantes procuravam apoderar-se das divindades da cidade, os assediados, por sua vez, procuravam conservá-las o melhor que podiam. Às vezes amarravam o deus com correntes, para não deixar que desertassem. Outras vezes, escondiam-no de todos os olhares, para que o inimigo não o pudesse encontrar. Ou ainda, opunham à fórmula, pela qual o inimigo tentava subornar o deus, uma outra fórmula, que tinha a virtude de retê-lo. Os romanos haviam imaginado um meio que lhes parecia mais seguro: mantinham em segredo o nome do principal e mais poderoso de seus deuses protetores; pensavam assim que o inimigo jamais poderia chamá-lo pelo nome, que ele jamais passaria para seu lado, e que a cidade jamais seria conquistada(50).

Por aí se vê a idéia singular que os antigos faziam de seus deuses. Por muito tempo não conseguiram conceber a divindade como poder supremo. Cada família tinha sua religião doméstica, cada cidade sua religião nacional. Uma cidade era como uma pequena igreja completa, com seus deuses, seus dogmas, seu culto. Essas crenças nos parecem assaz rústicas, mas foram as crenças do povo mais espiritual daqueles tempos, e exerceram sobre esse povo, e sobre o povo romano, uma ação tão forte, que nelas teve origem a maior parte de suas leis, de suas instituições e de sua história.

CAPÍTULO VII

A RELIGIÃO DA CIDADE

 

1.° Os banquetes públicos

Vimos acima que a principal cerimônia do culto doméstico era um banquete, chamado sacrifício. Comer um alimento preparado sobre o altar foi, segundo parece, a primeira forma dada pelo homem ao ato de religião. A necessidade de se comunicar com a divindade era satisfeita por esse banquete, para o qual a própria divindade era convidada, recebendo a parte que lhe cabia.

A principal cerimônia do culto da cidade consistia também em um banquete semelhante; devia ser realizado em comum, por todos os cidadãos, em honra das divindades protetoras. O costume desses banquetes públicos era universal na Grécia; acreditava-se que a salvação da cidade dependia de sua realização(1).

A Odisséia nos dá a descrição de um desses banquetes sagrados: nove longas mesas são servidas para o povo de Pilos; em cada uma delas sentam-se quinhentos cidadãos, e cada grupo imola nove touros em honra dos deuses. Esse banquete, chamado o banquete dos deuses, começa e termina por libações e preces(2). O antigo costume dos banquetes em comum é assinalado também pelas mais antigas tradições atenienses; conta-se que Orestes, assassino da própria mãe, chegara a Atenas no mesmo instante em que a cidade, reunida ao redor do rei, ia realizar o ato sagrado(3). Encontram-se ainda esses banquetes públicos nos tempos de Xenofonte; em determinados dias do ano, a cidade imola numerosas vítimas, e o povo partilha de suas carnes(4). Idênticos costumes existiam em toda parte(5).

Além desses imensos banquetes, onde todos os cidadãos se reuniam, e que não podiam ser realizados senão nas festas solenes, a religião prescrevia que cada dia houvesse uma refeição sagrada. Para isso, alguns homens escolhidos pela cidade deviam comer juntos, em seu nome, no recinto do pritaneu, na presença do lar e dos deuses protetores. Os gregos estavam convencidos de que, se esse banquete deixasse de ser celebrado por um único dia, o Estado ficava ameaçado de perder o favor dos deuses(6).

Em Atenas, a sorte designava os homens que tomar parte no banquete comum, e a lei punia severamente os que se recusavam a cumprir com esse dever(7). Os cidadãos que se sentavam à mesa sagrada ficavam revestidos momentaneamente de caráter sacerdotal; chamavam-nos parasitas; essa palavra, que depois se tornou pejorativa, começou a existir como título sagrado(8). Nos tempos de Demóstenes, os parasitas haviam desaparecido, mas os prítanes ainda eram obrigados a comer juntos no pritaneu. Em todas as cidades havia salas destinadas às refeições em comum(9).

Observando-se como as coisas se passavam nessa refeição, se reconhece perfeitamente tratar-se de cerimônia religiosa. Cada conviva tinha uma coroa na cabeça; com efeito, era costume antigo coroar-se de folhas ou de flores cada vez que se realizava algum ato solene de religião. “Quanto mais ornado de flores se estiver — diziam — mais se está seguro de agradar aos deuses; mas, se sacrificas sem estar coroado, eles se afastam de ti(10).” — “Uma coroa — dizia-se ainda — é a mensageira de feliz augúrio que a prece envia à sua frente até os deuses(11).” — Os convivas, pela mesma razão, estavam vestidos de roupas brancas: o branco era a cor sagrada entre os antigos, a cor que agradava aos deuses(12).

A refeição começava invariavelmente por uma oração e libações; cantavam-se hinos(13). A natureza das iguarias e a espécie do vinho que se devia servir eram regulados pelo ritual de cada cidade. Afastar-se o mínimo que fosse do costume seguido pelos antepassados, apresentar um prato novo, ou alterar o ritmo dos hinos sagrados, era impiedade grave, pela qual toda a cidade se responsabilizava diante dos deuses. A religião chegava até a fixar a natureza dos vasos que deviam ser usados, quer para o cozimento dos alimentos, quer para o serviço da mesa. Numa cidade era necessário que os pães fossem colocados em cestos de cobre; em outra não se deviam usar senão vasos de terra. Até a forma dos pães estava minuciosamente marcada(14). Essas regras da velha religião nunca deixaram de ser observadas, e os banquetes fúnebres sempre conservavam sua primitiva simplicidade. Crenças, costumes, estado social, tudo mudou; os banquetes continuaram invariáveis, porque os gregos sempre foram muito escrupulosos observadores da religião nacional.

É justo acrescentar que, quando os convivas haviam satisfeito à religião, comendo os alimentos prescritos, podiam imediatamente depois começar outro banquete mais suculento, e mais de acordo com o gosto de cada um. Isso acontecia muito em Esparta(15).

O costume dos banquetes sagrados estava em vigor tanto na Itália quanto na Grécia. Aristóteles afirma que já existiam entre os antigos enótrios, oscos e ausônios(16). Virgílio conservou sua lembrança por duas vezes na Eneida: o velho Latino recebe os enviados de Enéias, não em sua casa, mas em um templo “consagrado pela religião dos antepassados, onde se realizam os festins sagrados, após a imolação das vítimas, e onde todos os chefes de família sentam-se juntos em longas mesas.” — Mais adiante, quando Enéias chega à casa de Evandro, encontra-o celebrando o sacrifício; o rei está no meio povo; todos, coroados de flores, e sentados à mesma mesa, cantam um hino em louvor do deus da cidade(17).

Esse costume perpetuou-se em Roma, onde houve sempre uma sala destinada aos banquetes dos representantes das cúrias. O senado, em determinados dias, realizava um banquete sagrado no Capitólio(18). Nas festas solenes as mesas eram preparadas nas ruas, e todo o povo nelas tomava lugar. No início, esses banquetes foram presididos pelos pontífices; mais tarde confiou-se essa tarefa a sacerdotes especiais, chamados epulones(19).

Esses costumes antigos dão-nos idéia do vínculo estreito que unia os membros de uma cidade. A associação humana era uma religião; seu símbolo era o banquete público.

Imaginemos uma daquelas pequenas sociedades primitivas reunidas, pelo menos os chefes de família, em uma mesma mesa, vestidos de branco e coroados de flores; todos fazem juntos a libação, recitam as mesmas preces, cantam os mesmos hinos, comem a mesma comida, preparada sobre o mesmo altar; no meio deles estão presentes os antepassados, e os deuses protetores participam da refeição. Daí se originou a união íntima entre os membros da cidade. Vem a guerra, e os homens se lembrarão, segundo uma expressão antiga, “de que não devem abandonar o companheiro de fileiras, com o qual ofereceu os mesmos sacrifícios e as mesmas libações, e a cujo lado participou dos banquetes sagrados(20).” — Com efeito, esses homens estão ligados por algo mais forte que o interesse, a convenção, o costume, une-os a comunhão sagrada, piedosamente realizada na presença dos deuses da cidade.

2.° As festas e o calendário

Em todos os tempos e em todas as sociedades o homem sempre quis honrar seus deuses com festas, e estabeleceu dias especiais, nos quais o sentimento religioso reinaria sozinho em sua alma, sem distraí-la com pensamentos e ocupações terrenas. No número de dias que deve viver, estabeleceu a parte que caberia aos deuses.

Cada cidade havia sido fundada com ritos, que no pensamento dos antigos tinham por efeito fixar dentro de seus limites os deuses nacionais. Era necessário que a virtude desses ritos fosse rejuvenescida todos os anos por nova cerimônia religiosa; chamavam a essa festa dia natalício; todos os cidadãos deviam celebrá-la.

Tudo o que era sagrado dava lugar a uma festa. Havia a festa dos muros da cidade — amburbalia — a dos limites do território — ambarvalia. — Nesses dias os cidadãos formavam uma grande procissão, vestidos de branco e coroados de folhas; davam a volta na cidade ou no território cantando preces; à frente caminhavam os sacerdotes, conduzindo as vítimas, que eram imoladas no fim da cerimônia(1).

Vinha em seguida a festa do fundador. Depois, cada um dos heróis da cidade, cada uma daquelas almas que os homens invocavam como protetoras, passou a reclamar um culto; Rômulo tinha o seu, assim como Sérvio Túlio, e muitos outros, até a ama de Rômulo e a mãe de Evandro. Atenas, por sua vez, tinha a festa de Cécrops, a de Erecteu, a de Teseu, e celebrava cada um dos heróis do país, como o tutor de Teseu, Euristeu, Androgeu, e uma multidão de outros.

Havia ainda as festas dos campos, a do trabalho, a da semeadura, a da floração, a das vindimas. Na Grécia, como na Itália, cada ato da vida do agricultor era acompanhado de sacrifícios, e os trabalhos eram executados enquanto se recitavam hinos sagrados. Em Roma, os padres fixavam, cada ano, o dia em que deviam começar a vindima, e o dia em que se podia beber vinho novo. Tudo era regulado pela religião. A religião mandava que se podasse a vinha, porque afirmava que era impiedade oferecer aos deuses uma libação com vinho de parreira não podada(2).

Toda cidade tinha uma festa para cada uma das divindades que havia adotado como protetoras, e que eram muitas. À medida que se introduzia o culto de uma divindade nova, fazia-se necessário encontrar um dia do ano para consagrar-lhe. O que caracterizava as festas religiosas era a proibição do trabalho(3), a obrigação de se estar alegre, os cantos e jogos públicos. A religião acrescentava: Guardai-vos nesses dias de vos maltratardes uns aos outros(4).

O calendário não era outra coisa que a sucessão das festas religiosas. Também havia sido organizado pelos padres. Em Roma, por muito tempo, não houve calendário escrito; no primeiro dia do mês, o pontífice, depois de oferecer o sacrifício, convocava o povo, e dizia quais festas haveria no correr do mês. Essa convocação se chamava calatio, de onde vem o nome de calendas, que se dava a esse dia(5).

O calendário não era regulado nem pelo curso da lua, nem pelo curso aparente do sol, mas apenas pelas leis da religião, leis misteriosas, que somente os padres conheciam. Às vezes a religião prescrevia o encurtamento do ano, e outras vezes seu alongamento. Podemos fazer idéia dos calendários primitivos, ao observarmos que entre os albanos o mês de maio tinha vinte e dois dias, e que março tinha trinta e seis(6).

Compreende-se que o calendário de uma cidade não podia assemelhar-se em nada ao de outra, porque a religião não era a mesma entre elas, e as festas, como os deuses, diferiam. O ano não tinha a mesma duração em duas cidades. Os meses não tinham os mesmos nomes; Atenas chamava-os diferentemente de Tebas, e Roma de modo muito diverso de Lavínio. Isso porque o nome de cada mês era tirado ordinariamente da festa principal que nele se celebrava: ora, as festas não eram as mesmas. As cidades não concordavam em começar o ano na mesma época, nem em contar a série dos anos a partir de uma mesma data. Na Grécia, a festa de Olímpia tornou-se, com o tempo, uma data comum, mas que não impediu que cada cidade tivesse seu ano particular. Na Itália, cada cidade contava os anos a partir do dia da fundação.

3.° O censo e a lustração

Entre as cerimônias mais importantes da religião da cidade, havia uma que se chamava purificação(1). Celebrava-se todos os anos em Atenas(2); em Roma só se realizava de quatro em quatro anos. Os ritos então observados, e o nome que lhe davam indicam que essa cerimônia devia ter por virtude o resgate das faltas cometidas pelos cidadãos contra o culto. Com efeito, religião tão complicada era fonte de terror para os antigos; como a fé e a pureza de intenções de nada valiam, e como toda a religião consistia na prática minuciosa de inumeráveis prescrições, sempre se devia temer por alguma negligência, por alguma omissão ou erro, e nunca se tinha certeza de estar ao seguro dos golpes de cólera ou de rancor de algum deus. Era necessário, portanto, para tranqüilizar o coração do homem, um sacrifício expiatório. O magistrado encarregado de realizá-lo em Roma era o censor; antes do censor, era o cônsul; antes do cônsul, o rei — começava por certificar-se, com o auxílio dos auspícios, de que os deuses aceitavam de bom grado a cerimônia. Depois convocava o povo por intermédio do arauto, que se servia para esse efeito de uma fórmula sacramental(3). Todos os cidadãos, no dia estabelecido, reuniam-se fora dos muros; lá, todos em silêncio, o magistrado dava três voltas em torno da assembléia, levando à frente três vítimas: um carneiro, um porco e um touro (suovetaurile); a reunião desses três animais constituía, entre gregos e romanos, o sacrifício expiatório. Sacerdotes e vitimários seguiam a procissão; ao término da terceira volta, o magistrado pronunciava uma fórmula de oração, e imolava as vítimas(4). A partir daquele momento apagava-se qualquer mancha, reparava-se qualquer negligência no culto, e a cidade ficava em paz com os deuses.

Para ato dessa natureza, e de tal importância, duas coisas eram necessárias: uma, que nenhum estranho se introduzisse entre os cidadãos, o que perturbaria e viciaria a cerimônia; outra, que todos os cidadãos estivessem presentes, sem o que a cidade poderia continuar impura. Era necessário, portanto, que essa cerimônia religiosa fosse precedida pelo recenseamento dos cidadãos. Em Roma e em Atenas contavam-se os cidadãos com o maior cuidado; é provável que seu número fosse declarado pelo magistrado na fórmula da oração, e em seguida inscrito no relatório que o censor redigia sobre a cerimônia.

A perda do direito de cidadania era o castigo imposto a quem não se inscrevesse no censo. Essa severidade tem uma explicação. O homem que não tomava parte no ato religioso, que não havia sido purificado, em cujo proveito não se dissera a oração e não se imolara a vítima, não podia mais ser membro da cidade. Para os deuses presentes à cerimônia ele não era mais cidadão(5).

Podemos julgar da importância dessa cerimônia pelo poder exorbitante do magistrado que a presidia. O censor, antes de começar o sacrifício, dispunha o povo de acordo com certa ordem: aqui os senadores, ali os cavaleiros, mais adiante as tribos. Senhor absoluto daquele dia, ele fixava o lugar de cada homem nas diferentes categorias. Depois, quando todos estavam colocados de acordo com as prescrições, realizava o ato sagrado. Ora, resultava daí que a partir desse dia, até a lustração seguinte, cada homem conservava na cidade a categoria que o censor lhe havia consignado durante a cerimônia. Era senador, se havia sido colocado entre os senadores; cavaleiro, se havia figurado entre os cavaleiros. Simples cidadão, ele fazia parte da tribo em cujas fileiras havia sido colocado; e destarte, se o magistrado recusara-se a admiti-lo na cerimônia, deixava de ser cidadão. Assim, o posto que cada um havia ocupado no ato religioso, e onde os deuses o haviam visto, era o posto que conservava na cidade durante quatro anos. Daí se originou o imenso poder dos censores.

A essa cerimônia assistiam somente os cidadãos; mas suas mulheres, crianças, escravos, bens, móveis e imóveis, eram, de algum modo, purificados na pessoa do chefe da família. É por isso que, antes do sacrifício, cada um devia declarar ao censor o número de pessoas e coisas que dependiam dele(6).

A lustração era realizada nos tempos de Augusto com a mesma exatidão e os mesmos ritos que nos tempos mais antigos. Os pontífices encaravam-na ainda como ato religioso; os homens de Estado nela viam, pelo menos, uma excelente medida administrativa.

4.° A religião na assembléia, no senado, no tribunal e no exército. O triunfo

Não havia um só ato da vida pública no qual não fizessem intervir os deuses. Como estavam sob o domínio da idéia de que os deuses ora eram excelentes protetores, ora cruéis inimigos, o homem jamais ousava agir sem estar seguro de seus favores.

O povo não se reunia em assembléia senão em dias permitidos pela religião. Lembravam-se de que a cidade sofrera um desastre em determinado dia: sem dúvida isso acontecera porque naquele dia os deuses estavam ou ausentes ou irritados; sem dúvida ainda, todos os anos, pela mesma época, eles deviam estar irritados, por razões desconhecidas aos mortais(1). Esse dia, portanto, era nefasto para sempre: não se faziam reuniões, não se realizavam julgamentos, a vida pública ficava suspensa(2).

Em Roma, antes de se abrir a sessão, era necessário que os áugures assegurassem que os deuses eram propícios. A assembléia começava por uma oração, que o áugure pronunciava e o cônsul depois repetia(3).

O mesmo acontecia entre os atenienses: a assembléia sempre se iniciava por um ato religioso. Os sacerdotes ofereciam sacrifícios; traçava-se depois um grande círculo, espargindo a terra com água lustral, e era dentro desse círculo sagrado que os cidadãos se reuniam(4). Antes que algum orador tomasse a palavra, pronunciava-se uma prece diante do povo em silêncio(5). Consultavam-se também os auspícios, e, se aparecesse no céu algum sinal pouco propício, a assembléia era dissolvida imediatamente(6).

A tribuna era lugar sagrado; o orador só podia subir à mesma com uma coroa na cabeça(7), e durante muito tempo quis o costume que começasse o discurso invocando os deuses.

O lugar de reunião do senado de Roma era sempre um templo. Se se realizasse alguma sessão fora de lugar sagrado, as decisões tomadas seriam consideradas nulas, porque os deuses haviam estado ausentes(8). Antes de qualquer deliberação o presidente oferecia um sacrifício e pronunciava uma oração. Na sala havia um altar, onde cada senador, ao entrar, derramava a libação, enquanto invocava os deuses(9).

O senado de Atenas assemelhava-se nisto ao de Roma. A sala tinha também um altar, um lar. Antes de cada sessão realizava-se um ato religioso. Todo senador, ao entrar, aproximava-se do altar, e pronunciava uma oração(10).

Em Roma, como em Atenas, só se administrava justiça na cidade em dias determinados pela religião como favoráveis. Em Atenas, a sessão do tribunal era realizada junto a um altar, e se iniciava com um sacrifício(11). Nos tempos de Homero, os juízes se reuniam “em recinto sagrado”.

Festo diz que nos rituais dos etruscos encontrava-se indicado o modo pelo qual se devia fundar uma cidade, consagrar templos, distribuir as cúrias e as tribos em assembléia, e dispor o exército em ordem de batalha. Todas essas coisas eram marcadas nos rituais, porque todas diziam respeito à religião.

Na guerra a religião era, pelo menos, mais poderosa que na paz. Havia nas cidades italianas colégios de sacerdotes chamados feciais, que presidiam, como os arautos entre os gregos, a todas as cerimônias sagradas inspiradas pelas relações internacionais. Um fecial, com a cabeça coberta por um véu de lã, de acordo com os ritos, tendo os deuses, como testemunhas, declarava a guerra, pronunciando uma fórmula sacramental(12). Ao mesmo tempo, o cônsul, em vestes sacerdotais, fazia um sacrifício, e abria solenemente o templo da divindade mais antiga e mais venerada da Itália, o templo de Jano(13). Antes de partir para uma expedição, reunido o exército, o general pronunciava preces e oferecia sacrifícios. O mesmo acontecia em Atenas e em Esparta(14).

O exército em campanha ostentava a insígnia da cidade; a religião o seguia. Os gregos levavam consigo estátuas de suas divindades. Todo exército, grego ou romano, carregava um lar, sobre o qual se alimentava dia e noite o fogo sagrado(15). O exército romano fazia-se acompanhar de áugures e de pulários; todo o exército grego tinha o seu adivinho.

Observemos um exército romano no momento em que se dispõe para o combate. O cônsul manda vir uma vítima, e a fere com o machado; a vítima cai: suas entranhas devem indicar a vontade dos deuses. Um arúspice as examina, e, se os sinais são favoráveis, o cônsul dá o sinal da batalha. As mais hábeis disposições, as circunstâncias mais felizes de nada servem, se os deuses não permitem o combate. A base da arte militar entre os romanos consistia em jamais travar luta contra a vontade, quando os deuses fossem contrários à batalha. É por isso que os romanos faziam de seu campo, todos os dias, uma espécie de cidadela.

Observemos agora um exército grego, e tomemos por exemplo a batalha de Platéias. Os espartanos estão dispostos em linhas, cada um em seu posto de combate; todos ostentam coroas na cabeça; os tocadores de flauta fazem ouvir hinos religiosos. O rei, um pouco atrás das fileiras, sacrifica vítimas. Mas as entranhas não dão sinais favoráveis, e o sacrifício tem que ser recomeçado. Duas, três, quatro vítimas são sucessivamente imoladas. Durante esse tempo, a cavalaria persa se aproxima, lança suas flechas, mata grande número de espartanos. Os espartanos continuam imóveis, o escudo apoiado nos pés, sem nem sequer defender-se do ataque inimigo. Eles esperam o sinal dos deuses. Enfim, as vítimas apresentam sinais favoráveis: então os espartanos levantam os escudos, empunham as espadas, combatem, e saem vencedores(16).

Depois de cada vitória oferecia-se outro sacrifício; essa é a origem do triunfo, tão conhecido entre os romanos, e que não era menos usado entre os gregos. Esse costume era conseqüência da opinião que atribuía a vitória aos deuses da cidade. Antes da batalha o exército dirigia-lhes prece análoga a esta, que lemos em Ésquilo: “A vós, deuses, que habitais e possuis nosso território, se nossas armas forem felizes, se nossa cidade for salva, eu vos prometo regar vossos altares com o sangue dos cordeiros, imolar touros, e depor em vossos templos sagrados os troféus conquistados pela lança(17).” — Em virtude dessa promessa, o vencedor devia um sacrifício. O exército voltava à cidade para cumpri-lo, e se dirigia ao templo, em longa procissão, cantando o hino sagrado, thríambos(18).

Em Roma, a cerimônia era quase idêntica. O exército dirigia-se processionalmente ao principal templo da cidade; os padres iam à frente do cortejo, conduzindo vítimas para o sacrifício. Chegando ao templo, o general imolava vítimas aos deuses. Enquanto caminhavam, os soldados ostentavam coroas, como convinha a uma cerimônia sagrada, e cantavam um hino, como na Grécia. Na verdade, tempo houve em que os soldados não tiveram escrúpulo de substituir o hino sagrado por canções de caserna, ou por zombarias contra o general. Mas, pelo menos, conservaram o costume de repetir de quando em quando o antigo refrão: Io triumphe(19). E era esse refrão sagrado que dava nome à cerimônia.

Assim, em tempo de paz como em tempo de guerra, a religião intervinha em todos os atos. Achava-se presente em toda parte, como que envolvendo o homem. A alma, o corpo, a vida privada, a vida pública, os banquetes, as festas, as assembléias, os tribunais, os combates, tudo estava sob o império da religião da cidade. A religião regulava todas as ações do homem, dispunha todos os instantes de sua vida, fixava todos os seus hábitos. A religião governava a criatura humana com autoridade tão absoluta, que nada lhe escapava.

Seria fazer idéia bem falsa da natureza do homem acreditar que essa religião dos antigos era uma impostura, e, por assim dizer, uma comédia. Montesquieu pretende que os romanos inventaram o culto apenas para refrear o povo. Nunca uma religião teve semelhante origem, e toda religião que surgiu apenas em razão da utilidade pública não se manteve por muito tempo. Montesquieu diz ainda que os romanos submetiam a religião ao Estado; o contrário é mais verdadeiro; é impossível ler algumas páginas de Tito Lívio sem nos impressionarmos com a absoluta dependência em que estavam os homens em relação aos deuses. Nem romanos, nem gregos conheceram esses tristes conflitos, tão comuns em outras sociedades, entre a Igreja e o Estado. Mas isto deveu-se unicamente ao fato de, tanto em Roma, como em Esparta e em Atenas, o Estado achar-se a serviço da religião; não que houvesse um colégio de sacerdotes que impunha seu domínio. O Estado antigo não obedecia a um sacerdote, mas estava submetido à própria religião. Estado e religião estavam de tal modo unidos, que era impossível, não somente ter idéia de conflito entre eles, mas mesmo distingui-los um do outro.

CAPÍTULO VIII

OS RITUAIS E OS ANAIS

 

O caráter e a virtude da religião dos antigos não era elevar a inteligência humana à concepção do absoluto, ou abrir ao espírito ávido um caminho brilhante, em cuja extremidade o homem pudesse entrever a Deus. A religião era um conjunto mal concatenado de pequenas crenças, de pequenas práticas, de ritos minuciosos. Não era necessário buscar-lhes o sentido; não era necessário refletir ou considerar. A palavra religião não significava o que significa para nós; sob essa palavra entendemos um corpo de dogmas, uma doutrina sobre Deus, um símbolo de fé sobre os mistérios que estão em nós e ao nosso redor; essa mesma palavra, entre os antigos, significava ritos, cerimônias, atos de culto exterior. A doutrina não tinha muita importância: as práticas é que eram importantes, obrigatórias e imperiosas. A religião era um vínculo material, uma cadeia que mantinha o homem em escravidão. O homem a inventara, e era governado por ela. Ele a temia, e não ousava nem raciocinar, nem discutir, nem olhá-la de frente. Deuses, heróis, mortos, todos exigiam dele um culto material, que ele observava, para torná-los amigos, e, mais ainda, para não torná-los inimigos.

O homem pouco contava com sua amizade. Eram deuses invejosos, irritáveis, sem afeições nem benevolência, amantes de guerrear com os homens(1). Nem os deuses amavam o homem, nem o homem amava os deuses. O homem acreditava em sua existência, mas às vezes preferia que não existissem. Temia até os deuses domésticos ou nacionais, com medo de ser por eles traído. Sua grande inquietação era cair no ódio desses seres invisíveis. Toda a vida ocupavam-se em apaziguá-los — paces deorum quaerere — diz o poeta. Mas como contentá-los? Como conquistar-lhes os favores? Julgaram achar a solução no emprego de certas fórmulas. Tal oração, composta de tais palavras, conseguira ser atendida; o que sem dúvida aconteceu porque fora ouvida pela divindade, agira sobre ela, fora poderosa, mais poderosa que o próprio deus, que não soubera resistir. Conservaram-se então os termos sagrados e misteriosos dessa oração. Depois do pai, o filho passou a repeti-la. Aparecendo o alfabeto, passaram a escrevê-la. Cada família, pelo menos cada família religiosa, tinha um livro que continha as fórmulas das quais se serviram os antepassados, e às quais os deuses haviam atendido. Era uma arma que o homem usava contra a inconstância dos deuses. Mas não devia mudar nem uma palavra, nem uma sílaba, nem, sobretudo, o ritmo segundo o qual devia ser cantada, porque então a prece perderia a força, e os deuses continuariam livres(2).

Mas a fórmula não era suficiente: havia ainda atos exteriores, cujos pormenores eram minuciosos e imutáveis. Os menores gestos do sacrificador e as menores partes de suas vestes eram determinados. Para se dirigir a um deus, era necessário ter a cabeça coberta; para um outro, devia-se ter a cabeça descoberta; para um terceiro, a bainha da toga devia estar levantada nos ombros. Para certos atos, devia-se estar descalço. Havia orações que só eram eficazes se o homem, depois de pronunciá-las, piruetasse sobre os calcanhares, da esquerda para a direita. A natureza da vítima, a cor do pêlo, a maneira de matá-la, a forma da faca, a espécie de madeira que se devia usar para queimar as carnes, tudo isso estava determinado para cada deus pela religião de cada família ou de cada cidade. Em vão os corações mais fervorosos ofereciam aos deuses gordas vítimas; se um dos inumeráveis ritos do sacrifício fosse negligenciado, tornar-se-ia nulo. A menor falta fazia de um ato sagrado um ato sacrílego. A mais ligeira alteração perturbava e transtornava a religião da pátria, e transformava os deuses protetores em outros tantos inimigos cruéis. É por isso que Atenas era severa para com o sacerdote que mudasse algo dos ritos antigos(3); é por isso que o senado de Roma degradava os cônsules e ditadores que cometessem algum erro durante os sacrifícios.

Todas essas fórmulas e práticas haviam sido legadas pelos antepassados, que haviam experimentado sua eficácia. Não se deviam inventar inovações, mas confiar no que haviam feito os antepassados; a suprema piedade consistia em fazer como eles. Pouco importava que a crença se transformasse: ela podia modificar-se à vontade através das idades, e tomar mil formas diversas, de acordo com a reflexão dos sábios e a imaginação popular. Mas era da maior importância que as fórmulas não fossem esquecidas, e que os ritos não fossem modificados. Assim cada cidade tinha um livro, onde tudo isso era conservado.

O uso dos livros sagrados era universal entre os gregos, entre os romanos, entre os etruscos(4). Às vezes o ritual era escrito sobre tabuletas de madeira, outras vezes sobre tela; Atenas gravava seus ritos sobre placas de cobre, ou em estelas de pedra, a fim de que não se deteriorassem(5). Roma tinha o livro dos pontífices, o livro dos augúrios, o livro das cerimônias e a coletânea das Indigitamenta. Não havia cidade que não possuísse uma coleção de velhos hinos em honra de seus deuses(6); em vão a língua se transformava, juntamente com os costumes e as crenças: as palavras e o rito continuavam imutáveis, e nas festas continuavam a cantar os mesmos hinos, sem compreendê-los.

Esses livros e cânticos, escritos pelos sacerdotes, eram guardados com grande cuidado. Nunca, eram mostrados a estranhos. Revelar um rito ou uma fórmula seria trair a religião da cidade, e entregar os próprios deuses ao inimigo. Para maior precaução, escondiam-nos dos próprios cidadãos; somente os padres podiam consultá-los.

No pensamento desses povos tudo o que era antigo era sagrado. Quando um romano queria dizer que algo lhe era caro, dizia: Isto para mim é antigo. — Os gregos tinham uma expressão semelhante(7). As cidades agarravam-se ao passado, porque no passado é que encontravam todos os motivos como todas as regras da religião. Tinham necessidade de recordar, porque nas lembranças e nas tradições é que se baseava todo o culto. Também a história tinha para os antigos muito mais importância do que tem para nós. Ela existiu muito antes que os Heródotos e os Tucídides; escrita ou não, simples tradição ou livro, a história foi contemporânea do nascimento das cidades. Não havia cidade, por mais pequena e obscura que fosse, que não desse a maior atenção em conservar a lembrança do que se passava. Não se tratava de vaidade, mas de religião. Uma cidade não se julgava com direitos de esquecer coisa alguma, porque tudo em sua história estava ligado ao culto.

A história começava, com efeito, pelo ato da fundação, e declarava o nome sagrado do fundador. Continuava com a lenda dos deuses da cidade e dos heróis protetores. Ensinava as datas, a origem, a razão de cada culto, cujos ritos obscuros explicava. Nela se enumeravam os prodígios que os deuses do país haviam operado, e pelos quais haviam manifestado seu poder, sua bondade ou sua cólera. Nela se descreviam as cerimônias pelas quais os sacerdotes haviam contornado habilmente um mau presságio, ou apaziguado as iras dos deuses. Nela se contavam as epidemias que haviam atacado a cidade, e as fórmulas sagradas que as haviam debelado; o dia em que um templo havia sido consagrado, e os motivos de um sacrifício ou de uma festa. Nela se inscreviam todos os acontecimentos que podiam referir-se à religião, as vitórias que provavam a assistência dos deuses, e nas quais viram muitas vezes os deuses combater; as derrotas que indicavam sua cólera, e pelas quais tiveram que instituir sacrifícios expiatórios. Tudo isso estava escrito para ensinamento e piedade dos descendentes. Toda a história era a prova material da existência dos deuses nacionais, porque os acontecimentos nela contidos eram a forma visível sob a qual os deuses se haviam revelado de tempos em tempos. Entre esses fatos, havia muitos que davam lugar a aniversários, isto é, a sacrifícios, a festas, a jogos sagrados. A história da cidade declarava ao cidadão o que ele devia acreditar, e tudo o que devia adorar.

A história também era escrita pelos sacerdotes. Roma tinha os anais dos pontífices; os sacerdotes sabinos, samnitas e etruscos tinham outros semelhantes(8). Entre os gregos, ficou-nos a lembrança dos livros ou anais sagrados de Atenas, de Esparta, de Delfos, de Naxos, de Tarento(9). Quando Pausânias percorreu a Grécia, nos tempos de Adriano, os sacerdotes de cada cidade contaram-lhe velhas histórias locais; eles não as inventaram; tinham-nas aprendido em seus anais.

Essa espécie de história era apenas local. Começava na fundação, porque o que era anterior a essa data não interessava em nada à cidade; é por isso que os anciãos ignoravam tão completamente as origens de suas raças. A história também não relatava senão os acontecimentos de que a cidade participara, e não se preocupava com o resto do mundo. Cada cidade tinha sua história especial, como tinha sua religião, seu calendário.

Podemos supor que esses anais das cidades eram muito secos, muito estranhos, tanto pelo fundo quanto pela forma. Não eram obra de arte, mas obra de religião. Mais tarde surgiram os escritores, narradores como Heródoto, pensadores como Tucídides. A história saiu então da mão dos sacerdotes, e se transformou. Desgraçadamente, esses belos e brilhantes escritos nos deixam ainda saudosos dos velhos arquivos das cidades, e de tudo o que eles continham sobre a vida íntima e as crenças dos antigos. Aqueles inapreciáveis documentos, que pareciam mantidos em segredo, que não saíam dos santuários, dos quais não se faziam cópias, e que somente os sacerdotes podiam ler, desapareceram, deixando apenas uma fraca lembrança.

É verdade que essa lembrança tem grande valor para nós. Sem ela talvez estivéssemos no direito de rejeitar tudo o que a Grécia e Roma nos contam de suas antiguidades; todas essas narrativas, que nos parecem pouco verossímeis, porque se afastam de nossos hábitos e de nossa maneira de pensar e de agir, poderiam passar por produto da imaginação dos homens. Mas a lembrança que nos ficou dos velhos anais, mostra-nos, pelo menos, o piedoso respeito que os antigos nutriam pela história. Sabemos que naqueles arquivos os fatos eram religiosamente guardados, à medida que iam sucedendo. Naqueles livros sagrados cada página era contemporânea do acontecimento que relatava. Era materialmente impossível alterar aqueles documentos, porque os padres tinham-nos sob sua guarda, e a religião estava grandemente interessada em que permanecessem inalteráveis. Nem era fácil ao pontífice, à medida que escrevia as linhas, inserir entre elas, conscientemente, fatos contrários à verdade, porque acreditava-se então que tudo o que acontecia era por vontade dos deuses, que revelavam suas vontades, provocando nas gerações seguintes recordações piedosas e atos sagrados; todo acontecimento que se dava na cidade passava imediatamente a fazer parte da religião do futuro. Com tais crenças, compreende-se que tenham havido muitos erros involuntários, resultado da credulidade, da predileção pelo maravilhoso, da fé nos deuses nacionais; mas não podemos conceber mentiras voluntárias, porque teria sido impiedade, seria violar a santidade dos anais, alterando a religião. Podemos portanto afirmar que nesses velhos livros, se nem tudo era verdade, pelo menos nada havia que o sacerdote não julgasse como tal. Ora, para o historiador que procura desvendar a obscuridade desse tempo, é poderoso motivo de confiança saber que, se tem de lidar com erros, pelo menos não tem de lutar contra a impostura. Esses mesmos erros, tendo ainda a vantagem de ser contemporâneos das antigas idades que estuda, podem revelar-lhe, senão os pormenores dos acontecimentos, pelo menos as crenças sinceras dos homens.

Havia também, ao lado dos anais, documentos escritos e autênticos, uma tradição oral que se perpetuava por entre o povo de uma cidade; não tradições vagas e indiferentes como as nossas, mas tradições amadas pela cidade, que não variavam de acordo com a imaginação, e que não tinham liberdade para modificar, porque fazia parte do culto, e se compunha de narrativas e cantos, que se repetiam de ano em ano nas festas religiosas. Esses hinos sagrados e imutáveis fixavam as lembranças, e reavivavam perpetuamente a tradição.

Sem dúvida, não se pode crer que essa tradição fosse tão exata quanto os anais. O desejo de louvar os deuses podia ser mais forte que o amor à verdade. Contudo, ela devia ser, pelo menos, o reflexo dos anais, e estar geralmente de acordo com eles, porque os sacerdotes, que redigiam e liam esses anais, eram os mesmos que presidiam às festas, onde essas velhas narrativas eram cantadas.

Posteriormente, houve tempo em que esses anais foram divulgados. Roma acabou por publicar os seus; tornaram-se conhecidos os de outras cidades da Itália: os sacerdotes das cidades gregas não tiveram mais escrúpulos de contar o que os seus livros continham(10). Esses documentos autênticos foram estudados e compulsados. Formou-se uma escola de eruditos, desde Varrão e Vérrio Flaco, até Aulo Gélio e Macróbio. Fez-se luz por toda a antiga história. Corrigiram-se alguns erros, que se haviam introduzido na tradição, e que os historiadores da época precedente haviam repetido; soube-se, por exemplo, que Porsena havia tomado Roma, e que se havia pago ouro aos gauleses. Teve início então a idade da crítica histórica. Ora, é bem digno de nota que essa crítica, que remontava às fontes e estudava os anais, nada encontrasse que lhe desse o direito de rejeitar o conjunto histórico que os Heródotos e os Tito Lívios haviam construído.

CAPÍTULO IX

GOVERNO DA CIDADE. O REI

 

1.° Autoridade religiosa do rei

Não é necessário imaginar uma cidade, ao nascer, deliberando sobre o governo que vai escolher, procurando e discutindo leis, combinando suas instituições. Não é assim que se formaram as leis ou que se estabeleceram os governos. As instituições políticas da cidade nasceram com a própria cidade, no mesmo dia; cada membro da cidade trazia-os consigo, porque elas estavam em germe nas crenças e na religião de cada homem.

A religião prescrevia que o lar tivesse sempre um sacerdote supremo. Não admitia que a autoridade sacerdotal fosse dividida. O lar doméstico tinha um grão-sacerdote, que era o pai de família; o lar da cúria tinha seu curião ou fratriarca; cada tribo tinha seu chefe religioso, que os atenienses chamavam de rei da tribo. A religião da cidade devia também ter um pontífice.

Esse sacerdote do lar público usava o nome de rei; as vezes davam-lhe outros títulos: como, entre os gregos, ele era antes de tudo sacerdote do pritaneu, estes o chamavam de prítane; às vezes ainda chamavam-no de arconte. Sob esses nomes diversos, rei, prítane e arconte, devemos ver um personagem que é sobretudo chefe do culto, cuidando do lar. oferecendo sacrifícios, pronunciando orações, presidindo a banquetes religiosos.

É visível que os antigos reis da Itália e da Grécia eram tão sacerdotes quanto reis. Lemos em Aristóteles: “O cuidado dos sacrifícios públicos da cidade pertence de acordo com o costume religioso, não a sacerdotes especiais, mas a esses homens, que velam pela dignidade do lar, chamados, de acordo com os lugares, de reis, prítanes ou arcontes(1).” — Assim fala Aristóteles, o homem que melhor conheceu as instituições das cidades gregas. Essa passagem tão precisa prova antes de mais nada que os três vocábulos, rei, prítane e arconte, por muito tempo foram sinônimos; e isso é tão verdade que um historiador, Charon de Lâmpsaco, escrevendo um livro sobre os reis da Lacedemônia, intitulou-o: Arcontes e prítanes dos Lacedemônios(2). — Acontece ainda que o personagem que se chamava indiferentemente por um desses três nomes, talvez pelos três ao mesmo tempo, era o sacerdote da cidade, e que o culto do lar público era a fonte de sua dignidade e poder.

Esse caráter sacerdotal da realeza primitiva está claramente indicado pelos escritores antigos. Em Ésquilo, as filhas de Dânao dirigem-se ao rei de Argos nestes termos: “Tu és o prítane supremo, tu, que velas sobre o lar deste país(3).” — Em Eurípides, Orestes, assassino da própria mãe, diz a Menelau: É justo que, como filho de Agamenon, eu reine sobre Argos.“ — E Menelau responde: “E tu, assassino, estarás à altura de tocar os vasos sagrados da água lustral para os sacrifícios? És digno de sacrificar as vítimas(4)?” — A principal tarefa de um rei era, portanto, celebrar as cerimônias religiosas. Um antigo rei de Sicion foi deposto, porque, manchando as mãos com um assassínio, não estava mais em condições de oferecer sacrifícios(5). Não podendo mais ser sacerdote, deixava de ser rei.

Homero e Virgílio, mostram-nos os reis continuamente ocupados com as cerimônias sagradas. Sabemos por Demóstenes que os antigos reis da Ática ofereciam eles próprios todos os sacrifícios prescritos pela religião da cidade, e Xenofonte afirma que os reis de Esparta eram os chefes da religião lacedemoniana(6). Os lucumons etruscos eram ao mesmo tempo magistrados, chefes militares e pontífices(7).

Em Roma aconteceu o mesmo. A tradição representa seus reis sempre como sacerdotes. O primeiro foi Rômulo, “instruído na ciência augural(8)”, e que fundou a cidade de acordo com os ritos da religião. O segundo foi Numa; “ele desempenhava — diz Tito Lívio — a maior parte das funções sacerdotais; mas previu que seus sucessores, ocupados com muitas guerras, não poderiam cuidar sempre dos sacrifícios, e instituiu os flâmines, para substituir os reis quando estes se ausentassem de Roma”. — Assim, o sacerdócio romano não era senão uma espécie de emanação da primitiva realeza(9).

Aqueles reis-sacerdotes eram entronizados com cerimonial religioso. O novo rei, conduzido sobre o cimo do monte Capitolino, sentava-se em um banco de pedra, com o rosto voltado para o sul. À sua esquerda sentava-se um áugure, com a cabeça coberta de fitas sagradas, empunhando o bastão augural. Este traçava no espaço algumas linhas, pronunciava uma prece, e, pousando a mão sobre a cabeça do rei, suplicava aos deuses que mostrasse com um sinal visível se aquele chefe lhes convinha. Depois, quando um relâmpago, ou o vôo dos pássaros manifestassem o assentimento dos deuses, o novo rei tomava posse do cargo. Tito Lívio descreve essa cerimônia para a posse de Numa; Dionísio afirma que ela se repetia para todos os reis, e, depois dos reis, para todos os cônsules, e acrescenta ainda que em seu tempo era observada(10). Tal costume tinha sua razão de ser: como o rei ia ser o chefe supremo da religião, e como a cidade iria depender de suas preces e de seus sacrifícios, todos tinham o direito de certificar-se de que o novo rei era aceito pelos deuses.

Os antigos não nos relatam a maneira pela qual os reis de Esparta tomavam posse de suas funções; apenas nos dizem que então se realizava uma cerimônia religiosa(11). Podemos até observar, por velhos costumes, que duraram até o fim da história de Esparta, que a cidade queria ter certeza de que seus reis eram do agrado dos deuses. Para isso, interrogavam os deuses, pedindo “um sinal, seméion.” Eis qual era este sinal, de acordo com Plutarco: “Cada nove anos, os éforos escolhiam uma noite bem clara, mas sem lua, e sentavam-se em silêncio, os olhos fixos no céu. Se vissem uma estrela atravessar o céu de um lado para outro, seus reis seriam culpados de alguma falta para com os deuses. Privam-nos então da realeza, até que o oráculo de Delfos lhes revele sua prescrição(12).”

2.° Autoridade política do rei

Assim como na família a autoridade estava inerente ao sacerdócio, e o pai, como chefe do culto doméstico, era ao mesmo tempo juiz e mestre, assim o grão-sacerdote da cidade era também seu chefe político. O altar, de acordo com expressão de Aristóteles(1), conferia-lhe a dignidade. Essa confusão de sacerdócio e de poder nada tem de surpreendente. Encontramo-la na origem de quase todas as sociedades, ou porque, na infância dos povos, somente a religião era capaz de conseguir obediência, ou porque nossa natureza sente necessidade de não se submeter nunca a outro império, a não ser ao de uma idéia moral.

Já dissemos como a religião da cidade estava presente em todas as coisas. O homem sentia-se continuamente dependente dos deuses, e, por conseqüência, do sacerdote colocado entre o céu e a terra. O sacerdote é que velava sobre o fogo sagrado; era, como diz Píndaro, seu culto cotidiano que salvava cada dia a cidade(2). Ele é que conhecia as fórmulas sagradas de oração, às quais os deuses não sabiam resistir; no momento do combate, era ele que sacrificava a vítima, e que atraía para o exército a proteção dos deuses. Era muito natural que um homem armado de tal poder fosse aceito e reconhecido como chefe. Como a religião se envolvia com o governo, a justiça, a guerra, resultou necessariamente que o sacerdote se tornasse ao mesmo tempo magistrado, juiz e chefe militar. “Os reis de Esparta — diz Aristóteles(3) — têm três atribuições: fazem os sacrifícios, comandam na guerra, administram a justiça.” — Dionísio de Halicarnasso expressa-se nos mesmos termos a respeito dos reis de Roma.

As regras que constituíram essa monarquia eram muito simples, e não foi necessário procurá-las por muito tempo; derivaram das próprias regras do culto. O fundador, que havia assentado o lar sagrado, era naturalmente seu primeiro sacerdote. A hereditariedade era a regra constante, na origem, para a transmissão do culto; quer o lar pertencesse a uma família ou a uma cidade, a religião prescrevia que o cuidado de mantê-lo passasse sempre de pai para filho. O sacerdócio foi, portanto hereditário, o mesmo acontecendo com o poder(4).

Um fato bem conhecido da antiga história da Grécia prova de maneira evidente que a realeza pertencia, em sua origem, ao homem que havia assentado o lar da cidade. Sabe-se que as populações das colônias jônias não se compunham de atenienses, mas era uma mistura de pelasgos, de eólios, de abanteus, de cadmeanos. No entanto, todos os lares das novas cidades foram assentados por membros da família religiosa de Codro. Daí resultou que esses colonos, em vez de terem por chefes homens de suas raças, os pelasgos um pelasgo, os abanteus um abanteu, os eólios um eólio, todos deram a realeza em suas doze cidades aos codridas(5). Certamente esses personagens não haviam adquirido sua autoridade pela força, porque eram quase os únicos atenienses que havia naquela numerosa aglomeração. Mas como haviam construído os lares, a eles pertencia a tarefa de mantê-los. A realeza, portanto, foi-lhes entregue sem contestação, e continuou hereditária em suas famílias. Bato fundou Cirene, na África: os batíadas mantiveram-se por muito tempo na posse da dignidade real. Proto fundara Marselha: os protíadas, de pai a filho, aí exerceram o sacerdócio, e gozaram de grandes privilégios.

Não foi, portanto, a força que constituiu os chefes e reis nessas cidades antigas. Nem seria verdade dizer-se que o primeiro rei foi apenas um soldado feliz. A autoridade derivava, como o diz formalmente Aristóteles, do culto do lar. A religião fez o rei na cidade, assim como constituíra o chefe de família em cada casa. A crença, a indiscutível e imperiosa crença, dizia que o sacerdote hereditário do lar era o depositário das coisas sagradas e o guarda dos deuses. Como hesitar em obedecer a tal homem? O rei era um ser sagrado; basiléis hierói — diz Píndaro. Nele se vê, não um deus propriamente, mas, pelo menos, “o homem mais poderoso para conjurar a cólera dos deuses(6),” o homem sem cuja assistência nenhuma prece seria eficaz, nenhum sacrifício seria aceito.

Essa realeza semi-religiosa e semi-política estabeleceu-se em todas as cidades, desde seu nascimento, sem esforços da parte dos reis, sem resistência da parte dos súditos. Na origem dos povos antigos não vemos as flutuações e lutas que assinalam o doloroso nascimento das sociedades modernas. Sabemos quanto tempo foi necessário, depois da queda do império romano, para que se reencontrassem as regras de uma sociedade regular. A Europa viu durante séculos, princípios opostos disputando o governo dos povos, e os povos às vezes recusando qualquer organização social. Tal espetáculo não se vê nem na antiga Grécia, nem na antiga Itália; sua história não se inicia por conflitos; as revoluções somente apareceram no fim. Entre essas populações a sociedade formou-se lentamente, gradualmente, longamente, passando da família à tribo, e da tribo à cidade, mas sem choques, sem lutas. A realeza estabeleceu-se naturalmente, primeiro na família, depois na cidade. Não foi imaginada pela ambição de alguns, mas nasceu de uma necessidade que era manifesta aos olhos de todos. Durante longos séculos ela foi pacífica, honrada e obedecida. Os reis não tinham necessidade de força material; não tinham exércitos nem finanças; mas, sustentados por crenças que tinham grande poder sobre a alma, sua autoridade era santa e inviolável.

Mais tarde, uma revolução, de que falaremos adiante, derrubou a realeza em todas as cidades. Mas, ao cair, ela não deixou nenhum ódio no coração dos homens. Esse desprezo mesclado de rancor, que ordinariamente se liga às grandezas abatidas, jamais a feriu. Embora decaída, o respeito e o afeto dos homens continuaram ligados à sua memória. Viu-se mesmo na Grécia algo que não é muito comum na história: nas cidades em que a família real não se extinguiu, não somente ela não foi expulsa, mas os próprios homens que a haviam derrubado do poder continuaram a honrá-la. Em Éfeso, em Marselha, em Cirene, a família real, privada do poder, continuou cercada pelo respeito dos povos, conservando até o título e as insígnias da realeza(7).

Os povos estabeleceram o regime republicano, mas o nome de rei, longe de se tornar injurioso, continuou a ser venerado. Costuma-se dizer que essa palavra era odiada e desprezada: grande erro! Os romanos aplicavam-na aos deuses em suas orações. Se os usurpadores jamais ousaram tomar esse título, não o fizeram porque era odioso, mas porque era sagrado(8). Na Grécia, a monarquia foi por muitas vezes restabelecida nas cidades; mas os novos monarcas jamais se julgaram com o direito de se chamarem reis, e se contentaram com a denominação de tiranos(9). O que constituía a diferença desses dois nomes não eram as maiores ou menores qualidades morais que se encontravam no soberano; não chamavam de rei um bom príncipe, e de tirano um mau; era principalmente a religião que os distinguia um do outro. Os reis primitivos haviam cumprido suas funções de sacerdotes, e recebiam sua autoridade do lar; os tiranos da época posterior não passavam de chefes políticos, e não deviam seu poder senão à força e à eleição.

CAPÍTULO X

O MAGISTRADO

 

A confusão da autoridade política e do sacerdócio na mesma pessoa não cessou com a realeza. A revolução, que estabeleceu o regime republicano, não dividiu funções cuja união parecia muito natural, e constituía então lei fundamental da sociedade humana. O magistrado que substituiu o rei foi, como ele, sacerdote e chefe político simultaneamente.

Às vezes esse magistrado anual conservava o título sagrado de rei(1). Em outros lugares, o nome de prítane, que lhe foi conservado, indicava sua principal função(2). Em outras cidades prevaleceu o título de arconte. Em Tebas, por exemplo, o primeiro magistrado era assim denominado, mas o que Plutarco diz dessa magistratura mostra que ela pouco diferia do sacerdócio. O arconte, enquanto estava no cargo, devia ostentar uma coroa(3), como convinha a um sacerdote; a religião proibia-lhe deixar crescer os cabelos e carregar objetos de ferro sobre sua pessoa, prescrições essas que o fazem assemelhar-se um pouco aos flâmines de Roma. A cidade de Platéias tinha também um arconte, e a religião dessa cidade ordenava que, durante sua magistratura, se vestisse de branco(4), isto é, da cor sagrada.

Os arcontes atenienses, no dia em que tomavam posse do cargo, subiam à acrópole com a cabeça coroada de mirto, e ofereciam sacrifício à divindade políada(5). Era também costume que no exercício de suas funções usassem uma coroa de folhas na cabeça(6). Ora, é certo que a coroa, que com o tempo se tornou e se conservou como insígnia do poder, não era então mais que um símbolo religioso, um sinal exterior, que acompanhava a oração e o sacrifício(7). Entre os nove arcontes, o que era chamado rei era antes de tudo chefe da religião; mas cada um de seus colegas também tinha alguma função sacerdotal a cumprir, algum sacrifício a oferecer aos deuses(8).

Os gregos tinham uma expressão geral para designar os magistrados; eles diziam oi en télei, que significa literalmente: aqueles que devem realizar o sacrifício(9) — velha expressão que indica a idéia que se fazia primitivamente do magistrado. Píndaro diz desses personagens que, pelas dádivas que fazem ao lar, asseguram a salvação da cidade.

Em Roma, o primeiro ato do cônsul era oferecer sacrifícios no foro. As vítimas eram conduzidas para a praça pública; quando o pontífice as declarava dignas de serem oferecidas, o cônsul as imolava com suas mãos, enquanto um arauto ordenava à multidão um silêncio religioso, e um tocador de flauta fazia ouvir a melodia sagrada(10). Poucos dias depois, o cônsul dirigia-se a Lavinium, de onde procediam os penates romanos, e oferecia novo sacrifício.

Quando examinamos com um pouco de atenção o caráter do magistrado entre os antigos, vemos como se assemelha pouco aos chefes de Estado das sociedades modernas. Sacerdócio, justiça e comando confundem-se em uma só pessoa. O magistrado representa a cidade, que é tanto uma associação religiosa quanto política. Tem nas suas mãos os auspícios, os ritos, as preces, a proteção dos deuses. O cônsul é algo mais que um homem; é o intermediário entre o homem e a divindade. À sua sorte está ligada a sorte de todos; é como que o gênio tutelar da cidade. A morte de um cônsul é funesta à república(11). Quando o cônsul Cláudio Nero abandona o exército para ir em socorro de seu colega, Tito Lívio nos mostra como Roma está alarmada com a sorte do exército; é que, privado do chefe, o exército ficava ao mesmo tempo privado da proteção celeste; com o cônsul partiram os auspícios, isto é, a religião e os deuses(12).

As demais magistraturas romanas, que foram, de algum modo, membros sucessivamente destacados do consulado, reuniam como ele atribuições sacerdotais e políticas. Em determinados dias, via-se o censor, com a coroa na cabeça, oferecer sacrifício em nome da cidade, e ferir a vítima com suas mãos. Os pretores, os edis curuis presidiam às festas religiosas(13). Não havia magistrado que não realizasse algum ato sagrado, porque, no pensamento dos antigos, toda autoridade devia ser de algum modo religiosa. Os tribunos da plebe eram os únicos que não ofereciam sacrifícios, e por isso não eram considerados verdadeiros magistrados. Veremos mais adiante que sua autoridade era de natureza absolutamente excepcional.

O caráter sacerdotal que era inerente ao magistrado mostra-se sobretudo na maneira pela qual era eleito. Aos olhos dos antigos os sufrágios dos homens não pareciam suficientes para eleger o chefe da cidade. Enquanto durou a realeza, parecia natural que esse chefe fosse designado pelo nascimento, em virtude da lei religiosa que prescrevia que o filho sucedesse ao pai em todo sacerdócio; o nascimento parecia revelar satisfatoriamente a vontade dos deuses. Quando as revoluções suprimiram a realeza por toda parte, os homens pareciam procurar, para suprir ao nascimento, um modo de eleição que os deuses não pudessem desaprovar. Os atenienses, como muitos dos povos gregos, não viram melhor meio que a escolha por sorteio. Mas importa que não se faça idéia falsa a respeito desse processo, que se transformou em motivo de acusação para a democracia ateniense, e para isso é necessário que penetremos no pensamento dos antigos. Para eles o sorteio não era acaso: era a revelação da vontade divina. Assim como os templos tinham recursos para adivinhar os segredos divinos, assim a cidade ia ao templo para escolher seu magistrado. Os antigos estavam persuadidos de que os deuses designavam o mais digno, fazendo sair seu nome da urna. Platão exprimia o pensamento dos antigos quando afirmava: “O homem designado pela sorte, nós dizemos que é caro à divindade, e achamos justo que ele governe. Para todas as magistraturas que diziam respeito às coisas sagradas, deixando à divindade a escolha dos que lhe são agradáveis, confiamos na sorte.” — A cidade julgava assim receber os magistrados dos deuses(14).

No fundo, e sob formalidades diferentes, as coisas se passavam do mesmo modo em Roma. A designação do cônsul não cabia aos homens. A vontade ou o capricho do povo não podia criar legitimamente um magistrado. Eis, portanto, como se escolhia um cônsul. O magistrado em exercício, isto é, um homem já na posse do caráter sagrado e dos auspícios, indicava entre os dias fastos aquele em que o cônsul devia ser nomeado. Durante a noite precedente, ele velava, ao ar livre, com os olhos fixos no céu, observando os sinais enviados pelos deuses, ao mesmo tempo em que pronunciava mentalmente o nome de alguns candidatos à magistratura. Se os presságios fossem favoráveis, era sinal de que os deuses aprovavam os candidatos. No dia seguinte, o povo se reunia no campo de Marte; a mesma pessoa que havia consultado os deuses presidia à assembléia. Dizia em voz alta o nome dos candidatos, sobre os quais tomara os auspícios; se entre os que pediam o consulado encontrava-se alguém para quem os auspícios não fossem favoráveis, ele omitia seu nome. O povo não votava senão nos nomes pronunciados pelo presidente(15). Se o presidente não nomeava senão dois candidatos, o povo tinha que votar neles necessariamente; se nomeava três, o povo escolhia entre eles. A assembléia nunca podia votar em outras pessoas além das designadas pelo presidente, porque os auspícios haviam sido favoráveis somente para eles, e o assentimento dos deuses estava assegurado(16).

Esse modo de eleição, escrupulosamente observado nos primeiros séculos da república, explica alguns traços da história romana, que podem surpreender-nos à primeira vista. Vemos, por exemplo, muito freqüentemente, que o povo é quase unânime em querer elevar dois homens ao consulado, sem contudo poder fazê-lo; isso porque o presidente não interrogou os auspícios sobre ambos, ou porque os auspícios não se mostraram favoráveis. Pelo contrário, muitas vezes vemos o povo nomear como cônsules dois homens que detesta(17), e isso porque o presidente não pronunciou senão dois nomes. Era inevitável votar neles, porque o voto não se exprimia pelo sim ou pelo não: cada sufrágio devia conter dois nomes próprios, sem que fosse possível escrever outros que não os dos designados. O povo, a quem se apresentam candidatos que lhe são odiosos, pode expressar sua cólera retirando-se sem votar; sempre ficarão no recinto cidadãos suficientes para a votação(18).

Por aí se vê qual era a autoridade do presidente dos comícios, e não nos admiraremos mais da expressão consagrada creat consules, que se aplicava, não ao povo, mas ao presidente dos comícios. Era dele, e não do povo que se podia dizer: Ele cria os cônsules — porque era ele que descobria a vontade dos deuses. Se o presidente não criava os cônsules, os deuses os criavam por seu intermédio. O poder do povo apenas ratificava a eleição, ou, quando muito, não ia além da escolha entre três ou quatro nomes, quando os auspícios se mostravam igualmente favoráveis a três ou quatro candidatos.

É fora de dúvida que essa maneira de proceder foi muito vantajosa à aristocracia romana; mas estaremos enganados se quisermos ver em tudo isso simples artimanha previamente imaginada, o que não se pode conceber, pudesse existir nos séculos em que se acreditava em tal religião. Politicamente, nos primeiros tempos, isso seria inútil, porque os patrícios de então tinham a maioria dos votos, e qualquer ardil podia voltar-se contra eles, investindo um só homem de um poder exorbitante. A única explicação razoável para esses costumes, ou antes, esses ritos de eleição, é que todos acreditavam sinceramente que a escolha do magistrado não cabia ao povo, mas aos deuses. O homem que ia dispor da religião e da fortuna da cidade devia ser revelado pela voz divina.

A primeira regra para a eleição de um magistrado era a dada por Cícero: “Que seja nomeado de acordo com os ritos(19).” — Se, muitos meses depois, o senado viesse a saber que algum rito havia sido negligenciado ou mal observado, o senado ordenava aos cônsules que abdicassem, e eles obedeciam. Os exemplos são bastante numerosos; e se, por dois ou três dentre eles, nos é permitido supor que o senado quis desembaraçar-se de um cônsul inábil ou incapaz, a maior parte das vezes, pelo contrário, não se pode pensar em outro motivo que o escrúpulo religioso.

É verdade que, quando a sorte, em Atenas, ou os auspícios, em Roma, designavam o arconte ou o cônsul, havia uma espécie de prova, pela qual se examinava o mérito do novo eleito(20). Mas essa mesma prova serve para nos mostrar o que a cidade desejava encontrar no magistrado; ela não procurava o homem mais corajoso para a guerra, o mais hábil e o mais justo na paz, mas o mais amado pelos deuses. Com efeito, o senado ateniense exigia do novo eleito que possuísse um deus doméstico(21), fizesse parte de uma fratria, possuísse um túmulo de família, e cumprisse todos os seus deveres para com os mortos(22), Por que todas essas perguntas? Porque o que não tinha culto familiar não devia tomar parte no culto nacional, e não estava apto a oferecer sacrifícios em nome da cidade. Aquele que negligenciava o culto de seus mortos estava exposto à sua temível ira, e era perseguido por inimigos invisíveis. A cidade seria bastante temerária em confiar sua fortuna a semelhante homem. Ela queria que o novo magistrado, segundo expressão de Platão, fosse de uma família pura(23). Isso porque, se um de seus antepassados houvesse cometido algum ato que ofendesse à religião, o lar familiar ficava manchado para sempre, e os descendentes eram detestados pelos deuses. Tais eram as principais perguntas que se faziam a quem desejava ser magistrado. Parece que não se preocupavam nem com o caráter, nem com a inteligência do candidato. Cuidavam, sobretudo, de que este fosse apto a desempenhar suas funções sacerdotais, e que a religião da cidade não ficasse comprometida em suas mãos.

Essa espécie de exame parece que também esteve em uso em Roma. É verdade que não temos informação alguma a respeito das perguntas que o cônsul devia responder; mas sabemos, pelo menos, que esse exame era feito pelos pontífices, e podemos muito bem acreditar que não dizia respeito senão à aptidão religiosa do magistrado(24).

CAPÍTULO XI

A LEI

 

Entre os gregos, entre os romanos, como entre os hindus, a lei era a princípio parte da religião. Os antigos códigos das cidades eram um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de preces, ao mesmo tempo que de disposições legislativas. As regras do direito de propriedade e do direito de sucessão estavam dispersas no meio de regras relativas aos sacrifícios, à sepultura e ao culto dos mortos.

O que nos restou das mais antigas leis de Roma, chamadas leis reais, aplica-se tanto ao culto como às relações da vida civil. Uma delas proibia à mulher culpada aproximar-se dos altares; outra proibia certos alimentos nos banquetes sagrados; uma terceira mencionava as cerimônias religiosas que um general vencedor devia celebrar ao entrar na cidade. O código das Doze Tábuas, embora mais recente, continha ainda prescrições minuciosas a respeito dos ritos religiosos da sepultura. A obra de Sólon era ao mesmo tempo código, constituição e ritual; a ordem dos sacrifícios e o preço das vítimas eram por ele regulamentados, assim como os ritos das núpcias e o culto dos mortos.

Cícero, em seu tratado das leis, traça o plano de uma legislação que não é de todo imaginária. Pelo fundo como pela forma de seu código, ele imita os antigos legisladores. Ora, eis as primeiras leis que Platão escreve: “Que ninguém se aproxime dos deuses com as mãos impuras; — que se cuide dos templos dos pais e da morada dos lares domésticos; — que os sacerdotes não usem nos banquetes fúnebres senão os alimentos prescritos; — que se preste aos deuses manes o culto que lhes é devido.” — Com certeza o filósofo romano pouco se preocupava com essa velha religião dos lares e dos manes, mas traçava um código à imagem dos códigos antigos, e se julgava obrigado a nele inserir regras relativas ao culto.

Em Roma, era verdade reconhecida que não se podia ser bom pontífice sem conhecer o direito(1), e, reciprocamente, que não se podia conhecer o direito se não se conhecia a religião. Os pontífices foram, por muito tempo, os únicos jurisconsultos. Como não havia quase nenhum ato da vida que não tivesse relação com a religião, resultava daí que quase tudo estava submetido às decisões desses sacerdotes, considerados os únicos juízes competentes em um número infinito de processos. Todas as contestações relativas ao casamento, ao divórcio, aos direitos civis e religiosos das crianças, eram levadas a seu tribunal. Eles eram juízes tanto do incesto como do celibato. Como a adoção dizia respeito à religião, não podia ser feita senão com o consentimento do pontífice. Fazer testamento, era romper a ordem que a religião estabelecera para a sucessão dos bens e a transmissão do culto; assim também o testamento, em sua origem, devia ser autorizado pelo pontífice. Como os limites de qualquer propriedade eram marcados pela religião, quando dois vizinhos estavam em litígio, deviam queixar-se perante o pontífice ou diante dos sacerdotes chamados irmãos arvais(2). Eis por que os mesmos homens eram pontífices e jurisconsultos; direito e religião eram a mesma coisa(3).

Em Atenas, o primeiro arconte e o rei tinham quase as mesmas atribuições judiciárias que o pontífice romano, pois o arconte tinha a missão de velar pela perpetuidade dos cultos domésticos(4), e o rei, muito semelhante ao pontífice de Roma, tinha a direção suprema da religião da cidade. Assim, o primeiro julgava todas as questões que diziam respeito ao direito de família, e o segundo todos os crimes que atingiam a religião(5).

O processo de geração das leis antigas é muito claro. Não foram inventadas por um homem. Sólon, Licurgo, Minos, Numa podem ter escrito as leis de suas cidades, mas não as fizeram. Se entendemos por legislador um homem que cria um código pelo poder de seu gênio, que o impõe a outros homens, esse legislador não existiu jamais entre os antigos. Tampouco a lei antiga originou-se do voto do povo. O pensamento segundo o qual o número dos sufrágios podia promulgar uma lei não apareceu senão muito tarde nas cidades, e somente depois que duas revoluções as haviam transformado. Até então as leis apresentam-se como algo antigo, imutável e venerável. Tão velhas quanto a cidade, o fundador é que as estabelecia, ao mesmo tempo em que estabelecia o lar: moresque viris et moenia ponit. — O fundador as instituía, ao mesmo tempo em que instituía a religião. Mas ainda não podemos afirmar que ele as imaginasse por si mesmo. Qual é, portanto, o verdadeiro autor das leis? Quando falamos acima da organização da família, e das leis gregas ou romanas que regulamentavam a propriedade, a sucessão, o testamento, a adoção, observamos como essas leis correspondiam exatamente às crenças das gerações antigas Se colocarmos essas leis em confronto com a eqüidade natural, descobriremos muitas contradições, e parece assaz evidente que os antigos não as foram procurar na noção do direito absoluto e no sentimento de justiça. Mas ponhamo-las em confronto com o culto dos mortos e do lar, comparemo-las com as diversas prescrições dessa religião primitiva, e reconheceremos que estão em perfeito acordo com tudo isso.

O homem não esteve a estudar sua consciência dizendo: Isto é justo, isto não. Não foi assim que apareceu o direito antigo. Mas o homem acreditava que o lar sagrado, em virtude da lei religiosa, passava de pai para filho; daí resultou que a casa se tornou bem hereditário. O homem que havia sepultado o pai em seu campo acreditava que o espírito do morto tomava posse perpétua do mesmo, e exigia de sua posteridade um culto perpétuo; daí resultou que o campo, domínio do morto e lugar dos sacrifícios, tornou-se propriedade inalienável da família. A religião dizia: O filho, e não a filha, é o continuador do culto; e a lei diz, conformando-se à religião: O filho herda, a filha não; o sobrinho pela linha masculina herda; o sobrinho pela linha feminina, não. Eis como se fez a lei; ela se apresentou por si mesma, sem que a precisassem procurar. A lei era conseqüência direta e necessária da crença; era a própria religião aplicando-se às relações dos homens entre si.

Os antigos diziam que suas leis tinham vindo dos deuses. Os cretenses atribuíam sua legislação, não a Minos, mas a Júpiter; os lacedemônios acreditavam que seu legislador não era Licurgo, mas Apolo. Os romanos diziam que Numa havia escrito as leis de Roma sob ditado de uma das divindades mais poderosas da antiga Itália, a deusa Egéria. Os etruscos receberam suas leis do deus Tages. E em todas essas tradições há um pouco de verdade. O verdadeiro legislador dos antigos não foi o homem, mas a crença religiosa que o homem guardava dentro de si.

As leis por muito tempo constituíram coisa sagrada. Mesmo na época em que se passou a admitir que a vontade de um homem, ou os sufrágios de um povo, podiam fazer uma lei, era ainda necessário que a religião fosse consultada, ou que, ao menos, desse seu consentimento. Em Roma não se acreditava que a unanimidade de sufrágios fosse suficiente para estabelecer uma lei: era necessário ainda que a decisão do povo fosse aprovada pelos pontífices, e que os áugures atestassem que os deuses eram favoráveis à lei proposta(6). Uma ocasião em que os tribunos da plebe queriam fazer adotar uma lei por uma assembléia das tribos, um patrício lhes disse: “Que direito tendes para fazer uma lei nova, ou modificar as já existentes? Vós, que não possuis os auspícios, vós, que em vossas assembléias não realizais atos de religião, que tendes de comum com a religião, e todas as coisas sagradas, entre as quais se deve contar a lei(7)?”

Por aí podemos avaliar o respeito e acatamento que os antigos, por muito tempo, sentiram por suas leis. Eles não viam nelas obra humana. Sua origem era sagrada. O que afirma Platão, que obedecer às leis é obedecer aos deuses, não é simples expressão privada de sentido. Platão apenas exprime o pensamento grego quando, em Críton, mostra Sócrates dando a vida porque as leis assim o exigem. Antes de Sócrates, haviam escrito sobre os rochedos das Termópilas: “Viandante, vai dizer a Esparta que morremos aqui para obedecer às suas leis.” — A lei entre os antigos sempre foi santa; nos tempos da realeza ela era a rainha dos reis; nos tempos da república, ela foi a rainha dos povos. Desobedecer-lhe era cometer sacrilégio.

Em princípio, a lei era imutável, porque era divina. Deve-se notar que as leis nunca eram ab-rogadas. Podia-se fazer novas, mas as antigas sempre subsistiam, por maiores contradições que houvesse entre elas. O código de Drácon não foi abolido pelo de Sólon(8), nem as Leis Reais pelas das Doze Tábuas. A pedra onde a lei era gravada era inviolável; quando muito os menos escrupulosos julgavam-se no direito de interpretá-las a seu modo. Esse princípio foi a causa principal da grande confusão que se nota no direito antigo. Leis opostas, e de épocas diferentes, achavam-se reunidas, e todas deviam ser igualmente respeitadas. Em um discurso de Iseu, vemos dois homens disputando uma herança; cada um deles alega uma lei em seu favor; as duas leis são absolutamente contrárias e igualmente sagradas. É por isso que o código de Manu conserva a antiga lei que estabelece o direito de primogenitura, e traz uma outra que ordena a divisão dos bens em partes iguais entre os irmãos.

A lei antiga nunca teve considerandos. Por que haveria de tê-los? Ela não tinha necessidade de explicar suas razões; existe porque os deuses a fizeram. A lei não se discute, impõe-se; não é obra da autoridade; os homens lhe obedecem por que crêem nela.

Durante longas gerações as leis eram apenas orais; transmitiam-se de pai a filho, juntamente com a crença e as fórmulas de oração. Eram uma tradição sagrada que se perpetuava ao redor do lar da família ou do lar da cidade.

No dia em que começaram a ser escritas, consignaram-nas nos rituais, em meio de cerimônias e preces. Varrão cita uma lei antiga da cidade de Túsculo, e acrescenta que a leu nos livros sagrados dessa cidade(9). Dionísio de Halicarnasso, que havia consultado os documentos originais, disse que em Roma, antes da época dos decênviros, o pouco que havia de leis escritas encontrava-se nos livros sagrados(10). Mais tarde, a lei saiu dos rituais; escreveram-na à parte; mas continuou o costume de guardá-la em um templo, sob a custódia dos sacerdotes.

Escritas ou não, essas leis eram sempre formuladas em breves sentenças, que se podem comparar, pela fórmula, aos livros sagrados de Moisés, aos clocas dos livros de Manu. Parece até que as palavras da lei eram ritmadas(11). Aristóteles afirma que, antes que as leis fossem escritas, costumavam ser cantadas(12). A língua conservou alguns vestígios desse costume; os romanos chamavam as leis de carmina(13), versos, e os gregos diziam nómoi, cantos(14).

Esses antigos versos eram textos invariáveis. Mudar uma letra, deslocar uma palavra, alterar o ritmo, seria destruir a própria lei, destruindo a forma sagrada sob a qual fora revelada aos homens. A lei era como a oração, que não era agradável à divindade senão com a condição de ser recitada exatamente, tornando-se ímpia pela mudança de uma única palavra. No direito primitivo, o exterior, a letra é tudo; não é necessário procurar o sentido ou o espírito da lei. A lei não vale pelo princípio moral que contém, mas pelas palavras incluídas em sua fórmula. Sua força está nas palavras sagradas que a compõem.

Entre os antigos, e sobretudo em Roma, a idéia do direito era inseparável do emprego de algumas palavras sacramentais. Se, por exemplo, tratava-se de um contrato, um dos contratantes devia dizer: Dari spondes? — e o outro devia responder: Spondeo. — Se essas palavras não fossem pronunciadas, não havia contrato. Em vão o credor reclamaria o pagamento de uma dívida, porque o devedor nada lhe deve, pois o que obrigava o homem no direito antigo não era a consciência nem o sentimento de justiça, mas a fórmula sagrada. Essa fórmula, pronunciada entre dois homens, estabelecia entre ambos um vínculo de direito. Onde não houvesse fórmula não havia direito.

As formas estranhas do antigo processo romano não nos causarão surpresa, se considerarmos que o direito antigo era uma religião, a lei um texto sagrado, a justiça um conjunto de ritos. O requerente procede legalmente, de acordo com a lei: agit lege. Pelo enunciado da lei, apodera-se do adversário. Mas que tome cuidado; para ter a lei a seu favor é necessário conhecer os termos, e pronunciá-los com exatidão. Se diz uma palavra por outra, a lei deixa de existir, e não poderá defendê-lo. Gaio conta a história de um homem cujas vinhas haviam sido cortadas por um vizinho; o fato era comprovado; ele citou a lei, mas a lei dizia árvores, e ele disse vinhas; perdeu a causa(15).

O enunciado da lei não bastava. Era necessário ainda um conjunto de sinais exteriores, que eram como que os ritos da cerimônia religiosa chamada contrato, ou processo judicial. É por essa razão que em qualquer venda devia-se usar um pedaço de cobre e a balança; para comprar um objeto era necessário tocá-lo com a mão, manei patio; se havia disputa por uma propriedade, travava-se um combate fictício, manuum consertio. Daí as formas de alforria, de emancipação, de ações judiciais, e toda a pantomima dos processos.

Como a lei fazia parte da religião, participava também do caráter misterioso de toda a religião das cidades. As fórmulas da lei eram mantidas em segredo, como as do culto. Não eram reveladas ao estrangeiro, nem sequer aos plebeus. Não porque os patrícios haviam calculado auferir grande força com a posse exclusiva das leis; mas é que a lei, por sua origem e natureza, pareceu por muito tempo um mistério, no qual só podiam ser iniciados os que já o fossem no culto nacional e no culto doméstico.

A origem religiosa do direito antigo explica-nos ainda um dos principais caracteres desse direito. A religião era puramente civil, isto é, especial para cada cidade; e só poderia dar origem a um direito igualmente civil. Mas é importante distinguir o sentido dessa palavra entre os antigos. Quando diziam que o direito era civil, jus civile, nómoi politikói, eles não entendiam com isso apenas que cada cidade tinha seu código, como em nossos dias cada Estado tem o seu. Eles queriam dizer que suas leis não tinham valor ou ação senão entre os membros de uma mesma cidade. Não bastava morar em uma cidade para se estar sujeito às suas leis, e ser protegido por elas; era necessário ser cidadão. A lei não existia para o escravo, como não existia para o estrangeiro. Veremos mais adiante que o estrangeiro, domiciliado em uma cidade, não podia ser proprietário, nem herdeiro, nem testar, nem fazer contrato algum, nem aparecer diante dos tribunais ordinários dos cidadãos. Em Atenas, se o estrangeiro fosse credor de um cidadão, não podia processá-lo judicialmente pelo pagamento de uma dívida, pois a lei não reconhecia a validade de seu contrato.

Essas disposições do antigo direito eram de uma lógica perfeita. O direito não nascera da idéia de justiça, mas da religião, e não podia ser concebido fora dela. Para que houvesse relação de direito entre dois homens, era necessário que antes houvesse entre eles uma relação religiosa, isto é, que ambos rendessem culto ao mesmo lar, e oferecessem os mesmos sacrifícios. Quando não existia essa comunhão religiosa entre dois homens, parece que não podia existir nenhuma relação de direito. Ora, nem o escravo, nem o estrangeiro participavam da religião da cidade. O estrangeiro e o cidadão podiam viver lado a lado durante longos anos, sem que se pensasse em estabelecer um vínculo de direito entre os mesmos. O direito não era nada mais que uma das faces da religião. Sem comunidade de religião não podia haver comunidade de lei

CAPÍTULO XII

O CIDADÃO E O ESTRANGEIRO

 

O cidadão era reconhecido por sua participação no culto da cidade, e dessa participação provinham todos os seus direitos políticos e civis. Renunciar ao culto era renunciar aos direitos. Falamos acima dos banquetes públicos, que era a principal cerimônia do culto nacional. Ora, em Esparta, o que não o assistisse, mesmo por motivos alheios à sua vontade, deixava imediatamente de ser contado entre os cidadãos(1). Cada cidade exigia que todos os seus membros tomassem parte nos festejos de seu culto(2). Em Roma, para gozar de direitos políticos, era necessário assistir à cerimônia sagrada da lustração(3). O homem que não observasse essa regra, isto é, que não tomasse parte na oração comum e no sacrifício, deixava de ser cidadão até o lustro seguinte.

Se quisermos definir os cidadãos dos tempos antigos por seu atributo mais essencial, é necessário dizer-se que cidadão é o homem que observa a religião da cidade. É o que honra os mesmos deuses da cidade(4). É aquele para o qual o arconte ou o prítane oferece o sacrifício de cada dia(5), que tem o direito de se aproximar dos altares, que pode penetrar no recinto sagrado em que se realizam as assembléias, que assiste às festas, que acompanha as procissões e participa dos panegíricos, que se assenta nos banquetes sagrados, e recebe a parte que lhe cabe das vítimas. Assim esse homem, no dia em que foi inscrito no registro dos cidadãos, jurou que renderia culto aos deuses da cidade, e que combateria para defendê-los(6). Eis os termos usados: ser admitido entre os cidadãos dizia-se em grego pelas palavras meteínai tõn hierõn: entrar na partilha das coisas sagradas(7).

O estrangeiro, pelo contrário, é o que não tem acesso ao culto, aquele a quem os deuses da cidade não protegem, e que não tem nem mesmo o direito de invocá-los, porque os deuses nacionais não queriam receber preces ou dádivas senão dos cidadãos; eles repelem o estrangeiro; a entrada de seus templos lhes é proibida, e sua presença durante as cerimônias de um sacrifício era considerada sacrílega. Um testemunho desse antigo sentimento de repulsa foi-nos conservado em um dos principais ritos do culto romano: o pontífice, quando sacrifica ao ar livre, deve velar a cabeça, “para que, diante do fogo sagrado, no ato religioso que é oferecido aos deuses nacionais, não apareça aos olhos do pontífice o rosto de algum estrangeiro, o que perturbaria os auspícios(8).” — Um objeto sagrado que caísse momentaneamente nas mãos de um estrangeiro tomava-se imediatamente profano, e não podia recuperar seu caráter religioso senão mediante cerimônia expiatória(9). Se o inimigo se havia apoderado de uma cidade, e os cidadãos conseguiam reconquistá-la, era necessário antes de mais nada que os templos fossem purificados, e todos os lares apagados e renovados: pois estavam manchados pelo contato com estrangeiros(10).

É assim que a religião estabelecia entre o cidadão e o estrangeiro uma distinção profunda e indelével(11). Essa mesma religião, enquanto exerceu poder sobre as almas, proibiu que se concedesse aos estrangeiros o direito de cidadania. Nos tempos de Heródoto, Esparta ainda não o havia concedido a ninguém, com exceção de um adivinho; mas para isso foi ainda necessária a ordem formal de um oráculo(12). Atenas concedeu-o algumas vezes, mas com que precauções! Era necessário, em primeiro lugar, que o povo reunido votasse pela admissão do estrangeiro; e isso ainda não era nada: era necessário ainda que, nove dias depois, uma segunda assembléia votasse no mesmo sentido no escrutínio secreto, e que houvesse pelo menos seis mil sufrágios favoráveis, cifra que parecerá enorme, se considerarmos que muito raramente uma assembléia ateniense reunia esse número de cidadãos. Enfim, qualquer um entre os atenienses podia opor uma espécie de veto, atacar o decreto diante dos tribunais, como contrário às velhas leis, e fazê-lo anular. Não havia, certamente, nenhum ato público que o legislador cercasse de tantas dificuldades e precauções como o de conferir a um estrangeiro o direito de cidadão, o que talvez não acontecesse nem mesmo para declarar guerra ou promulgar novas leis. Qual a razão para se oporem tantos obstáculos ao estrangeiro que desejava ser cidadão? Por certo, não se temia que nas assembléias políticas seu voto fizesse pender a balança. Demóstenes nos declara o verdadeiro motivo e o verdadeiro pensamento dos atenienses: “É que se deve pensar nos deuses, e conservar a pureza dos sacrifícios.” — Excluir o estrangeiro era “velar pelas cerimônias sagradas”. Admitir um estrangeiro entre os cidadãos era “dar-lhe direito de participar da religião e dos sacrifícios(13).” — Ora. para semelhante ato, o povo não se sentia inteiramente livre, e era assaltado por um escrúpulo religioso, porque sabia que os deuses nacionais eram inclinados a repelir o estrangeiro, e que os sacrifícios talvez seriam alterados pela sua presença. Facultar o direito de cidade a um estrangeiro era verdadeira violação dos princípios fundamentais do culto nacional, e é por isso que a cidade, a princípio, se mostrou tão avara. Ainda devemos notar que o homem tão custosamente admitido como cidadão não podia ser nem arconte, nem sacerdote. A cidade permitia que assistisse ao culto, mas presidi-lo já seria demais.

Ninguém podia tornar-se cidadão ateniense quando cidadão de outra cidade(14). Porque nesse caso havia impossibilidade religiosa em se ser simultaneamente membro de duas cidades, como acontecia quando se tratava de duas famílias. Ninguém podia pertencer a duas religiões ao mesmo tempo.

A participação ao culto, conseqüentemente, dava outros direitos. Como o cidadão podia assistir ao sacrifício que precedia às assembléias, também podia votar, Como podia oferecer sacrifícios em nome da cidade, também podia ser prítane ou arconte. Adotando a religião da cidade, podia invocar a lei, e cumprir todos os ritos do processo.

O estrangeiro, pelo contrário, não tendo nenhuma parte na religião, não tinha direito algum. Se entrava no recinto sagrado, que o sacerdote traçara para a assembléia, era punido com a morte. As leis da cidade não existiam para ele. Se cometesse algum crime, era tratado como escravo e punido sem processo, pois a cidade não lhe devia nenhuma justiça(15). Quando se sentiu a necessidade de uma justiça para o estrangeiro, foi necessário estabelecer um tribunal de exceção. Roma tinha um pretor para julgar o estrangeiro (praetor peregrinus). Em Atenas o juiz dos estrangeiros era o polemarco, isto é, o mesmo magistrado encarregado das guerras e de todas as relações como o inimigo(16).

Nem em Roma, nem em Atenas o estrangeiro podia ser proprietário(17). Não podia contrair matrimônio, ou, pelo menos, seu casamento não era reconhecido; os filhos nascidos da união de um cidadão com uma estrangeira eram considerados bastardos(18). Não podia firmar contratos com cidadãos, ou, pelo menos a lei não lhes dava nenhum valor. A princípio, não teve o direito de exercer o comércio(19). A lei romana proibia-lhe herdar de um cidadão, e mesmo um cidadão herdar de um estrangeiro(20). Levava-se tão longe o rigor desse princípio que, se um estrangeiro obtinha o direito de cidadania romana, sem que seu filho, nascido antes dessa época, gozasse do mesmo favor, o filho tornava-se estranho aos olhos do pai, e não podia herdar(21). A distinção entre cidadão e estrangeiro era mais forte que o vínculo natural entre pai e filho.

Pareceria à primeira vista que os antigos se esforçavam por estabelecer um sistema de afronta contra o estrangeiro, mas isso não é verdade. Atenas e Roma, pelo contrário, acolhiam-nos bem, e os protegiam, por razões comerciais ou políticas. Mas sua boa vontade, e mesmo seu interesse não podiam abolir as antigas leis que a religião havia estabelecido. Essa religião não permitia que o estrangeiro se tornasse proprietário, porque ele não podia possuir parte do solo religioso da cidade. Ela não permitia nem ao cidadão herdar do estrangeiro, nem ao estrangeiro herdar do cidadão, porque toda transmissão de bens acarretava a transmissão do culto, e era tão impossível para o cidadão obedecer ao culto do estrangeiro como ao estrangeiro obedecer ao culto do cidadão.

Podia-se acolher o estrangeiro, velar por ele, até mesmo estimá-lo, se fosse rico ou honrado; mas não se podia dividir com ele a religião ou o direito. O escravo, de certo modo, era mais bem tratado, porque, sendo membro de uma família, de cujo culto participava, estava ligado à cidade por intermédio do dono; os deuses o protegiam. Por isso a religião romana afirmava que o túmulo do escravo era sagrado, e que o mesmo não acontecia com o do estrangeiro(22).

Para que o estrangeiro fosse considerado algo aos olhos da lei, para que pudesse exercer o comércio, fazer contratos, usufruir com segurança de seus bens, para que a justiça da cidade o pudesse defender eficazmente, era necessário que se tornasse cliente de um cidadão. Roma e Atenas exigiam que todo estrangeiro adotasse um patrono(23). Fazendo parte da clientela, e sob a dependência de um cidadão, o estrangeiro ligava-se por esse intermediário à cidade. Participava então de alguns dos benefícios do direito civil, e a proteção das leis lhe era concedida. As antigas cidades puniam a maior parte das faltas cometidas contra as mesmas negando ao culpado sua qualidade de cidadão. Essa pena chamava-se atimía(24). O homem assim castigado não podia mais ser investido de qualquer magistratura, nem fazer parte dos tribunais, nem falar nas assembléias. Ao mesmo tempo a religião lhe era interditada; a sentença dizia “que ele não entraria mais em nenhum dos santuários da cidade, que não teria mais o direito de se coroar de flores nos dias em que os cidadãos se coroavam, que não poria mais os pés no recinto que a água lustral e o sangue das vítimas traçavam no ágora(25).” Os deuses da cidade não existiam mais para ele. Ele perdia ao mesmo tempo todos os direitos civis; não comparecia mais diante dos tribunais, nem mesmo como testemunha; lesado, não lhe era permitido apresentar queixa; “podiam matá-lo impunemente”(26); as leis da cidade não o protegiam mais. Para ele não havia mais nem compra, nem venda, nem contrato de nenhuma espécie(27). Tornara-se estrangeiro na própria cidade. Direitos políticos, religião, direitos civis, tudo isso lhe era tirado de uma só vez. Todo esse conjunto estava compreendido no título de cidadão, e perdia-se com o mesmo.

CAPÍTULO XIII

O PATRIOTISMO. O EXÍLIO

 

A palavra pátria entre os antigos significa a terra dos pais, terra patria. A pátria de cada homem era a porção do solo que sua religião doméstica ou nacional havia santificado; a terra onde estavam depositados os ossos dos antepassados, a terra ocupada por suas almas. A pequena pátria era o círculo da família, com seu túmulo e seu lar. A grande pátria era a cidade, com seu pritaneu e seus heróis, com seu recinto sagrado e seu território marcado pela religião. “Terra sagrada da pátria” — diziam os gregos. Não era essa uma expressão vazia. Aquela terra era verdadeiramente sagrada para o homem, porque era habitada por seus deuses. Estado, cidade, pátria, essas palavras não eram uma abstração, como entre os modernos; elas representavam realmente todo um conjunto de divindades locais, com um culto cotidiano, e crenças que tinham grande poder sobre as almas.

Desse modo é que se explica o patriotismo dos antigos, sentimento enérgico que era para eles a virtude suprema, e para a qual tendiam todas as demais. Tudo o que o homem podia ter de mais caro confundia-se com a pátria. Nela encontrava seu bem, sua segurança, seu direito, sua fé, seu deus. Perdendo-a, perdia tudo. Era quase impossível que o interesse privado estivesse em desacordo com o interesse público. Platão diz: É a pátria que nos gera, que nos alimenta, que nos educa. — E Sófocles: É a pátria que nos conserva.

A pátria não foi para o homem somente domicílio. Transpondo suas santas muralhas, ultrapassando os limites sagrados do território, ele não encontra mais nem religião, nem vínculo social de espécie alguma. Por toda parte, fora da pátria, ele está excluído da vida regular e do direito; por toda parte está sem deus, e fora da vida moral. Somente na pátria ele tem sua dignidade de homem e seus deveres. O cidadão não pode ser homem em outro lugar.

A pátria conserva o homem ligado por um vínculo santo. Deve amá-la como se ama uma religião, obedecer-lhe como se obedece a um Deus. “É necessário que se dê a ela inteiramente, entregando-lhe tudo, dedicando-lhe tudo.” — Deve amá-la gloriosa ou obscura, próspera ou desgraçada. Deve amá-la por seus benefícios, e amá-la ainda por seus rigores. Sócrates, condenado por ela sem razão, não deve amá-la menos por isso. É necessário amá-la, como Abraão amava a seu Deus, até sacrificar-lhe o filho. É necessário, sobretudo, saber morrer por ela. O grego ou o romano não morre apenas por devotamento a um homem, ou por questões de honra, mas deve sua vida à pátria, porque, se a pátria é atacada, a religião é a atacada. O cidadão combate verdadeiramente por seus altares, por seu lar: pro aris et focis(1); porque, se o inimigo se apoderar de sua cidade, seus altares serão derrubados, seus lares extintos, seus sepulcros profanados, seus deuses destruídos, seu culto, esquecido. O amor da pátria é a piedade dos antigos.

A posse da pátria devia ser muito preciosa, porque os antigos não imaginavam talvez castigo mais cruel do que privar alguém do solo pátrio. A punição ordinária dos grandes crimes era o exílio.

O exílio não era apenas a proibição de permanência na cidade e o afastamento da pátria: era ao mesmo tempo a interdição do culto, e continha o que os modernos chamam de excomunhão. Exilar um homem, era, de acordo com a fórmula usada pelos romanos, vedar o uso do fogo e da água(2). Pelo fogo, devemos entender o fogo dos sacrifícios; pela água, a água lustral(3). O exílio, portanto, colocava um homem fora da religião. Também em Esparta, quando o cidadão era privado de seus direitos, o fogo lhe era vedado(4). Um poeta ateniense põe na boca de um de seus personagens a fórmula terrível que feria o acusado: “Que ele fuja, dizia a sentença, e que jamais se aproxime dos templos. Que nenhum cidadão lhe dirija a palavra, nem o receba; que ninguém o admita em suas orações, nem em seus sacrifícios; que ninguém lhe apresente a água lustral(5).” Toda casa ficava manchada por sua presença. O homem que o acolhesse tornava-se impuro com seu contacto. “Quem comer ou beber em sua companhia, ou quem o tocar — dizia a lei — deverá purificar-se(6). Sob o golpe dessa excomunhão, o exilado não podia tomar parte em nenhuma cerimônia religiosa; não havia mais culto, não havia mais banquetes sagrados, não havia mais preces; estava deserdado de sua parte de religião.

É preciso que consideremos que, para os antigos, Deus não estava em toda parte. Se tinham alguma vaga idéia de uma divindade universal, essa não era considerada como sua providência, a que eles invocavam. Os deuses de cada homem eram os que moravam em sua casa, em seu cantão, em sua cidade. O exilado, deixando a pátria, deixava também seus deuses. Não via em nenhum lugar religião que o pudesse consolar e proteger; não sentia mais a providência velando por ele; a felicidade de rezar lhe era negada. Tudo o que pudesse satisfazer às necessidades de sua alma estava longe dele.

Ora, a religião era a fonte de onde emanavam os direitos civis e políticos. O exilado, portanto, perdia tudo ao perder a religião da pátria. Excluído do culto da cidade, via-se privado de um só golpe de seu culto doméstico, e devia apagar o fogo sagrado(7). Não tinha mais direito de propriedade, e todos seus bens eram confiscados em proveito dos deuses ou do Estado(8). Não possuindo mais culto, não tinha mais família; deixava de ser esposo e pai. Seus filhos não estavam mais sob sua autoridade(9), sua mulher deixava de ser sua, e podia imediatamente casar-se com outro(10). Vede, por exemplo, Régulo: prisioneiro do inimigo, a lei romana considera-o exilado; se o senado lhe pede sua opinião, ele recusa dar-lha, porque o exilado não é mais senador; se sua mulher e filhos correm até ele, ele recusa seus abraços, porque para o exilado não há mais filhos nem esposa:

Fertur pudicae conjugis osculum
Parvosque natos, ut capitis minor
A se removisse
(11).

Desse modo, o exilado perdia, com a religião e direitos de cidadania, a religião e os direitos de família; não tem mais lar, nem mulher, nem filhos. Morto, não pode ser enterrado nem no solo da cidade, nem no túmulo de seus antepassados(12), porque se tornou estrangeiro.

É surpreendente ver como as repúblicas antigas permitiam quase sempre que o culpado escapasse à morte pela fuga. O exílio não parecia suplício mais suave que a morte(13). Os jurisconsultos romanos chamavam-no de pena capital.

CAPÍTULO XIV

O ESPIRITO MUNICIPAL

 

O que vimos até aqui sobre as antigas instituições, e, sobretudo, a respeito das antigas crenças, pode dar-nos idéia da profunda distinção que sempre existia entre duas cidades. Por mais vizinhas que fossem, elas formavam sempre duas sociedades completamente separadas. Entre elas havia bem mais que a distância que hoje separam duas cidades, mais que a fronteira que divide dois Estados; os deuses não eram os mesmos, nem as cerimônias, nem as preces. O culto de uma cidade era proibido aos habitantes da cidade vizinha. Acreditava-se que os deuses de uma cidade rejeitavam as homenagens e as preces de quem quer que não fosse seu concidadão.

É verdade que as velhas crenças com o tempo se modificaram, se abrandaram; mas elas estavam em seu pleno vigor na época em que as sociedades se haviam formado, e seus vestígios ficaram fortemente marcados.

Compreendemos facilmente duas coisas: em primeiro lugar, que essa religião, própria de cada cidade, deve tê-la constituído de maneira muito forte, e quase indestrutível; com efeito, é maravilhoso constatar-se como essa organização social, apesar de seus defeitos, e de todas as suas possibilidades de ruína, tenha durado tanto tempo; em segundo lugar, que o efeito dessa religião deve ter sido, durante longos séculos, tornar impossível o estabelecimento de qualquer outra forma de vida social que não a cidade.

Cada cidade, por exigência da própria religião, devia ser absolutamente independente. Era necessário que cada uma tivesse seu código particular, porque cada uma tinha sua religião, e a lei era o resultado da religião. Cada uma devia ter sua justiça soberana, e não podia haver nenhuma justiça superior à da cidade. Cada uma tinha suas festas religiosas e seu calendário; os meses e o ano não podiam ser idênticos em duas cidades, porque a série dos atos religiosos era diferente. Cada cidade tinha sua moeda particular, que, nos primeiros tempos, era ordinariamente marcada por seu emblema religioso. Cada cidade tinha medidas e pesos próprios. Não se admitia nada comum entre duas cidades. A linha de demarcação era tão profunda, que apenas se imaginava que o casamento fosse permitido entre habitantes de duas cidades diferentes. Tal união sempre pareceu estranha, e foi por muito tempo considerada ilegítima. A legislação de Roma e a de Atenas repugnam visivelmente admiti-la. Quase em toda parte as crianças que nasciam de tais casamentos eram confundidos com os bastardos, e privados dos direitos de cidadão(1). para que o casamento fosse legítimo entre os habitantes de duas cidades, era necessário que entre elas houvesse uma convenção particular (jus conubii, epigamia)(2).

Cada cidade tinha ao redor de seu território uma de limites sagrados. Era o horizonte de sua religião nacional e de seus deuses. Além desses limites outros deuses reinavam, outros cultos eram praticados(3).

O caráter mais evidente da história da Grécia e da Itália, antes da conquista de Roma, é a excessiva divisão e o espírito de isolamento de cada cidade. A Grécia jamais conseguiu formar um só Estado; nem as cidades latinas nem as etruscas, nem as tribos samnitas jamais conseguiram formar um corpo compacto. Atribuiu-se a incurável divisão dos gregos à natureza de região, afirmando-se que as montanhas que a entrecortam estabeleciam entre os homens linhas naturais de demarcação. Mas não havia montanhas entre Tebas e Platéias, entre Argos e Esparta, entre Síbaris e Crotona. E também não as havia entre as cidades do Lácio, nem entre as doze cidades da Etrúria. A natureza física, sem dúvida, tem certa influência sobre a história dos povos, mas as crenças do homem influíram com muito mais força. Entre duas cidades vizinhas havia algo mais intransponível que uma montanha: era a série de limites sagrados, a diferença de cultos, a barreira que cada cidade levantava entre o estrangeiro e seus deuses. Ela proibia ao estrangeiro a entrada nos templos de suas divindades políadas; exigindo das mesmas que odiassem e combatessem o estrangeiro(4).

Por esse motivo, os antigos não puderam estabelecer nem mesmo conceber nenhuma outra organização que não fosse a cidade. Nem os gregos, nem os italianos, nem os próprios romanos, nunca pensaram, durante muito tempo, que várias cidades se pudessem unir, e viver em igualdade de condições sob um mesmo governo. Entre duas cidades bem podia haver aliança, associação momentânea, visando algum proveito ou para evitar algum perigo, mas jamais havia união completa, porque a religião fazia de cada cidade um corpo que não se podia agregar a nenhum outro. O isolamento era a lei da cidade.

Com as crenças e os costumes religiosos que vimos, de que modo várias cidades poderiam fundir-se em um só Estado? Não se compreendia a associação humana, e esta não parecia regular senão se baseasse sobre a religião. O símbolo dessa associação devia ser um banquete sagrado realizado em comum. Alguns milhares de cidadãos podiam muito bem, a rigor, reunir-se ao redor de um mesmo pritaneu, recitar a mesma oração, e participar das mesmas iguarias sagradas. Mas tentemos, com esses costumes, fazer um só estado de toda a Grécia! Como realizar os banquetes públicos, e todas as cerimônias sagradas que deviam ser assistidas por todos os cidadãos? Onde situar-se-ia o pritaneu? Como fazer a lustração anual dos cidadãos? Que seria dos limites invioláveis que marcavam desde a origem o território da cidade, e que a separava para sempre do resto da região? Que fazer de todos os cultos locais, das divindades políadas, dos heróis que habitavam cada cantão? Atenas tem sobre suas terras o herói Édipo, inimigo de Tebas: como reunir Atenas e Tebas em um mesmo culto, e sob um mesmo governo?

Quando essas superstições se enfraqueceram — o que aconteceu muito tarde no espírito do povo — não havia mais tempo para estabelecer nova forma de Estado. A divisão estava consagrada pelo costume, pelo interesse, pelo ódio inveterado, pela lembrança das velhas lutas. Não se podia mais voltar sobre o passado.

Cada cidade cuidava zelosamente de sua autonomia; ela assim chamava um conjunto que compreendia seu culto, seu direito, seu governo, toda sua independência religiosa e política.

Era mais fácil a uma cidade sujeitar-se a outra do que unir-se a ela. A vitória podia fazer de todos os habitantes de uma cidade conquistada outros tantos escravos; mas nunca concidadãos do vencedor. Confundir duas cidades em um só Estado, unir a população vencida à população vitoriosa, e associá-las sob o mesmo governo, é o que nunca se vê entre os antigos, com uma única exceção de que falaremos mais adiante. Se Esparta conquista a Messênia, não o faz para transformar espartanos e messênios em um só povo; ela expulsa ou escraviza os vencidos, e toma suas terras. Atenas faz o mesmo em relação a Salamina, a Egina e a Melos.

Levar os vencidos para a cidade dos vencedores era pensamento que não podia vir à cabeça de ninguém. A cidade possuía deuses, hinos, festas, leis, que constituíam seu patrimônio precioso, e cuidava para que os vencidos não participassem do mesmo. Nem mesmo tinha direito a isso: poderia Atenas admitir que o habitante de Egina entrasse no templo de Atenas políada? Ou que rendesse culto a Teseu? Ou que tomasse parte nos banquetes sagrados? Ou que cuidasse, como prítane, do fogo sagrado da cidade? A religião o proibia. Desse modo a população vencida da ilha de Egina não podia formar um mesmo Estado com a população de Atenas. Não tendo os mesmos deuses, eginos e atenienses não podiam ter as mesmas leis nem os mesmos magistrados.

Mas Atenas não poderia, ao menos, deixando de pé a cidade vencida, mandar magistrados que a governassem? Era absolutamente contrário ao espírito dos antigos que uma cidade fosse governada por um homem que não fosse cidadão da mesma. Com efeito, o magistrado devia ser ao mesmo tempo chefe religioso, e sua função principal era oferecer sacrifícios em nome da cidade. O estranho, que não tinha direito de oferecer sacrifícios, não podia, portanto, ser magistrado. Não podendo celebrar nenhuma função religiosa, ele não tinha aos olhos dos homens nenhuma autoridade regular. Esparta tentou introduzir nas cidades os seus harmostes; mas esses homens não eram magistrados, não julgavam, não compareciam às assembléias. Sem ter nenhuma relação regular com o povo das cidades, não puderam subsistir por muito tempo.

Resultava daí que todo vencedor ficava na alternativa ou de destruir a cidade vencida, e ocupar o território, ou de lhe deixar toda sua independência. Não havia meio-termo. Ou a cidade deixava de existir, ou permanecia como Estado soberano. Tendo culto próprio, ela devia ter seu governo; só podia perder um se perdesse o outro, e então deixava de existir.

Essa independência absoluta da cidade antiga não cessou senão quando as crenças nas quais se baseava desapareceram por completo. Depois que as idéias se transformaram, depois que muitas revoluções passaram sobre essas antigas sociedades, então chegou-se a conceber e a estabelecer um Estado maior, regido por outras regras. Mas para isso foi necessário que os homens descobrissem outros princípios e outro vínculo social, diferentes dos das antigas idades.

CAPÍTULO XV

RELAÇÕES ENTRE AS CIDADES. A GUERRA. A PAZ. A ALIANÇA DOS DEUSES

 

A religião, que exercia tão grande império sobre a vida interior da cidade, intervinha com igual autoridade em todas as relações que as cidades tinham entre si. É o que se pode ver observando como os homens daqueles tempos declaravam guerra, faziam as pazes e celebravam alianças.

Duas cidades eram duas associações religiosas que não tinham os mesmos deuses. Quando estavam em guerra, não eram apenas os homens que combatiam; os deuses também tomavam parte na luta. E não se julgue que isso seja mera ficção poética. Houve entre os antigos uma crença muito arraigada e viva, em virtude da qual cada exército carregava consigo seus deuses. Estavam convencidos que eles combatiam com os soldados, que os defendiam, e eram por eles protegidos. Lutando contra o inimigo, cada um julgava lutar também contra os deuses da outra cidade; era permitido detestar, injuriar, agredir os deuses estranhos; podiam até fazê-los prisioneiros.

Destarte a guerra tinha um aspecto estranho. Imaginemos dois pequenos exércitos armados enfrentando-se: cada um tem em seu meio suas estátuas, seu altar, suas insígnias, que são emblemas sagrados(1); cada um tem seus oráculos prometendo êxitos, seus áugures e adivinhos, que lhes asseguram vitória. Antes da batalha, cada soldado nos dois exércitos pensa e diz como este grego em Eurípides: “Os deuses que combatem conosco são mais fortes que os que combatem ao lado de nossos inimigos.” — Cada exército pronuncia contra o exército inimigo uma imprecação no gênero daquela cuja fórmula nos foi conservada por Macróbio: “Ó deuses! espalhai o medo e o terror entre nossos inimigos. Que esses homens, e todos os que habitam seus campos e cidades, sejam por vós privados da luz do sol. Que esta cidade e seus campos, suas cabeças e suas pessoas vos sejam sacrificadas(2).” — Dito isto, de ambos os lados combate-se com aquele furor selvagem inspirado pelo pensamento de se ter os deuses a seu lado, e de que se combate contra deuses estrangeiros. Não há misericórdia para com o inimigo; a guerra é implacável; a religião preside à luta e excita os combatentes. Não pode ali haver nenhuma regra superior que modere o desejo de matar; é permitido degolar os prisioneiros e acabar com os feridos.

Mesmo fora do campo de batalha não se tem idéia de nenhum dever, seja lá qual for, em relação ao inimigo. Não existem direitos para o estrangeiro, nunca, e com muito mais razão em tempo de guerra. A seu respeito não se deve distinguir o que é justo do que é injusto. Múcio Cévola, e todos os romanos, acreditavam que era belo matar um inimigo. O cônsul Márcio vangloriava-se publicamente de haver enganado o rei da Macedônia. Paulo Emílio vendeu como escravos cem mil epirotas, que se haviam entregue voluntariamente às suas mãos(3).

O lacedemônio Fébidas, em plena paz, apoderara-se da cidadela dos tebanos. Perguntaram a Agesilau a respeito da justiça dessa ação: “Examinai apenas se ela é útil — diz o rei — porque desde que uma ação é útil à pátria, é belo praticá-la.” — Eis o direito das gentes das cidades antigas. Outro rei de Esparta, Cleômenes, dizia que todo o mal se podia fazer aos inimigos era sempre justo aos olhos dos deuses e dos homens(4).

O vencedor podia usar sua vitória como melhor lhe agradasse. Nenhuma lei divina ou humana podia deter-lhes a vingança ou a cobiça. No dia em que Atenas decretou que todos os mitilenos, sem distinção de idade ou de sexo, deviam ser exterminados, não julgou ultrapassar seu direito; quando, no dia seguinte, anulou o decreto, e se contentou com matar a mil cidadãos, e confiscar todas as terras, Atenas julgou-se humana e indulgente. Depois da tomada de Platéias, os homens foram mortos, as mulheres vendidas, e ninguém acusou os vencedores de violação do direito(5).

Não se fazia guerra somente aos soldados, mas a toda a população: homens, mulheres, crianças, escravos. Não a faziam somente às criaturas humanas, mas aos campos e às messes. Queimavam casas, derrubavam árvores; a colheita do inimigo quase sempre era dedicada aos deuses infernais, e, conseqüentemente, queimada(6). Exterminavam os animais, e destruíam até as sementeiras, que iriam produzir no ano seguinte. Uma guerra podia fazer desaparecer de um só golpe o nome e a raça de todo um povo, e transformar uma região fértil em deserto. É em virtude desse direito de guerra que Roma estendeu a solidão a seu redor; do território onde os volscos tinham vinte e três cidades, ela fez os pântanos pontinos; as cinqüenta e três cidades do Lácio desapareceram; no Sâmnio, por muito tempo podiam ser reconhecidos os lugares por onde os exércitos romanos haviam passado, menos pelos vestígios de seus campos do que pela solidão que reinava nos arredores(7).

Quando o vencedor não exterminava os vencidos, tinha direito de suprimir sua cidade, isto é, de exterminar sua associação religiosa e política. Então os cultos se extinguiam, e os deuses eram esquecidos(8). Destruída a religião da cidade, desaparecia simultaneamente a religião de cada família. Os lares se apagavam. Com o culto caíam as leis, o direito civil, a família, a propriedade, tudo o que se apoiava na religião(9). Escutemos o vencido a quem se fez mercê da vida; obrigam-no a pronunciar a seguinte fórmula: “Dou minha pessoa, minha cidade, minha terra, a água que nela corre, meus deuses termos, meus templos, meu móveis e utensílios, todas as coisas que pertencem aos deuses, dou tudo ao povo romano(10).” — A partir desse momento os deuses, os templos, as casas, as terras, as pessoas, pertenciam ao vencedor. Diremos mais adiante que acontecia a tudo isso sob o domínio de Roma.

Para concluir um tratado de paz, era necessário um ato religioso. Já vemos na Ilíada “os arautos sagrados carregando as ofertas destinadas ao juramento dos deuses, isto é, cordeiros e vinho; o chefe do exército, colocando as mãos sobre a cabeça das vítimas, dirige-se aos deuses, e faz suas promessas; depois imola os cordeiros e faz a libação, enquanto o exército pronuncia esta fórmula de prece: “Ó deuses imortais! Fazei com que, assim como esta vítima foi ferida com o ferro, assim seja esmagada a cabeça do primeiro que quebrar seu juramento(11).” — Os mesmos ritos são encontrados em todo o decorrer da história grega. Ainda nos tempos de Tucídides concluiu-se um tratado por sacrifício. Os chefes do povo, com a mão sobre a vítima imolada(12), pronunciam uma fórmula de oração, obrigando-se perante os deuses. Cada povo invoca seus deuses particulares(13) e pronuncia a fórmula de juramento que lhe é própria(14). Essa oração e esse juramento feito aos deuses é que obrigam as partes contratantes. Os gregos não dizem: assinar um tratado; dizem: degolar a vítima do juramento: — órkia témnein — ou fazer a libação: spéndesthai; — e quando o historiador quer dar o nome daqueles que em linguagem moderna chamaríamos de signatários do tratado, diz: Eis os nomes daqueles que fizeram a libação(15).

Virgílio, que descreve com tão escrupulosa exatidão os costumes e ritos romanos, não se afasta muito de Homero quando este nos mostra como se faz um tratado: “Coloca-se entre os dois exércitos um lar, levanta-se um altar às divindades que lhes são comuns. Um sacerdote vestido de branco conduz a vítima; os dois chefes fazem a libação, invocam os deuses, e enunciam sua promessa; depois a vítima é sacrificada e as carnes são colocadas sobre a chama do altar(16).” — Tito Lívio é de notável clareza sobre esse ponto do direito público de Roma: “Um tratado não pode ser concluído sem os feciais e sem a realização dos ritos sacramentais, porque um tratado não é uma convenção, uma sponsio, como entre os homens: um tratado se conclui pelo enunciado de uma prece, precatio, onde se pede que o povo que faltar às condições que acaba de enunciar seja ferido pelos deuses como a vítima que acaba de ser sacrificada pelo fecial(17).”

Somente essa cerimônia religiosa dava às convenções internacionais caráter sagrado e inviolável. Todos conhecem a história das forcas caudinas. Um exército inteiro, por meio de seus cônsules, de seus questores, de seus tribunos e de seus centuriões, fizera uma convenção com os samnitas. Mas não houve nem vítima imolada, nem preces nem juramento perante os deuses. Assim, o senado julgou no direito de dizer que a convenção não tinha nenhum valor. Anulando-o, nenhum patrício, nenhum pontífice pensou sequer que estava cometendo um ato de má-fé.

Era opinião constante entre os antigos que cada homem não tinha obrigações senão para com seus deuses particulares. Devemos lembrar as palavras ditas por certo grego, cuja cidade adorava o herói Alabandos; dirigia-se a um homem de outra cidade, que adorava a Hércules: “Alabandos — dizia ele — é deus, e Hércules não o é(18).” Como semelhantes idéias era necessário que nos tratados de paz cada, cidade tomasse seus próprios deuses como testemunhas do juramento. “Fizemos um tratado e derramamos libações — diziam os plateanos aos espartanos — e tomamos por testemunhas, vós, os deuses de vossos pais, e nós, os deuses que habitam nossas terras (19).” Procurava-se também invocar, se possível, divindades comuns a duas cidades, jurando pelos deuses que são visíveis a todos: o sol, que a tudo ilumina, a terra, que a todos alimenta. Mas os deuses de cada cidade, e seus heróis protetores, eram muito mais importantes para os homens, e era necessário que os contratantes tomassem-nos como testemunhas, se queriam verdadeiramente obrigar-se pela religião.

Assim como durante a guerra os deuses misturavam-se aos combatentes, assim também deviam tomar parte nos tratados de paz. Estipulava-se, pois, que haveria aliança tanto entre os deuses como entre os homens das duas cidades. Às vezes para marcar essa aliança dos deuses, ambos os povos autorizavam-se mutuamente a assistir às suas festas sagradas(20). Outras vezes abriam reciprocamente seus templos, e faziam trocas de ritos religiosos. Roma estipulou um dia que o deus de Lanúvio protegeria de ali por diante os romanos, que teriam direito de dirigir-lhe orações e de entrar em seu templo(21). Muitas vezes cada uma das partes contratantes obrigava-se a render culto às divindades da outra. Assim os helenos, tendo concluído um tratado com os etólios, ofereceram, dali por diante, um sacrifício anual aos heróis dos aliados(22). Às vezes ainda duas cidades convencionavam que cada uma delas incluiria o nome da outra em suas orações(23).

Era freqüente, depois de uma aliança, o costume de representar por estátuas ou medalhas as divindades de ambas as cidades dando-se as mãos. É por isso que temos medalhas em que vemos unidos o Apolo de Mileto e o Gênio de Esmirna, a Palas dos sidianos e a Artêmis de Perga, o Apolo de Hierápolis e a Artêmis de Éfeso. Virgílio, falando de uma aliança entre a Trácia e os troianos, mostra os penates dos dois povos unidos e associados(24).

Esses estranhos costumes correspondiam perfeitamente à idéia que os antigos faziam dos deuses. Como cada cidade tinha os seus, parecia natural que esses deuses figurassem nos combates e nos tratados. A guerra e a paz entre duas cidades era a guerra ou a paz entre duas religiões. O direito das gentes entre os antigos por muito tempo baseou-se nesses princípios. Quando os deuses eram inimigos, havia guerra sem lei e sem piedade; quando eram amigos, os homens se uniam, e tinham o sentimento de deveres recíprocos. Supor que as divindades políadas de duas cidades tinham algum motivo para se aliarem, bastava para que ambas as cidades se aliassem. A primeira cidade com a qual Roma contratou amizade foi Cere, na Etrúria, e Tito Lívio nos diz o motivo dessa aliança: no desastre da invasão gaulesa, os deuses romanos haviam encontrado asilo em Cere, morando nessa cidade, onde receberam culto; um vínculo sagrado de hospitalidade formara-se então entre os deuses romanos e a cidade etrusca(25); a partir de então a religião não permitia que as duas cidades fossem inimigas; eram aliadas para sempre.

CAPÍTULO XVI

AS CONFEDERAÇÕES. AS COLÔNIAS

 

Sem dúvida, o espírito grego não se esforçou para se elevar acima do regime municipal; várias cidades logo se reuniram em uma espécie de federação, mas ainda aqui as práticas religiosas tiveram grande importância. Assim como a cidade tinha seu lar no pritaneu, as cidades associadas tiveram um lar comum(1). A cidade tinha seus heróis, suas divindades políadas, suas festas; a confederação também teve seu templo, seu deus, suas cerimônias, seus aniversários, assinalados por banquetes piedosos e por jogos sagrados.

O grupo das doze colônias jônias da Ásia Menor tinha um templo comum, chamado Panionium(2); estava consagrado a Poséidon Helicônio, que esses mesmos homens haviam honrado no Peloponeso antes da migração(3). Cada ano eles se reuniam nesse lugar sagrado para celebrar a festa chamada Paniônia; ofereciam juntos um sacrifício, e partilhavam entre si as iguarias sagradas(4). As cidades dóricas da Ásia tinham templo comum no promontório Triópio; esse templo era dedicado a Apolo e a Posséidon, e nele se celebravam, nos dias aniversários, os jogos triópicos(5).

Sobre o continente grego, o grupo das cidades beóticas tinha seu templo de Atenas Itônia(6), e suas festas anuais, Pamboeotia. As cidades aquéias ofereciam sacrifícios comuns em Égio, e rendiam culto a Deméter Panaquéia(7).

O vocábulo anfictionia parece ter sido termo antigo, que designava a associação de várias cidades. Desde as primeiras idades da Grécia houve grande número de anfictionias. Conhece-se a de Caláuria, a de Delos, a das Termópilas e a de Delfos. A ilha de Caláuria era o centro onde se reuniam as cidades de Hermíona, Epidauro, Prásias, Nauplia, Egina, Atenas e Orcômeno; essas cidades ofereciam ali um sacrifício, no qual nenhuma outra tomava parte(8). O mesmo acontecia em Delos, para onde, desde a mais remota antiguidade, as ilhas vizinhas enviavam representantes a fim de celebrar a festa de Apolo, com sacrifícios, coros e jogos(9).

A anfictionia das Termópilas, mais conhecida na história, não era de natureza diversa das precedentes. Formada originalmente entre cidades vizinhas(10), ela possuía o templo de Deméter, sacrifícios e festas anuais(11).

Não havia anfictionia ou federação sem culto, “porque — diz um antigo — o mesmo pensamento que presidiu à fundação das cidades, inspirou também a instituição dos sacrifícios comuns a várias cidades; unidas pela vizinhança e pelas necessidades naturais, elas celebravam juntas as festas religiosas e os panegíricos; o banquete sagrado e a libação, realizados em comum, faziam nascer um laço de amizade(12).“ — As cidades confederadas enviavam, nos dias marcados pela religião, alguns homens, revestidos momentaneamente de caráter sacerdotal, chamados teoros, pilágoras ou híeromnêmones. Uma vítima era imolada diante deles em honra do deus da associação, e as carnes, cozidas sobre o altar, eram divididas entre os representantes das cidades. Esse banquete comum, acompanhado de hinos, preces e jogos, era a marca e o vínculo da associação.

Se a própria unidade do corpo helênico se manifestou tão claramente ao espírito dos gregos, foi sobretudo pelos deuses que lhes eram comuns, e pelas cerimônias sagradas em que se reuniam. À imagem das divindades políadas, tiveram um Zeus pan-helênico. Os jogos olímpicos, ístmicos, nemeus, píticos, eram grandes solenidades religiosas, nas quais todos os gregos, pouco a pouco, passaram a ser admitidos. Cada cidade mandava sua teoria, a fim de tomar parte no sacrifício(13). O patriotismo grego não conheceu por muito tempo senão essa forma religiosa. Tucídides lembra muitas vezes os deuses comuns aos helenos(14), e quando Aristófanes conjura seus compatriotas a renunciar às lutas intestinas, diz-lhes: “Vós, que em Olímpia, nas Termópilas e em Delfos aspergis os altares com a mesma água lustral, não atormenteis mais a Grécia com vossas querelas, mas uni-vos contra os bárbaros(15)”.

Essas anfictionias e confederações tinham pouca ação política. Imaginar as teorias das Termópilas, do Paniônio ou de Olímpia como um congresso ou senado federal seria grande erro. Se esses homens, às vezes, foram obrigados a se ocupar de interesses materiais e políticos das associações, não o fizeram senão por exceção, e sob o império de circunstâncias particulares. As anfictionias não impediam que seus membros se guerreassem entre si. Suas atribuições regulares consistiam, não em deliberar sobre interesses, mas em honrar os deuses, em celebrar as cerimônias, em manter a trégua sagrada durante as festas; se as teorias se erigiam em tribunal, e infligiam pena a uma das cidades da associação, não o fazia senão porque essa cidade havia faltado a algum dever religioso, ou havia usurpado alguma terra consagrada às divindades(16).

Instituições análogas reinaram na antiga Itália. As cidades do Lácio tinham as férias latinas: seus representantes se reuniam cada ano no santuário de Júpiter Latiaris, sobre o monte Albano. Imolava-se um touro branco, cuja carne era dividida em tantas partes quantas as cidades confederadas(17). As doze cidades da Etrúria tinham também um templo comum, uma festa anual, e jogos presididos pelo grão-sacerdote(18).

Sabe-se que nem os gregos, nem mesmo os romanos, praticaram a colonização da mesma forma que os modernos. Uma colônia não era uma dependência ou um anexo do Estado colonizador: era um Estado completo e independente. Todavia, um vínculo de natureza particular existia entre a colônia e a metrópole, devido à maneira pela qual toda colônia era fundada.

Não devemos acreditar, com efeito, que as colônias se formassem ao acaso, segundo o capricho de certo número de emigrantes. Um bando de aventureiros nunca podia fundar uma cidade, e não tinha o direito, segundo as idéias dos antigos, de se organizar em cidade. Havia regras às quais era necessário conformar-se. A primeira condição era possuir, antes de mais nada, um fogo sagrado; a segunda era levar pessoa capaz de celebrar os ritos da fundação. Os emigrantes pediam tudo isso à metrópole. Carregavam o fogo acendido em seu lar(19), e levavam também um fundador, que devia pertencer a uma das famílias santas da cidade(20). Este celebrava a fundação da nova cidade seguindo os mesmos ritos que haviam sido outrora celebrados para a cidade da qual saíra(21). O fogo do lar estabelecia para sempre um vínculo religioso e de parentesco entre as duas cidades. A que o mandara era chamada cidade-mãe(22). A que o havia recebido era considerada filha em relação a esta(23). Duas colônias da mesma cidade eram chamadas entre si de cidades-irmãs(24).

A cidade tinha o mesmo culto que a metrópole(25); podia ter alguns deuses particulares, mas devia conservar e honrar as divindades políadas da cidade de onde se originara. As doze cidades jônias da Ásia Menor, que eram consideradas colônias de Atenas, não porque se compunham de atenienses, mas porque haviam levado o fogo sagrado do pritaneu de Atenas, e por terem sido fundadas por fundadores atenienses, rendiam culto às divindades de Atenas, celebrando suas festas(26), e enviando-lhes todos os anos sacrifícios e teorias(27). Assim faziam as colônias de Corinto e as de Naxos(28). Por isso Roma, colônia de Alba, e, conseqüentemente, de Lavínio, fazia cada ano um sacrifício sobre o monte Albano, e mandava vítimas a Lavínio, “onde estavam seus penates(29).” — Antigo costume dos gregos exigia que as antigas colônias recebessem da metrópole os pontífices que presidiam ao culto, e que velavam pela conservação dos ritos(30).

Esses laços religiosos entre colônias e metrópoles conservaram-se muito poderosos até o século quinto antes de nossa era. Quanto a laços políticos, os antigos ficaram por muito tempo sem pensar em estabelecê-los(31).

CAPÍTULO XVII

O ROMANO. O ATENIENSE

 

Essa mesma religião que fundara sociedades, governando-as por tanto tempo, moldou também a alma humana, emprestando ao homem seu caráter. Por seus dogmas e práticas ela deu ao romano e ao grego certa maneira de pensar e de agir, e certos hábitos, dos quais por muito tempo não se puderam desfazer. A religião mostrava aos homens deuses por toda parte, deuses pequenos, facilmente irritáveis e malfazejos. A religião esmagava o homem sob o temor de ter sempre deuses contrários, que lhes tiravam toda liberdade de ação.

É necessário que vejamos o lugar ocupado pela religião na vida de um romano. Sua casa é para ele o que para nós é um templo, onde encontra seus deuses e seu culto. Seu lar é um deus; as paredes, as portas, a soleira, são deuses; os marcos que rodeiam seu campo são ainda deuses. O túmulo é um altar, e seus antepassados criaturas divinas.

Cada uma de suas ações diárias é um rito; todo seu dia pertence à religião. De manhã e de noite invoca o fogo sagrado, os penates, os antepassados; ao sair da casa, ou voltando para ela, dirige-lhes preces. Cada refeição é um ato religioso, que partilha com as divindades domésticas. O nascimento, a iniciação, a vestidura da toga, o casamento e os aniversários de todos esses acontecimentos são atos solenes do culto.

O homem sai de casa, e quase não pode dar um passo sem encontrar um objeto sagrado; ora é uma capela, ora um lugar outrora ferido pelo raio, ora um túmulo; de quando em quando deve recolher-se, e pronunciar uma oração, ou voltar os olhos, e cobrir o rosto para evitar a vista de algum objeto funesto.

O romano sacrifica diariamente em casa, mensalmente na cúria, e várias vezes por ano em sua gens ou tribo. Além de todos esses deuses, deve ainda cultuar os deuses da cidade. Roma tem mais deuses que cidadãos.

Oferece sacrifícios para agradecer aos deuses; oferece outros, em maior número, para apaziguar sua cólera. Um dia ele figura em sua procissão, dançando ao ritmo de uma melodia antiga, ao som da flauta sagrada. Outro dia conduz carros, onde vão deitadas as estátuas das divindades(1). Outra vez é um lectisternium: uma mesa é preparada na rua, e provida de iguarias; sobre os leitos deitam-se as estátuas dos deuses, e cada romano se inclina diante delas, uma coroa à cabeça e um ramo de louro nas mãos(2).

Há festas para as sementeiras, para a colheita, para a poda da vinha. Antes que o grão se transforme em espiga, fez mais de dez sacrifícios, e invocou uma dezena de divindades particulares para o bom êxito da colheita. Sobretudo, é grande o número de festas dedicadas aos mortos, porque são temidos(3).

O romano jamais sai de casa sem olhar para ver se não aparece algum pássaro de mau agouro. Há palavras que não ousa pronunciar. Quando deseja alguma coisa inscreve seu voto em uma tabuleta, que depõe aos pés da estátua de um deus(4).

A todo o momento ele consulta os deuses, e deseja conhecer suas vontades. Todas suas decisões são encontradas nas entranhas das vítimas, no vôo dos pássaros, no aviso dos raios(5). A notícia de uma chuva de sangue ou de um boi que falou perturba-o, e não ficará tranqüilo senão depois de se reconciliar com os deuses mediante uma cerimônia expiatória(6).

O primeiro passo que dá fora de casa é com o pé direito. Só corta os cabelos durante a lua cheia. Carrega amuletos. Contra o incêndio, cobre as paredes da casa com inscrições mágicas. Conhece fórmulas para evitar doenças, e outras para curá-las; mas é necessário repeti-las vinte e sete vezes, e cuspir todas as vezes de determinada maneira(7).

No senado, não toma nenhuma deliberação, caso as vítimas não tenham dado sinais favoráveis. Se ouve o chiado de algum rato, abandona imediatamente a assembléia do povo. Renuncia aos melhores projetos, se percebe algum mau presságio, ou ouve alguma palavra funesta. É valente no combate, mas com a condição que os auspícios lhe assegurem vitória.

O romano que aqui apresentamos não é o homem do povo, o homem de espírito fraco, que a miséria e a ignorância mantém na superstição. Falamos do patrício, do homem nobre, poderoso e rico. Esse patrício ora é guerreiro, magistrado, cônsul, agricultor, comerciante; mas por toda parte, e sempre, ele é sacerdote, e seu pensamento está fixado nos deuses. Patriotismo, amor à glória, amor às riquezas, por mais poderosos que sejam esses sentimentos sobre sua alma, o temor dos deuses domina tudo. Horácio disse a palavra mais verdadeira sobre o romano: foi por medo dos deuses que o romano se tornou senhor da terra:

Dis te minorem quod geris, imperas.

Costuma-se dizer que a religião dos romanos era uma religião de política. Mas podemos supor que um senado de trezentos membros, um corpo de três mil patrícios tenha combinado tão bem, e com tal unanimidade, para enganar o povo ignorante? E isso durante séculos, sem que, no meio de tanta rivalidade, de tantas lutas e ódios pessoais, uma só voz se tenha levantado para dizer: É mentira! Se um patrício traísse os segredos da casta, se, dirigindo-se aos plebeus, que suportavam impacientemente o jugo da religião, os desembaraçasse de tantos auspícios e sacerdotes, esse homem conquistaria imediatamente tal crédito, que se tornaria senhor absoluto do Estado. Será possível pensar que, se os patrícios não acreditavam na religião que praticavam, semelhante tentação não seria suficiente para forçar, pelo menos um dentre eles, a revelar o segredo? Supor que uma religião seja capaz de se estabelecer por convenção e de se sustentar pela mentira é enganar-se gravemente com a natureza humana. Contemos, com Tito Lívio, quantas vezes essa religião incomodou os próprios patrícios, quantas vezes embaraçou o senado e entravou sua ação, e depois digamos se essa religião foi inventada para comodidade dos políticos. Foi nos tempos de Cícero que se começou a crer que a religião era útil ao governo, mas a religião já estava morta nas almas.

Tomemos um romano dos primeiros séculos; escolhamos um dos mais guerreiros, Camilo, que foi cinco vezes ditador, e que venceu mais de dez batalhas. Para não fugirmos da verdade, devemos imaginá-lo tanto como sacerdote quanto como guerreiro. Camilo pertence à gens Fúria; seu sobrenome é uma palavra que designa função sacerdotal. Quando menino, fazem-no vestir a toga pretexta, que indica sua casta, e impõem-lhe a bula que afasta a má sorte. Cresceu assistindo todos os dias às cerimônias do culto; passou a juventude instruindo-se nos ritos da religião. É verdade que se declarou uma guerra, e que o sacerdote se fez soldado; viram-no, ferido na coxa em um combate da cavalaria, arrancar a espada da ferida, e continuar a lutar. Depois de muitas campanhas, foi elevado à magistratura; como magistrado, fez sacrifícios públicos, julgou, comandou o exército. Dia veio em que se pensou em seu nome para o cargo de ditador. Nesse dia, o magistrado em função, depois de se recolher durante uma noite clara, consultou os deuses: seu pensamento estava ligado a Camilo, cujo nome pronunciava baixinho, olhos fixos no céu, à procura de presságios. Os deuses só mandaram bons auspícios, porque Camilo lhes era agradável; nomeiam-no ditador.

Ei-lo chefe do exército; sai da cidade, não sem antes haver consultado os auspícios, e imolado grande número de vítimas. Tem sob suas ordens muitos oficiais, e quase outros tantos sacerdotes, um pontífice, áugures, arúspices, pulários, vitimários, e um altar portátil para levar o fogo sagrado.

Encarregam-no de terminar a guerra contra Veios, que há nove anos atacam inutilmente. Veios é uma cidade isto é, quase uma cidade sagrada; para lutar, necessita mais de piedade que de coragem. Se há nove anos que os romanos são vencidos, é porque os etruscos conhecem melhor os ritos que são agradáveis aos deuses, e as fórmulas mágicas que conquistam seus favores. Roma, por sua parte, abrira os livros sibilinos, procurando neles a vontade dos deuses. Percebeu então que suas férias latinas haviam sido manchadas por algum vício de forma, e renovou o sacrifício. Todavia, os etruscos continuam a vencer; não resta senão uma solução: raptar um sacerdote etrusco, e arrancar-lhe o segredo dos deuses. Um sacerdote veiense é capturado, e levado ao senado: “Para que Roma conquiste Veios, é necessário que abaixe o nível do lago Albano, tomando todo o cuidado para que suas águas não corram para o mar.” — Roma obedece, cavam-se uma infinidade de canais e de sulcos, e a água do lago se perde pelos campos.

Nesse momento Camilo é eleito ditador. Com o exército, dirige-se para Veios. Está certo da vitória, porque todos os oráculos foram revelados, todas as ordens dos deuses haviam sido cumpridas; além do mais, antes de deixar Roma, prometera aos deuses protetores festas e sacrifícios. Para vencer, não negligencia os meios humanos: aumenta o exército, intensifica a disciplina, manda cavar uma galeria subterrânea para penetrar na cidadela. Chega o dia do ataque; Camilo dorme em sua tenda; consulta os auspícios e imola vítimas. Os pontífices, os áugures o rodeiam: revestido do paludamentum, Camilo invoca os deuses: “Sob teu comando, ó Apolo, e por tua vontade, que me inspira, marcho para tomar e destruir a cidade de Veios; se sair vencedor, prometo consagrar-te a décima parte dos troféus.” — Mas não basta ter os deuses a seu favor; o inimigo também tem uma divindade poderosa que o protege. Camilo a evoca por esta fórmula: “Rainha Juno, que tens em Veios tua morada, eu te rogo: vem conosco, os vencedores; segue-nos até nossa cidade, recebe nosso culto; que nossa cidade se torne tua!”. Depois, terminados os sacrifícios, ditas as orações, recitadas as fórmulas, quando os romanos estão certos do favor dos deuses, e que nenhum deus defende mais o inimigo, atacam a cidade, e vencem.

Assim é Camilo. Um general romano é um homem que sabe combater admiravelmente, que conhece sobretudo a arte de se fazer obedecer, mas que crê firmemente nos áugures; que cumpre cada dia atos religiosos, e que está convencido de que o mais importante não é a coragem, nem mesmo a disciplina, mas o enunciado de algumas fórmulas, exatamente pronunciadas de acordo com os ritos. Essas fórmulas, dirigidas aos deuses, determinam-nos e quase sempre os constrangem a dar-lhes a vitória. Para esse general, a recompensa suprema é que o senado lhe dê permissão para celebrar o sacrifício triunfal Sobe então ao carro sagrado, atrelado a quatro cavalos brancos, os mesmos que conduzem a estátua de Júpiter no dia da grande procissão, veste-se das roupas sagradas, a mesma que usa nos dias de festa; a cabeça coroada, segurando um ramo de louro na mão direita e um cetro de marfim na esquerda; são esses exatamente os atributos e insígnias ostentadas pela estátua de Júpiter(8). Sob essa majestade quase divina, mostra-se aos cidadãos, e vai prestar homenagens à majestade verdadeira do maior deus romano. Sobe a encosta do Capitólio, e chega diante do templo de Júpiter, onde imola as vítimas.

O medo dos deuses não era sentimento próprio dos romanos; imperava também entre os gregos. Esses povos, originalmente constituídos pela religião, por ela nutridos e criados, conservaram por muito tempo a marca de sua educação primitiva. São conhecidos os escrúpulos do espartano, que jamais começa uma expedição enquanto a lua não alcança sua plenitude(9), que imola continuamente vítimas para saber se deve combater, e que renuncia aos empreendimentos mais necessários e certos porque um mau presságio o assusta. O ateniense afasta-se do romano e do espartano por mil traços de caráter e de espírito, mas o medo dos deuses torna-os semelhantes a eles. Um exército ateniense jamais entra em campanha antes do sétimo dia do mês, e, quando uma frota parte pelo mar, toma grande cuidado em redourar as estátuas de Palas.

Xenofonte afirma que os atenienses têm mais festas religiosas que nenhum outro povo grego(10). — “Quantas vítimas oferecidas aos deuses! — diz Aristófanes(11) — Quantos templos! Quantas estátuas! Quantas procissões sagradas! A todo momento do ano vemos festins religiosos e vítimas coroadas”. — “Nós — diz Platão, — oferecemos os mais numerosos sacrifícios, e realizamos para os deuses as procissões mais brilhantes, e sagradas(12).” — A cidade de Atenas e seu território estão cobertos de templos e capelas, destinadas ao culto da cidade, das tribos, dos demos e das famílias. Cada casa é um templo e em quase todos os campos há um túmulo sagrado.

O ateniense, que imaginamos tão inconstante, tão caprichoso, tão livre-pensador, tem, pelo contrário, singular respeito para com as velhas tradições e os velhos ritos. Sua principal religião, a que dele obtém a devoção mais fervente, é a religião dos antepassados e dos heróis. Rende culto aos mortos e teme-os. Uma de suas leis o obriga a oferecer-lhes cada ano as primícias da colheita; outra proíbe-lhe pronunciar uma só palavra que possa provocar-lhes a cólera(13). Tudo o que diz respeito à antiguidade é santo para o ateniense. Em seus livros sagrados estão anotados ritos dos quais jamais se afasta(14); se um sacerdote introduzisse no culto a mais ligeira alteração, seria punido com a morte. Os ritos mais estranhos são observados de século em século. Um dia por ano, o ateniense faz um sacrifício em honra de Ariana; e porque diziam que a amante de Teseu morrera de parto, é necessário que se imitem os gritos e os movimentos da mulher ao dar à luz. Outra festa anual é celebrada, chamada Oscofórias, que é como a pantomima da volta de Teseu à Ática; coroa-se o caduceu de um arauto, porque o arauto de Teseu assim o fez; grita-se de certo modo, como se supõe tenha gritado o arauto, e realiza-se uma procissão, na qual todos se vestem como nos tempos de Teseu. Há outro dia em que o ateniense não deixa de ferver legumes em marmitas de determinada forma; é um rito cuja origem se perde na antiguidade dos tempos, e cujo sentido não se conhece mais, embora seja renovado piedosamente todos os anos(15).

O ateniense, como o romano, tem seus dias nefastos, nos quais não se celebram casamentos, não se dá início a nenhum empreendimento, não se reúnem assembléias, não se administra a justiça. O décimo oitavo dia e o décimo nono dia de cada mês são usados para as purificações. No dia das Plintérias, o mais nefasto de todos, cobre-se com um véu a estátua da grande divindade políada(16). Pelo contrário, no dia das Panatenéias, o véu da deusa é levado em grande procissão, e todos os cidadãos, sem exceção de idade nem de classe, devem participar do cortejo. O ateniense faz sacrifícios pelas colheitas, pela volta da chuva e do bom tempo; para curar doenças, e afastar a fome ou a peste. Atenas tem sua coleção de antigos oráculos, como Roma tem os livros sibilinos, e sustenta, no pritaneu, homens que lhe anunciam o futuro(17). Em suas ruas, a cada passo encontram-se adivinhos, sacerdotes, intérpretes de sonhos(18). O ateniense crê nos presságios; um espirro ou um zunido nos ouvidos obrigam-no a interromper um empreendimento(19). Nunca embarca sem interrogar os auspícios(20). Antes de se casar não deixa de consultar o vôo dos pássaros(21). Acredita nas palavras mágicas, e, se está doente, usa amuletos pendurados ao pescoço(22). A assembléia do povo se dispersa apenas aparece no céu um sinal funesto(23). Se um sacrifício foi perturbado com alguma notícia desagradável, deve ser repetido(24).

O ateniense não começa nem uma frase sem antes invocar a boa fortuna(25). Na tribuna, o orador inicia o discurso invocando de bom grado os deuses e heróis que habitam a região. Governa-se o povo recitando oráculos. Os oradores, para fazerem prevalecer suas idéias, repetem a todo instante: A deusa assim o ordena(26).

Nícias pertence a uma grande e rica família. Muito jovem ainda, conduz ao santuário de Delos uma teoria, isto é, algumas vítimas, e um coro para cantar os louvores do deus durante o sacrifício. Voltando a Atenas, presta homenagem aos deuses com uma parte de sua fortuna, dedicando uma estátua a Atenas, e uma capela a Dionísio. Nícias ora é hestiator, e faz as despesas necessárias para os banquetes sagrados da tribo; ora é corego, organizando o coro para as festas religiosas. Não deixa passar um dia sem oferecer sacrifício a algum deus. Tem um adivinho adido à sua casa, que não o deixa, e que consulta tanto sobre negócios públicos quanto sobre interesses particulares. Nomeado general, dirige uma expedição contra Corinto; ao voltar a Atenas, vencedor, percebe que dois de seus soldados mortos haviam ficado insepultos em território inimigo; levado por escrúpulo religioso, faz parar a frota, e manda um arauto pedir aos coríntios permissão para enterrar os dois cadáveres. Algum tempo depois o povo ateniense delibera sobre uma expedição à Sicília. Nícias sobe à tribuna, e declara que os sacerdotes e seu adivinho anunciam presságios que se opõem à expedição. É verdade que Alcibíades tem outros adivinhos, que anunciam oráculos contrários. O povo fica indeciso. Chegam alguns homens vindos do Egito; haviam consultado o deus Amon, que já começava a estar em voga, e anunciam este oráculo: Os atenienses prenderão todos os siracusanos. — O povo se decide imediatamente pela guerra(27).

Nícias, apesar de tudo, comanda a expedição. Antes de partir, oferece um sacrifício, de acordo com o costume. Leva consigo, como todo general, um grupo de adivinhos, de sacrificadores, de arúspices e de arautos. A frota transporta seu lar; cada embarcação ostenta um emblema que representa uma divindade.

Mas Nícias tem poucas esperanças. A desgraça não lhe havia sido anunciada com bastantes prodígios? Alguns corvos haviam danificado a estátua de Palas; um homem mutilara-se sobre o altar, e a partida realizara-se durante os dias nefastos das Plintérias! Nícias está absolutamente convencido de que essa guerra será fatal a ele e à pátria. Por isso, durante todo o transcorrer da campanha., o vêem sempre tímido e circunspecto, sem nunca se atrever a dar o sinal da batalha, ele, Nícias, conhecido por sua bravura de soldado e sua habilidade de general.

Os atenienses não conseguem tomar Siracusa, e, depois de perdas cruéis, é necessário voltar para Atenas. Nícias prepara a frota para a retirada; o mar ainda está livre. Mas sobrevém um eclipse lunar. Consulta o adivinho; este responde que o presságio é contrário, e que é necessário esperar três vezes nove dias. Nícias obedece, passando todo esse tempo inativo, oferecendo muitos sacrifícios a fim de apaziguar a cólera dos deuses. Durante esse tempo, os inimigos fecham-lhe o porto e destroem-lhe a frota. A retirada só é possível por terra, mas é tarde: nem ele, nem nenhum dos seus soldados escapa das mãos dos siracusanos.

Que disseram os atenienses ao saber do desastre? Eles conheciam a coragem pessoal de Nícias, e sua admirável constância. Não o criticam por haver seguido as opiniões da religião. Criticam-no apenas por levar consigo adivinho ignorante, que se enganara a respeito do presságio do eclipse lunar; ele deveria saber que, para um exército em retirada, a lua que esconde sua luz é presságio favorável(28).

CAPÍTULO XVIII

DA ONIPOTÊNCIA DO ESTADO. OS ANTIGOS NÃO CONHECERAM A LIBERDADE INDIVIDUAL

 

A cidade havia sido fundada como uma religião, constituindo-se como uma igreja. Daí sua força, daí também sua onipotência, e o império absoluto que exercia sobre seus membros. Em uma sociedade estabelecida sobre tais princípios, a liberdade individual não podia existir. O cidadão ficava submetido, em tudo e sem reservas, à cidade; pertencia-lhe inteiramente. A religião, que dera origem ao Estado, e o Estado, que sustentava a religião, apoiavam-se mutuamente, sustentavam-se um ao outro, e formavam um só corpo; esses dois poderes associados e perfeitamente unidos constituíam um poder quase sobre-humano, ao qual alma e o corpo submetiam-se igualmente.

O homem nada tinha de independente. Seu corpo pertencia ao Estado, e destinava-se à sua defesa; em Roma o serviço militar era obrigatório até os quarenta e seis anos; em Atenas e Esparta o era por toda a vida(1). Sua fortuna estava sempre à disposição do Estado; se a cidade tivesse necessidade de dinheiro, podia mandar às mulheres que lhe entregassem as jóias, aos credores que privassem de seus créditos, aos proprietários de olivais que lhe cedessem gratuitamente o óleo que haviam fabricado(2).

A vida privada não escapava a essa onipotência do Estado. Muitas cidades gregas proibiam ao homem o celibato(3). Esparta punia não somente quem não se casava, como também quem se casava tarde. O Estado podia prescrever, em Atenas, o trabalho, e em Esparta, a ociosidade(4). O Estado exercia sua tirania até nas menores coisas; em Locres, a lei proibia aos homens beber vinho puro; em Roma, em Mileto e em Marselha, fazia o mesmo com as mulheres(5). A moda, comumente, era fixada pelas leis de cada cidade; a legislação de Esparta dava regras para os penteados das mulheres, e a de Atenas proibia-lhes levar em viagem mais de três vestidos(6). Em Rodes a lei proibia que se fizesse a barba; em Bizâncio, punia com multa quem possuísse uma navalha; em Esparta, pelo contrário, a lei exigia que se raspasse o bigode(7).

A lei tinha o direito de não tolerar deformidades ou defeitos em seus cidadãos. Em conseqüência, mandava aos pais de filhos defeituosos que os matassem. Essa lei encontrava-se nos antigos códigos de Esparta e de Roma(8). Não sabemos se existia em Atenas; sabemos somente que Aristóteles e Platão a inscreveram em suas legislações ideais.

Na história de Esparta há um fato que Plutarco e Rousseau muito admiravam. Esparta acabava de ser vencida em Leuctra, e muitos de seus cidadãos haviam perecido. A essa notícia, os pais dos mortos deviam mostrar-se alegres em público. A mãe que sabia que o filho escapara ao desastre, e que ia revê-lo, mostrava-se aflita, e chorava. A que sabia que não veria mais o filho, mostrava-se alegre, e percorria os templos agradecendo aos deuses. Por aí podemos avaliar o poder de um Estado que ordenava a inversão dos sentimentos naturais, e que era obedecido!

O Estado não admitia que ninguém ficasse indiferente a seus interesses; o filósofo, o homem de estudos não tinha direito de viver à parte. Era obrigado a votar nas assembléias, e a exercer a magistratura quando necessário. Em um tempo em que as discórdias eram freqüentes, a lei ateniense não permitia a ninguém ficar neutro; o cidadão devia combater com um partido ou com outro; contra quem quisesse ficar alheio às facções, e mostrar-se calmo, a lei pronunciava uma lei severa; a perda do direito de cidadania(9).

A educação, entre os gregos, estava longe de ser livre. Pelo contrário, não havia nada em que o Estado se quisesse mostrar mais poderoso. Em Esparta, o pai não tinha nenhum direito sobre a educação da criança. Parece que a lei era menos rigorosa em Atenas, ainda que a cidade exigisse que a educação fosse comum, e ministrada por mestres escolhidos pelo Estado. Aristófanes, em um trecho eloqüente, mostra-nos as crianças de Atenas dirigindo-se à escola; em ordem, distribuídos de acordo com os bairros, as crianças caminham em filas, na chuva, na neve ou ao sol; já parecem compreender que estão cumprindo um dever cívico(10). O Estado queria dirigir sozinho a educação, e Platão diz o motivo dessa exigência(11): “Os pais não devem ser livres de mandar ou não os filhos aos mestres escolhidos pela cidade, porque as crianças pertencem menos aos pais que à cidade.” — O Estado considerava o corpo e a alma de cada cidadão como propriedade sua; por isso queria moldar esse corpo e essa alma de modo a tirar o melhor partido. Ensinava-lhe ginástica, porque o corpo do homem era uma arma para a cidade, e era necessário que essa arma fosse tão forte e dócil quanto possível. Ensinava-lhe também cânticos religiosos, hinos, danças sagradas, porque esse conhecimento era necessário para a boa execução dos sacrifícios e festas da cidade(12).

Reconhecia-se ao Estado o direito de impedir que houvesse um ensino livre ao lado do seu. Atenas, certa vez, promulgou uma lei que proibia instruir os jovens sem autorização dos magistrados, e outra que proibia especialmente o ensino da filosofia(13).

O homem não escolhia suas crenças. Devia apenas crer e submeter-se à religião da cidade. Podia-se odiar ou desprezar os deuses da cidade vizinha; quanto às divindades de caráter universal e geral, como Júpiter Celeste, Cibele ou Juno, era-se livre de acreditar nelas, ou não. Mas que ninguém ousasse duvidar da Atenas políada, ou de Erecteu, ou de Cécrops. Seria grande impiedade contra a religião e o Estado, que este devia punir com toda severidade. Sócrates foi condenado à morte por esse crime(14). A liberdade de pensamento em relação à religião da cidade era absolutamente desconhecida entre os antigos. Era necessário conformar-se a todas as regras do culto, tomar parte em todas as procissões e banquetes sagrados. A legislação ateniense pronunciava uma pena contra os que se abstinham de celebrar religiosamente uma festa nacional(15).

Os antigos, portanto, não conheciam nem a liberdade da vida particular, nem a liberdade de educação, nem a liberdade religiosa. A pessoa humana valia bem pouco diante da autoridade santa, e quase divina, que se chamava pátria ou Estado. O Estado não tinha somente, como em nossas sociedades modernas, direito de justiça em relação aos cidadãos. Podia punir sem que houvesse culpa, bastando que seu interesse estivesse em jogo. Certamente Aristides não havia cometido nenhum crime, e nem sequer era suspeito; mas a cidade tinha o direito de expulsá-lo de seu território, apenas porque Aristides, por suas virtudes, adquirira muita influência, e podia tornar-se perigoso, se o quisesse. Chamava-se a isso ostracismo, instituição que não era exclusiva de Atenas; encontramo-la também em Argos, em Mégara, em Siracusa, e Aristóteles dá a entender que existia em toda as cidades gregas que tinham governo democrático(16). Ora, o ostracismo não era um castigo; era uma precaução que a cidade tomava contra o cidadão que supunha poder causar-lhe prejuízos algum dia. Em Atenas, podia-se acusar um homem, e condená-lo por incivismo, isto é, por falta de afeição para com o Estado. Nada garantia a vida humana quando se tratava do interesse da cidade. Roma promulgou uma lei pela qual era permitido matar toda a pessoa que tivesse a intenção de se tornar rei(17). Assim, funesta máxima de que a lei do Estado é a lei suprema, foi formulada pela antiguidade(18). Pensava-se que o direito, a justiça, a moral, tudo devia ceder diante do interesse da pátria.

É, portanto, erro singular entre todos os erros humanos pensar que nas cidades antigas o homem gozava de liberdade, da qual nem tinha idéia. Ele não acreditava que pudessem existir direitos capazes de prevalecer diante dos deuses e da cidade. Veremos logo que o governo muitas vezes mudou de forma; mas a natureza do Estado ficou quase a mesma, e sua onipotência não se diminuiu. O governo chamou-se ora monarquia, ora aristocracia, ora democracia, mas nenhuma dessas revoluções deu ao homem a verdadeira liberdade, a liberdade individual. Ter direitos políticos, votar, nomear magistrados, poder ser arconte, eis o que se chamava de liberdade; mas o homem nunca deixou de estar sujeito ao Estado. Os antigos, sobretudo os gregos, exageraram sempre a importância e os direitos da sociedade, sem dúvida, devido ao caráter sagrado e religioso de que a sociedade se revestira no inicio.


LIVRO QUARTO
AS REVOLUÇÕES

Não se podia imaginar nada mais solidamente constituído que essa família das antigas idades, com seus deuses, seu culto, seu sacerdote, seu magistrado. Nada mais forte que essa cidade, que continha em si a religião, os deuses protetores, o sacerdócio independente, que imperava sobre a alma e o corpo do homem, e que, infinitamente mais poderosa que o Estado moderno, reunia em si a dupla autoridade, que hoje vemos dividida entre a Igreja e o Estado. Se houve sociedade constituída para durar, era certamente esta. Contudo, como tudo o que é humano, também ela sofreu uma série de revoluções.

Não podemos afirmar, nem de modo geral, em que época essas revoluções tiveram início. Com efeito, concorda-se em que não foram as mesmas para as diferentes cidades da Grécia e da Itália. O que é certo é que desde o século sétimo antes de nossa era essa organização social era discutida e atacada quase em toda parte. A partir dessa época essa sociedade só se manteve com muita dificuldade, e por uma mistura mais ou menos hábil de resistência e de concessões. Assim, debateu-se por vários séculos, no meio de lutas contínuas, até que desapareceu.

As causas que a fizeram perecer podem reduzir-se a duas. Uma, a mudança que se operou com o tempo no campo das idéias, como conseqüência natural do desenvolvimento do espírito humano, e que, fazendo desaparecer as antigas crenças, fez desmoronar ao mesmo tempo o edifício social que elas haviam construído, e que só elas poderiam manter. A outra é a existência de uma classe de homens que se encontrava colocada fora dessa organização, e que por isso sofria, e tinha interesse em destruí-la, e que lhes fez guerra sem trégua.

Portanto, quando essas crenças, sobre as quais se baseava esse regime social, se enfraqueceram, quando os interesses da maioria dos homens ficaram em desacordo com o regime, este teve que desaparecer. Nenhuma cidade escapou a essa lei de transformação, nem Esparta, nem Atenas, nem Roma, nem Grécia. Assim como vimos que os habitantes da Grécia e de Roma tiveram na origem as mesmas crenças, e que a mesma série de instituições se desenvolvera entre eles, veremos agora que todas essas cidades sofreram as mesmas revoluções.

Devemos estudar como e por que os homens se afastaram gradualmente dessa antiga organização, não para decair, mas para progredir, para alcançar uma forma social mais ampla e melhor. Porque, sob a aparência de desordem, e às vezes de decadência, cada uma dessas mudanças aproximava-os de um fim por eles desconhecido.


CAPÍTULO I

PATRÍCIOS E CLIENTES

 

Até aqui ainda não falamos das classes inferiores, nem tínhamos o que falar, porque se tratava de descrever o organismo primitivo da cidade, e as classes inferiores não tinham importância nenhuma em sua estrutura, A cidade constituíra-se como se essas classes não existissem. Podíamos, portanto, esperar para estudá-las quando chegássemos à época das revoluções.

A cidade antiga, como toda sociedade humana, apresentava classes, distinções, desigualdades. Conhecemos em Atenas a distinção inicial entre eupátridas e tetas; em Esparta encontramos a classe dos iguais e a dos inferiores; na Eubéia, a dos cavaleiros e a do povo. A história de Roma é fértil de lutas entre patrícios e plebeus, lutas que encontramos também em todas as cidades sabinas, latinas e etruscas. Podemos até notar que quanto mais nos aprofundamos na história da Grécia e da Itália, mais se torna evidente a distinção profunda entre classes fortemente separadas, prova evidente de que a desigualdade não apareceu com o tempo, mas que existiu desde a origem, sendo contemporânea do nascimento das cidades.

Convém que procuremos conhecer sobre quais princípios repousava esta divisão de classes. Assim poderemos ver mais facilmente em virtude de que idéias ou de que necessidades se lutava, o que reclamavam as classes inferiores, e em nome de quais princípios as classes superiores defenderão seu império.

Vimos acima que a cidade nascera da confederação das famílias e das tribos. Ora, antes do dia em que a cidade se formou, a família já continha em si essa distinção de classes. Com efeito, a família não se desmembrava; era indivisível, como a religião primitiva do lar. O filho mais velho, sucedendo sozinho ao pai, tomava em suas mãos o sacerdócio, a propriedade, a autoridade, e seus irmãos comportavam-se a seu respeito como o haviam feito em relação ao pai. De geração em geração, não havia senão um chefe de família; ele presidia ao sacrifício dizia a oração, julgava, governava. A princípio, somente a ele pertencia o título de pater, porque essa palavra, que designava poder, e não paternidade, não se podia aplicar senão ao chefe de família. Seus filhos, seus irmãos, seus criados, todos o chamavam assim.

Eis, portanto, na constituição íntima da família, um primeiro princípio de desigualdade. O mais velho é privilegiado para o culto, para a sucessão, para o poder. Depois de várias gerações, forma-se naturalmente, em cada uma das grandes famílias, ramos mais novos, que estão, pela religião e pelo costume, em estado de inferioridade em relação ao ramo mais velho, e que, vivendo sob sua proteção, devem obediência à sua autoridade.

Depois, essa família tem criados, que não a deixam, e que a ela estão ligados por hereditariedade, e sobre as quais o pater, ou patrono, exerce a tríplice autoridade de mestre, de magistrado e de sacerdote. Seus nomes variam de acordo com os lugares; os mais conhecidos são os de clientes e tetas.

Eis mais uma vez uma classe inferior. O cliente está abaixo, não somente do chefe supremo da família, mas ainda dos ramos mais novos. Entre eles há esta diferença: o membro de um ramo mais novo, remontando a série dos antepassados, chega sempre a um pater, isto é, a um chefe de família, um daqueles antepassados divinos, que a família invoca em suas orações. Como descende de um pater, chamam-no, em latim, patricius. O filho de um cliente, pelo contrário, por mais alto que suba em sua genealogia, jamais alcançará senão um cliente ou um escravo. Não há nenhum pater entre seus antepassados. Daí lhe resulta esse estado de inferioridade, de que nada o pode livrar.

A distinção entre essas duas classes de homens é manifesta no que concerne aos interesses materiais. A propriedade da família pertence inteiramente ao chefe, que, aliás, partilha seu gozo com os ramos mais novos, e até com os clientes. Mas enquanto o ramo mais novo tem pelo menos um direito eventual sobre a propriedade, caso o ramo mais velho venha a se extinguir, o cliente nunca se pode tornar proprietário. A terra que cultiva, ele a possui apenas como depósito; se morrer, volta às mãos do patrono; o direito romano das épocas posteriores conservou vestígios dessa antiga regra no que se chamou de jus applicationis(1). O próprio dinheiro do cliente não lhe pertence; o patrono é o verdadeiro proprietário, e pode apoderar-se do mesmo para suas próprias necessidades. É em virtude dessa regra antiga que o direito romano declara que o cliente deve dotar a filha do patrono, deve pagar-lhe as multas, fornecer-lhe o resgate ou contribuir para os gastos das várias magistraturas.

A distinção é ainda mais manifesta na religião. Somente o descendente de um pater pode celebrar as cerimônias do culto familiar. O cliente apenas assiste; o sacrifício é feito também para ele, mas não por ele. Entre o cliente e a divindade doméstica há sempre um intermediário. Ele não pode nem mesmo substituir a família ausente. Se a família vier a se extinguir, os clientes não continuam o culto; dispersam-se, porque a religião não é seu patrimônio, não é de seu sangue, não lhes vem por seus próprios antepassados. É uma religião de empréstimo, da qual têm o usufruto, e não a propriedade.

Lembremo-nos de que, de acordo com as idéias das gerações antigas, o direito de ter um deus e de orar era hereditário. A tradição sagrada, os ritos, as palavras sacramentais, as fórmulas poderosas, que obrigavam os deuses a agir, tudo isso só se transmitia por meio do sangue. Era, portanto, muito natural que em cada uma dessas famílias antigas, somente a parte livre e ingênua, que descendia realmente do primeiro antepassado, ficasse na posse do caráter sacerdotal. Os patrícios, ou eupátridas, tinham o privilégio de ser sacerdotes, e de possuir uma religião que lhes pertencia como coisa própria(2).

Destarte, antes mesmo de se sair do estado de família, já existia uma distinção de classes; a velha religião doméstica estabelecera os graus. Depois quando a cidade se formou, a constituição interior da família nada sofreu. Demonstramos até que a cidade, em sua origem, não era uma associação de indivíduos, mas uma confederação de tribos, de cúrias e de famílias, e que, nessa espécie de aliança, cada um desses corpos continuou como era antes. Os chefes desses pequenos grupos uniam-se entre si, mas cada um deles continuava senhor absoluto da pequena sociedade da qual já era chefe. É por isso que o direito romano confiou por tanto tempo ao pater a autoridade absoluta sobre os seus, e a onipotência e o direito de justiça em relação aos clientes. A distinção das classes, nascida na família, continuou portanto com a cidade.

A cidade, a princípio, não era senão a reunião dos chefes de família. Temos testemunhos de tempos nos quais somente eles podiam ser cidadãos. Podemos ainda ver um vestígio dessa regra em uma antiga lei de Atenas, que dizia que para ser cidadão era necessário possuir um deus doméstico(3). Aristóteles nota que “antigamente, em algumas cidades, era regra que o filho não fosse cidadão enquanto o pai fosse vivo, e que, morto o pai, somente o filho mais velho gozasse de direitos políticos(4).” — A lei, portanto, não contava na cidade os ramos mais novos, nem, com mais razão ainda, os clientes. Assim Aristóteles acrescenta que os verdadeiros cidadãos eram então em número muito reduzido.

A assembléia, que deliberava sobre os interesses gerais da cidade, compunha-se assim, nesses tempos antigos, apenas de chefes de família, de patres. Podemos não acreditar em Cícero, quando afirma que Rômulo chama de pais aos senadores, para assinalar a afeição paternal que tinham para com o povo. Os membros desse antigo senado levavam, naturalmente, esse título porque eram chefes das gentes. Ao mesmo tempo que esses homens reunidos representavam a cidade, cada um deles continuava como senhor absoluto em sua gens, que era como seu pequeno reino. Vemos também, desde os primeiros tempos de Roma, outra assembléia mais numerosa, a das cúrias, que difere muito da assembléia dos patres. São ainda eles que constituem o elemento principal dessa assembléia; somente que aí cada pater comparece rodeado da família; os parentes, e até mesmo os clientes, formam seu cortejo e demonstram seu poder. Cada família, aliás, nesses comícios, tem direito a um único voto(5). Podemos admitir que o chefe consulte o interesse dos parentes e dos clientes, mas é claro que só ele pode votar. A lei, aliás, proíbe que o cliente discorde da opinião do patrono(6). Se o cliente está ligado à cidade, isso só acontece por intermédio dos chefes patrícios; eles participam do culto público, comparecem ao tribunal, e às assembléias, mas sempre seguindo os passos dos patronos.

Não devemos imaginar a cidade antiga como um aglomerado de homens, vivendo promiscuamente dentro do recinto das mesmas muralhas. A cidade, nos primeiros tempos, não é lugar para morar, mas santuário onde residem os deuses da comunidade; é a fortaleza que os defende, e que sua presença santifica; é o centro da associação, a residência do rei e dos sacerdotes, o lugar onde se administra justiça, e não a morada dos homens. Durante muitas gerações ainda os homens continuam a viver fora da cidade, em famílias isoladas, que dividem entre si os campos. Cada uma dessas famílias ocupa seu cantão, onde tem seu santuário doméstico, e onde forma, sob a autoridade do pater, um grupo indivisível(7). Depois, em determinados dias, quando se trata dos interesses da cidade, ou das obrigações do culto comum, os chefes dessas famílias dirigem-se à cidade, e se reúnem ao redor do rei, seja para deliberar, seja para assistir ao sacrifício. Se se trata de uma guerra, cada um dos chefes comparece, seguido pela família e os servos (sua manus); dividem-se por fratrias ou por cúrias, e formam o exército da cidade sob as ordens do rei.

CAPÍTULO II

OS PLEBEUS

 

Devemos assinalar agora outro elemento da população que estava abaixo dos próprios clientes, e que, fraco na origem, adquiriu insensivelmente força bastante para derrubar a antiga organização social. Essa classe, que se torna mais numerosa em Roma que em nenhuma outra cidade, chamava-se ali de plebe. É preciso que vejamos a origem e o caráter dessa classe, para compreendermos o papel que desempenhou na história da cidade e da família entre os antigos.

Os plebeus não eram clientes; os historiadores da antiguidade não confundem essas duas classes entre si. Tito Lívio diz algures: “A plebe não quis tomar parte na eleição dos cônsules; os cônsules foram, portanto, eleitos pelos patrícios e seus clientes(1).” — E em outro lugar: “A plebe queixou-se, porque os patrícios tinham muita influência nos comícios, graças aos sufrágios dos clientes(2).” — Lemos em Dionísio de Halicarnasso: “A plebe saiu de Roma, e retirou-se para o monte Sagrado; os patrícios ficaram sozinhos na cidade, juntamente com seus clientes.” — E, mais adiante: “A plebe descontente recusou-se a se alistar; os patrícios tomaram armas juntamente com seus clientes, e fizeram a guerra(3).” — Essa plebe, bem distinta dos clientes, não fazia parte, pelo menos nos primeiros tempos, do que se chamava de povo romano. Em uma velha fórmula de oração, que ainda se repetia na época das guerras púnicas, pedia-se aos deuses que fossem propícios “ao povo e à plebe(4).” — A plebe, portanto, não fazia parte do povo, originalmente. O povo compreendia os patrícios e os clientes; a plebe ficava de fora.

Sobre a primeira formação dessa plebe, os antigos nos dão poucos esclarecimentos. Temos o direito de supor que se compunha, em grande parte, das antigas populações conquistadas e subjugadas. No entanto, ficamos surpreendidos de ler em Tito Lívio, conhecedor das velhas tradições, que os patrícios censuravam os plebeus, não por descenderem de populações vencidas, mas por não terem nem religião, nem família. Ora, essa censura, que já não era merecida nos tempos de Licínio Stolon, e que os contemporâneos de Tito Lívio apenas entendiam, devia remontar à época muito antiga, e nos leva até os primeiros tempos da cidade.

Notamos, com efeito, na própria natureza das antigas idéias religiosas, várias causas que provocaram a formação de uma classe inferior. A religião doméstica não se propagava; nascida em uma família, aí continuava; era necessário que cada família criasse sua crença, seus deuses, seu culto. Ora, pode ter acontecido que famílias inteiras não tivessem o poder espiritual de criar uma divindade, de instituir um culto, de inventar um hino, ou o ritmo de uma prece. Somente por isso essas famílias ficaram em estado de inferioridade em relação às que tinham religião, e não puderam formar sociedade com elas. Pode também ter acontecido que certas famílias perdessem o culto doméstico, ou por negligência, ou por esquecerem os ritos, ou como conseqüência de um daqueles crimes ou máculas que interdiziam ao homem a aproximação do fogo sagrado e a continuação do culto. Aconteceu, enfim, que clientes que sempre seguiram o culto dos patronos, e não conheciam nenhum outro, foram expulsos das famílias às quais estavam ligados, ou as abandonaram espontaneamente. Isso equivalia a renunciar à religião. Acrescentemos ainda que o filho nascido de casamento civil era considerado bastardo, como o nascido de adultério, e a religião doméstica não existia para eles. Todos esses homens, excluídos das famílias e colocados à margem do culto, caíam na classe dos homens sem lar A existência da plebe era conseqüência necessária da natureza exclusiva da organização antiga.

Encontramos essa classe ao lado de quase todas as cidades antigas, mas separadas por uma linha de demarcação. Uma cidade grega é dupla: há a cidade propriamente dita, polis, que se levanta ordinariamente no alto de uma colina; foi fundada com ritos religiosos, e encerra o santuário das divindades políadas. Ao pé da colina há um aglomerado de casas, construídas sem cerimônias religiosas, sem recinto sagrado: é o domicílio da plebe, que não pode morar na cidade santa.

Em Roma a diferença original entre essas duas populações é impressionante. A cidade dos patrícios e de seus clientes é a que Rômulo fundou, de acordo com o ritual, sobre o planalto do Palatino. O domicílio da plebe é o Asilo, espécie de recinto fechado, situado na encosta do monte Capitolino, onde o primeiro rei admitira as pessoas sem lar, que não podia permitir entrassem na cidade. Mais tarde, quando novos plebeus vieram a Roma, como eram considerados estrangeiros para a religião da cidade, foram alojados no monte Aventino, isto é, fora do promoerium e da cidade religiosa(5).

Uma palavra caracteriza esses plebeus: não têm culto; pelo menos os patrícios os censuram por isso. — “Não têm antepassados” — o que quer dizer, no pensamento de seus adversários, que eles não têm antepassados reconhecidos e legalmente admitidos, — “Não têm pais” isto é, em vão procurariam na série dos ascendentes um chefe de família religiosa, um pater. — “Não têm família: gentem non habent” — isto é, só têm uma família natural; quanto à que forma e constitui a religião, a verdadeira gens, eles não a têm(6).

O casamento sagrado para eles não existe, pois, desconhecem os ritos. Não tendo lar, a união por este estabelecida é-lhes proibida. Por isso o patrício, que não conhece outra união regular além da que une o esposo à esposa na presença da divindade doméstica, pode dizer, falando dos plebeus: Connubia promiscua habent more ferarum.

Para os plebeus não há família, nem autoridade paterna. Podem ter sobre os filhos o poder concedido pela força ou sentimento natural; mas essa autoridade santa, de que a religião reveste o pai, é por eles desconhecida.

Para eles não existe direito de propriedade, porque toda propriedade deve ser estabelecida e consagrada por um lar, por um túmulo, pelos deuses termos, isto é, por todos os elementos do culto doméstico. Se o plebeu possui terras, essas não têm caráter sagrado; são profanas, e não conhecem limites. Mas, poderia o plebeu, nos primeiros tempos, possuir terras? Sabemos que em Roma só pode exercer direitos de propriedade quem é cidadão; ora, o plebeu, nos primeiros tempos de Roma, não é cidadão. O jurisconsulto diz que não se pode ser proprietário senão pelo direito dos quirites. A princípio, em Roma o ager romanus era dividido entre as tribos, as cúrias e as gentes(7); ora, o plebeu, que não pertencia a nenhum desses grupos, certamente não entrava na partilha. Esses plebeus sem religião, não têm aquilo que autoriza um homem a tomar posse de um pedaço de terra, fazendo-a sua. Sabemos que habitaram por muito tempo o monte Aventino, onde construíram casas; mas somente depois de três séculos e de muitas lutas é que conseguiram, por fim, a propriedade desse terreno(8).

Para os plebeus não há leis, não há justiça, porque a lei é conseqüência da religião, e o processo é um conjunto de ritos. O cliente tem o benefício do direito de cidadania por intermédio do patrono; para o plebeu esse direito não existe. Um historiador antigo afirma formalmente que o sexto rei de Roma foi o primeiro a promulgar leis para a plebe, enquanto os patrícios já tinham as suas há muito tempo(9). Parece mesmo que essas leis foram depois ab-rogadas, ou que, não se baseando na religião, os patrícios se recusaram a considerá-las, porque lemos em um historiador que, quando se criaram os tribunos, foi necessário promulgar uma lei especial, a fim de proteger-lhes a vida e a liberdade, e que essa lei era concebida nos seguintes termos: “Que todos evitem matar ou ferir os tribunos, como o fariam a qualquer homem da plebe(10).” — Parece, portanto, que existia o direito de ferir ou matar um plebeu, ou, pelo menos, esse crime, cometido contra um homem considerado fora da lei, não era punido legalmente.

Para os plebeus não há direitos políticos. Para começar, não são cidadãos, e nenhum dentre eles pode ser magistrado. Em Roma, durante dois séculos, não há outra assembléia que a das cúrias; ora, as cúrias não compreendiam, nos três primeiros séculos de Roma, senão patrícios e clientes. A plebe não entrou na composição do exército enquanto este era dividido por cúrias.

Mas o que separa mais manifestamente o plebeu do patrício, é que o plebeu não adota a religião da cidade. É impossível investi-lo do sacerdócio. Podemos até acreditar que a prece, nos primeiros séculos, lhe é proibida, e que os ritos não lhe podem ser revelados. É como na Índia, onde “o sudra deve ignorar sempre as fórmulas sagradas”. — O plebeu é estrangeiro, e, conseqüentemente, somente sua presença já torna impuro um sacrifício. Ele é rejeitado pelos deuses. Entre o plebeu e o patrício há toda a distância que a religião pode colocar entre dois homens. A plebe é uma população desprezada e abjeta, fora da religião, fora da lei, fora da sociedade, fora da família. O patrício não pode comparar essa existência senão à do animal, more ferarum. O contato do plebeu é impuro. Os decênviros, em suas primeiras tábuas, haviam-se esquecido de proibir o casamento entre as duas classes, porque os primeiros decênviros eram todos patrícios, e ninguém pensou que semelhante casamento fosse possível.

Vemos por aí como as classes, na idade primitiva das cidades, sobrepunham-se umas às outras. À frente estava a aristocracia dos chefes de família, aqueles que a língua oficial de Roma chamava de patres, que os clientes chamavam de reges, e que a Odisséia chama de basiléis ou ánactes. Abaixo estavam os ramos mais novos das famílias; mais abaixo ainda, os clientes; e abaixo destes ainda, e fora de todas as classes, estava a plebe.

Essa distinção de classes proveio da religião, porque no tempo em que os antepassados dos gregos, dos italianos e dos hindus viviam ainda juntos na Ásia central, a religião havia dito: “O mais velho fará a oração.” — Daqui se originou a superioridade do primogênito em todas as coisas; o ramo mais velho, em todas as famílias, era o ramo sacerdotal e senhorial. A religião no entanto, tinha alguma consideração pelos ramos mais novos, como reserva capaz de substituir um dia o ramo mais velho extinto, e salvar o culto. Tinha ainda alguma consideração pelo cliente, até pelo escravo, porque estes assistiam aos atos religiosos. Mas o plebeu, que não tomava parte alguma no culto, não era tido em consideração alguma. Assim estavam fixadas as classes.

Mas nenhuma das formas sociais que o homem imagina e estabelece é imutável. Esta levava em si um germe de doença e de morte; era essa grande desigualdade. Muitos homens tinham interesse em destruir uma organização social que para eles não representava benefício algum.

CAPÍTULO III

PRIMEIRA REVOLUÇÃO

 

1.° A autoridade política é tirada aos reis

Dissemos que, na origem, o rei havia sido o chefe religioso da cidade, o grão-sacerdote do lar público, e que a essa autoridade sacerdotal acrescentava-se a autoridade política, porque parecia natural que o homem que representava a religião da cidade fosse ao mesmo tempo presidente da assembléia, juiz e chefe de todo o exército. Em virtude desse princípio, aconteceu que tudo o que significava poder no Estado estava reunido nas mãos do rei.

Mas os chefes de família, os patres, e, abaixo deles, os chefes das fratrias e das tribos, formavam ao lado desse rei uma aristocracia muito forte. O rei não era o único rei; cada pater era rei da própria gens; em Roma era até costume antigo chamar esses poderosos patronos pelo nome de rei; em Atenas, cada fratria e cada tribo tinha seu chefe, e, ao lado do rei da cidade, havia os reis das tribos, phylobasiléis. Era uma hierarquia de chefes, todos possuindo, em um domínio mais ou menos extenso, as mesmas atribuições e a mesma inviolabilidade. O rei da cidade não exercia o poder sobre toda a população; o interior das famílias, e toda a clientela, escapavam à sua ação. Como o rei feudal, que não tinha por súditos senão alguns poderosos vassalos, esse rei da cidade antiga não mandava senão nos chefes das tribos e das gentes, dos quais cada um individualmente podia ser tão poderoso quanto ele, e que, reunidos, o eram muito mais. Podemos muito bem pensar que para ele não era muito fácil fazer-se obedecer. Os homens deviam ter por ele grande respeito, porque era o chefe do culto, o guardião do lar; mas sem dúvida eram pouco submissos, porque ele tinha pouca força. Governantes e governados logo se aperceberam de que não estavam de acordo sobre a medida de obediência que lhes era devida. Os reis queriam ser poderosos, e os patres não o queriam assim. Travou-se então uma luta em todas as cidades, entre a aristocracia e os reis.

Por toda parte o resultado da luta foi idêntico: a realeza foi vencida. Mas não nos devemos esquecer de que essa realeza primitiva era sagrada. O rei era o homem que dizia a oração, que fazia o sacrifício, que tinha, enfim, por direito hereditário o poder de atrair para cidade a proteção dos deuses. Não se podia portanto pensar em suprimi-lo: a religião e a salvação da cidade tinham necessidade de um rei. Por isso vemos em todas as cidades, cuja história nos é conhecida, que a princípio não se tocou na autoridade sacerdotal do rei, e que se contentaram com tirar-lhe a autoridade política. Esta não era senão uma espécie de apêndice que os reis haviam acrescentado a seu sacerdócio, e não era santa e inviolável como a dignidade real. Podiam tirá-la do rei, sem que a religião fosse posta em perigo.

A realeza, portanto, foi conservada; mas, despojada de seu poder, tornou-se um simples sacerdócio. “Nas épocas mais antigas — diz Aristóteles — os reis tinham poder absoluto na paz e na guerra; mas depois uns renunciaram por si mesmos a esse poder, outros dele foram privados à força, e não se confiou mais aos reis senão o cuidado dos sacrifícios.” — Plutarco diz o mesmo: “Como os reis se mostravam orgulhosos e severos no comando, a maior parte dos gregos privou-os do poder, deixando-lhes apenas o cuidado da religião(1).” — Heródoto fala da cidade de Cirene, e diz: “Deixaram a Batos, descendente dos reis, o cuidado do culto e a posse das terras sagradas, mas privaram-no de todo o poder de que seus pais haviam gozado.”

Essa realeza, assim reduzida às funções sacerdotais, continuou, a maior parte do tempo, a ser hereditária na família sagrada que outrora assentara o lar e dera início ao culto nacional. Nos tempos do império romano, isto é, sete ou oito séculos depois dessa revolução, havia ainda em Éfeso, em Marselha, em Téspis, famílias que conservavam o título e as insígnias da antiga realeza, e tinham ainda a presidência das cerimônias religiosas(2). Nas outras cidades as famílias sagradas se extinguiram, e a realeza tornara-se eletiva e, ordinariamente, anual.

2.° História dessa revolução em Esparta

Esparta sempre teve reis, e, contudo, a revolução de que falamos realizou-se ali tanto quanto nas outras cidades.

Parece que os antigos reis dórios governaram como senhores absolutos. Mas a partir da terceira geração começaram a surgir discórdias entre os reis e a aristocracia. Durante dois séculos houve uma série de lutas, que fizeram de Esparta uma das cidades mais agitadas da Grécia(3); sabe-se que um desses reis, o pai de Licurgo, foi morto em uma guerra civil(4).

Nada é mais obscuro que a história de Licurgo; seu antigo biógrafo começa por estas palavras: “Nada se pode dizer a seu respeito que não esteja sujeito a controvérsias.” — Pelo menos é certo que Licurgo surgiu em meio a discórdias, “em um tempo em que o governo flutuava em perpétua agitação(5).” — O que resulta mais claramente, de todas as informações que nos chegaram dele, é que sua reforma deu à realeza um golpe de que ela jamais se restabeleceu. — “No reinado de Carilau — diz Aristóteles — a monarquia foi substituída pela aristocracia(6).” — Ora, esse Carilau era rei quando Licurgo fez a reforma. Sabemos, aliás, por Plutarco, que Licurgo não foi encarregado das funções de legislador senão durante uma revolta, na qual o rei Carilau se viu obrigado a procurar asilo em um templo. Licurgo, por um momento, podia ter suprimido a realeza, mas não o fez, julgando a realeza necessária, e a família real inviolável. Mas fez de tal modo que os reis estivessem dali por diante submissos ao senado no que dizia respeito ao governo, não sendo mais que presidente dessa assembléia, e executores de suas decisões. Um século depois, a realeza foi ainda mais enfraquecida, e esse poder executivo lhe foi retirado, sendo confiado a magistrados anuais, chamados éforos.

É fácil julgar, pelas atribuições que se deram aos éforos, o pouco de poder que se deixou aos reis. Os éforos administravam a justiça em matéria civil, enquanto que o senado julgava os processos criminais(7). Os éforos, segundo o voto do senado, declaravam guerra, ou determinavam as cláusulas dos tratados de paz. Em tempos de guerra, dois éforos acompanhavam o rei, e o vigiavam; eles é que fixavam o plano de batalha e comandavam a todas as operações(8). Que restava então aos reis, se lhes tiravam a justiça, as relações exteriores e as operações militares? Restava-lhes o sacerdócio. Heródoto descreve suas prerrogativas: “Se a cidade oferece um sacrifício, eles têm o primeiro lugar no banquete sagrado, onde são servidos por primeiro, recebendo porção dupla. São também os primeiros a fazer a libação, e a pele das vítimas lhes pertence. Cada um deles, duas vezes por mês, recebe uma vítima, que é imolada a Apolo(9).” — “Os reis — diz Xenofonte — oferecem sacrifícios públicos, e recebem a melhor parte das vítimas.” — Se não julgam em matéria civil nem em matéria criminal, são-lhes reservados pelo menos os julgamentos de alguns casos que têm relação com a religião. Em caso de guerra, um dos dois reis marcha sempre à frente das tropas, oferecendo sacrifícios todos os dias, e consultando os presságios. Na presença do inimigo, ele imola as vítimas, e, quando os sinais são favoráveis, dá o sinal de batalha. No combate, é rodeado pelos adivinhos, que lhe indicam a vontade dos deuses, e pelos tocadores de flauta, que fazem ouvir melodias sagradas. Os espartanos dizem que é o rei que comanda, porque ele tem nas mãos a religião e os auspícios; mas são os éforos e os polemarcos que dirigem todos os movimentos do exército(10).

É, portanto, verdade dizer-se que a realeza de Esparta é sobretudo um sacerdócio hereditário. A mesma revolução que suprimiu o poder político do rei em todas as cidades, suprimiu-o também em Esparta. O poder pertence realmente ao senado, que dirige, e aos éforos, que executam. Os reis, em tudo o que não diz respeito à religião, obedecem aos éforos. Por isso Heródoto pode afirmar que Esparta não conhece o regime monárquico, e Aristóteles que o governo de Esparta é uma aristocracia(11).

3.° A mesma revolução em Atenas

Vimos acima qual era o estado primitivo da população da Ática. Certo número de famílias, independentes, e sem nenhum vínculo que as ligasse, dividiam o país entre si; cada uma delas formava uma pequena sociedade, governada por um chefe hereditário. Depois essas famílias se agruparam, e dessa associação nasceu a cidade ateniense. Atribui-se a Teseu o ter concluído a grande obra da unidade da Ática. Mas as tradições acrescentam, acreditamos sem dificuldade que Teseu teve que derrubar muitas resistências. A classe de homens que lhe fez oposição não foi a dos clientes, a dos pobres, que estavam repartidos em povoados e em ghéne. Tais homens apreciaram sobremaneira essa mudança, que lhes dava um chefe a seus chefes, e lhes assegurava recurso e proteção. Os que sofreram com a mudança foram os chefes de família, os chefes dos povoados e das tribos, os basiléis, os phylobasiléis, os eupátridas, que tinham por direito hereditário a autoridade suprema em seus ghénos ou em sua tribo. Eles defenderam como melhor puderam sua independência; quando a perderam, lamentaram-na.

Mas, pelo menos, conservaram tudo o que puderam de sua antiga autoridade. Cada um deles ficou como chefe todo-poderoso de sua tribo ou de seu ghénos. Teseu não pôde destruir uma autoridade que a religião havia estabelecido, e que tornava inviolável. Há mais ainda. Se examinarmos as tradições relativas a essa época, perceberemos que esses poderosos eupátridas não consentiram em se associar para formar uma cidade, senão estipulando que o governo seria realmente federativo, e que cada um deles nele tomaria parte. Houve, é verdade, um rei supremo; mas desde que os interesses comuns estavam em jogo, a assembléia dos chefes devia ser convocada, e nada de importante podia ser feito sem o consentimento dessa espécie de senado.

Essas tradições, na linguagem das gerações seguintes, exprimiam-se mais ou menos assim: Teseu mudou o governo de Atenas, e de monárquico tornou-o republicano. Assim dizem Aristóteles, Isócrates, Demóstenes, Plutarco. Sob essa forma, um pouco falsa, há um fundo de verdade. Teseu, como diz a tradição, “fez voltar a autoridade soberana para as mãos do povo”. — Somente que a palavra povo, démos, que a tradição nos conservou, não tinha nos tempos de Teseu uma aplicação tão extensa como a que teve nos tempos de Demóstenes. Esse povo, ou corpo político, só podia ser então a aristocracia, isto é, o conjunto de chefes dos ghéne(12).

Teseu, ao instituir essa assembléia, não era voluntariamente um inovador. A formação da grande unidade ateniense transformava, contra sua vontade, as condições de governo. Depois que os eupátridas, cuja autoridade continuava intacta nas famílias, reuniram-se em uma mesma cidade, eles constituíam um corpo poderoso, que tinha seus direitos, e podia ter suas exigências. O rei do pequeno rochedo de Cécrops tornou-se rei de toda a Ática; mas, em vez de continuar como rei absoluto, como em seu pequeno povoado, não foi mais que o chefe de um Estado federativo, isto é, o primeiro entre seus iguais.

Um conflito não podia tardar a surgir entre essa aristocracia e a realeza. “Os eupátridas lamentavam o poder verdadeiramente real que cada um deles até agora havia exercido em seu burgo.” — Parece que esses guerreiros-sacerdotes puseram a religião à frente, e pretenderam que a autoridade dos cultos locais havia sido diminuída. Se é verdade, como diz Tucídides, que Teseu tentou destruir os pritaneus dos burgos, não nos devemos admirar que o sentimento religioso se tenha levantado contra ele. Não podemos dizer quantas lutas teve de travar, quantas revoltas teve de reprimir, pela astúcia ou pela força; o certo é que, afinal, ele foi vencido, expulso de Atenas, e morreu no exílio(13).

Os eupátridas, portanto, venceram-no; não suprimiram a realeza, mas escolheram um rei a seu gosto, Menesteu. Depois dele a família de Teseu reconquistou o poder, e o conservou por três gerações, sendo depois substituída por outra família, a dos Melântidas. Toda essa época deve ter sido muito perturbada; mas as lembranças das guerras civis não nos foi conservada com clareza suficiente.

A morte de Codro coincide com a vitória definitiva dos eupátridas. Estes não haviam ainda suprimido a realeza, porque a religião o proibia, mas tiraram-lhe o poder político. O viajante Pausânias, que viveu muito depois desses acontecimentos, mas que consultava com cuidado as tradições, afirma que a realeza perdeu então grande parte de suas atribuições, e “se tornou independente”; o que significa, sem dúvida, que a partir desse tempo ela se tornou subordinada ao senado dos eupátridas. Os historiadores modernos denominam esse período da história de Atenas de arcontado, e chegam a afirmar que a realeza foi então suprimida. Isso não é inteiramente verdadeiro. Os descendentes de Codro se sucederam de pai a filho durante treze gerações. Eles tinham o título de arconte, mas há documentos antigos que lhes dão também o título de reis(14), e já dissemos acima que esses dois títulos eram sinônimos perfeitos. Atenas, durante esse longo período, tinha então reis hereditários, mas ela lhes havia tirado o poder, deixando-lhes apenas as funções religiosas. Foi o que se fez em Esparta.

Ao término de três séculos, os eupátridas encontraram essa realeza religiosa mais forte do que desejavam, e eles a enfraqueceram. Decidiu-se que o mesmo homem não mais seria revestido daquela alta dignidade sacerdotal senão pelo espaço de dez anos. Quanto ao mais, continuaram a acreditar que a antiga família real era a única apta a desempenhar as funções de arconte(15).

Cerca de quarenta anos se passaram assim. Mas um dia a família real manchou-se com um crime. Alegou-se que não poderia mais desempenhar as funções sacerdotais(16), e decidiu-se que, para o futuro, os arcontes seriam escolhidos dentre outras famílias, e que essa dignidade seria acessível a todos os eupátridas. Quarenta anos depois, para enfraquecer ainda mais a realeza, ou para dividi-la entre muitas mãos, tornaram-na anual, e ao mesmo tempo separaram-na em duas magistraturas distintas. Até então o arconte era ao mesmo tempo rei; de agora em diante os dois títulos ficaram separados. Um magistrado, chamado arconte, e outro magistrado, chamado rei, dividiram entre si as atribuições da antiga realeza religiosa. O encargo de velar pela continuação das famílias, de autorizar ou negar a adoção, de receber testamentos, de julgar em matéria de propriedade imobiliária, coisas todas em que a religião estava interessada, foram devolvidos ao arconte. O encargo de celebrar os sacrifícios solenes e de julgar em matéria de impiedade, foram reservados ao rei. Assim o título de rei, título sagrado, que era necessário à religião, perpetuou-se na cidade juntamente com os sacrifícios e o culto nacional. O rei e o arconte, unidos ao polemarca e aos seis tesmótetas, que existiam talvez há muito tempo, completaram o número de nove magistrados anuais, que depois passaram a ser chamados de os nove arcontes, do nome do primeiro dentre eles.

A revolução que privou a realeza de seu poder político aconteceu de formas diversas em todas as cidades. Em Argos, desde a segunda geração dos reis dórios, a realeza enfraqueceu-se, ao ponto “de deixar aos descendentes de Temenos apenas o nome de rei, sem poder algum”; aliás, essa realeza continuou hereditária por muitos séculos(17). Em Cirene, os descendentes de Batos reuniram a princípio em suas mãos o sacerdócio e o poder; mas a partir da quarta geração apenas lhes deixaram o sacerdócio(18). Em Corinto, a realeza transmitiu-se a princípio hereditariamente na família dos Baquíadas; a revolução desejava torná-la anual, mas sem fazê-la sair dessa família, cujos membros a possuíram sucessivamente durante um século(19).

4.° A mesma revolução em Roma

A realeza foi, a princípio, em Roma o que havia sido na Grécia. O rei era o grão-sacerdote da cidade; e, ao mesmo tempo, o juiz supremo; em tempos de guerra, comandava o exército dos cidadãos. A seu lado estavam os chefes de família, patres, que formavam o senado. Não havia senão um rei, porque a religião prescrevia a unidade no sacerdócio e no governo. Mas entendia-se que esse rei devia, em todos os casos importantes, consultar os chefes das famílias confederadas(20). Os historiadores mencionam, desde essa época, uma assembléia popular. Mas precisamos investigar qual podia ser o sentido da palavra povo (populus), isto é, qual era o corpo político no tempo dos primeiros reis. Todas as testemunhas concordam em que esse povo se reunia sempre por cúrias; ora, as cúrias eram a reunião das gentes, e cada gens comparecia em conjunto, e tinha direito a um só voto. Os clientes lá estavam, reunidos ao redor do pater, consultados, talvez, talvez dando sua opinião, contribuindo para formar o voto único que a gens apresentava, mas sem poder divergir da opinião do pater. Essa assembléia das cúrias não podia ser, portanto, outra coisa que a cidade patrícia reunida na presença do rei.

Por aí vemos que Roma encontrava-se nas mesmas condições que as outras cidades. O rei estava na presença de um corpo aristocrático muito fortemente constituído, e que hauria forças na religião. Os mesmos conflitos que vimos na Grécia tornam a aparecer em Roma.

A história dos sete reis é a história dessa longa questão. O primeiro quer aumentar seu poder, e livrar-se da autoridade do senado. Faz-se amar pelas classes inferiores, mas os patres lhe são hostis(21). Morre assassinado em uma reunião do senado.

A aristocracia pensa imediatamente em abolir a realeza, e os patres exercem sucessivamente as funções de rei. É verdade que as classes inferiores se agitam; não querem ser governadas pelos chefes das gentes, e exigem o restabelecimento da realeza(22). Mas os patrícios se consolam, decidindo que ela será de agora em diante eletiva, e estabelecem, com maravilhosa habilidade, as formas da eleição: o candidato será escolhido pelo senado; a assembléia patrícia das cúrias confirmará essa escolha, e, enfim, os áugures patrícios dirão se o novo eleito é do agrado dos deuses.

Numa foi eleito de acordo com essas regras. Mostrou-se muito religioso, mais sacerdote que guerreiro, observador escrupuloso de todos os ritos do culto, e, por conseqüência, muito ligado à constituição religiosa das famílias e da cidade. Foi um rei segundo o coração dos patrícios, e morreu calmamente, em seu leito.

Parece que sob o reinado de Numa a realeza reduziu-se às funções sacerdotais, como acontecera nas cidades gregas. Pelo menos é certo que a autoridade religiosa do rei era completamente distinta de sua autoridade política, e que uma não subentendia necessariamente a outra. A prova está em que havia dupla eleição. Em virtude da primeira, o rei não passava de chefe religioso; se a essa dignidade quisesse juntar o poder político — imperium — era preciso que a cidade lho conferisse por decreto especial. Esse ponto torna-se claro pelo que Cícero nos diz da antiga constituição(23). Desse modo, sacerdócio e poder eram coisas bem distintas; podiam ser colocados nas mesmas mãos, mas para isso eram necessários comícios e eleições duplas.

O terceiro rei reuniu-os certamente em sua pessoa. Teve em suas mãos o sacerdócio e o comando, e foi até mais guerreiro que sacerdote; desprezou, e quis mesmo diminuir a religião, que constituía a força da aristocracia. Vêem-no acolher em Roma uma multidão de estrangeiros, a despeito do princípio religioso que os excluía; ousa mesmo morar no meio deles, no monte Célio. Vêem-no ainda distribuir a plebeus terras, cujos rendimentos, até então, destinavam-se aos gastos feitos com os sacrifícios. Os patrícios acusam-no de haver negligenciado os ritos, e até, coisa mais grave, de modificá-los e alterá-los. Por isso, morre como Rômulo; os deuses dos patrícios ferem-no com o raio, juntamente com seus filhos.

Esse golpe restitui ao senado a autoridade, que nomeia um rei de sua escolha. Âncus observa escrupulosamente a religião, guerreia o menos possível, e passa a vida nos templos. Querido pelos patrícios, morre em seu leito.

O quinto rei é Tarquínio, que obteve a realeza contra a vontade do senado, com o apoio das classes inferiores. É pouco religioso, muito incrédulo; para ele é necessário nada menos que um milagre para convencê-lo da ciência dos áugures. É inimigo das antigas famílias, cria novos patrícios, altera quanto pode a velha constituição religiosa da cidade. Tarquínio é assassinado.

O sexto rei apoderou-se da realeza por surpresa; parece até que o senado nunca o reconheceu como rei legítimo. Lisonjeia as classes inferiores, distribui-lhes terras, desconhecendo o antigo princípio do direito de propriedade; dá-lhes mesmo lugar no exército e na cidade. Sérvio é degolado sobre os degraus do senado.

A querela entre os reis e a aristocracia tomava caráter de luta social. Os reis ligaram-se ao povo, apoiando-se nos clientes e na plebe. Ao patriciado, tão poderosamente organizado, opunham as classes inferiores, já numerosas em Roma. A aristocracia viu-se então às voltas com um perigo duplicado, dos quais o pior não era certamente ter que dobrar-se diante da realeza. Via levantar-se por detrás do rei as classes que desprezava, a plebe, classe sem religião e sem lar. Via-se talvez atacada por seus clientes, no seio da própria família, cuja constituição, direito e religião eram discutidos e postos em perigo. Os reis, portanto, eram para ela inimigos odiosos, que, para aumentar seu poder, queriam perturbar a organização sagrada da família e da cidade.

A Sérvio sucede o segundo Tarquínio, que engana as esperanças dos senadores que o elegeram; ele deseja ser senhor absoluto: de rege dominus extitit. — Faz todo o mal que pode ao patriciado, derruba as cabeças mais altivas, reina sem consultar os patres, faz a guerra e a paz sem pedir-lhes a aprovação. O patriciado parece decididamente vencido.

Enfim, apresenta-se uma ocasião. Tarquínio está longe de Roma; não somente ele, mas o exército que o sustém. A cidade está momentaneamente nas mãos do patriciado. O prefeito da cidade, isto é, o que tem o poder civil na ausência do rei, é um patrício, Lucrécio. O chefe da cavalaria, isto é, o que tem a autoridade militar depois do rei, é um patrício, Júnio(24). Esses dois homens preparam a insurreição. Têm por ajudantes outros patrícios, Valério e Tarquínio Colatino. O local da reunião não é Roma, mas a pequena cidade de Colácia, propriedade de um dos conjurados. Lá eles mostram ao povo o cadáver de uma mulher, a qual, dizem, se suicidara para punir-se pelo crime de um filho do rei. O povo de Colácia amotina-se; dirigem-se a Roma, e repetem a mesma cena. Os espíritos se perturbam, o poder legal de Roma pertence a Júnio e a Lucrécio.

Os conjurados evitam reunir o povo; dirigem-se ao senado. O senado declara que Tarquínio está destronado e a realeza abolida. Mas o decreto do senado deve ser o confirmado pela cidade. Lucrécio, como prefeito da cidade, tem o direito de convocar a assembléia. Reúnem-se as cúrias; elas pensam como os conjurados, e decretam a deposição de Tarquínio e a criação de dois consulados.

Decidido esse ponto principal, deixam o cuidado de nomear os cônsules à assembléia das centúrias. Mas essa assembléia, onde alguns plebeus votam, não vai protestar contra o que os patrícios haviam decidido no senado e nas cúrias? Não, porque toda assembléia romana é presidida por um magistrado que designa o objeto do voto, e ninguém pode deliberar sobre outro assunto. Há mais ainda: ninguém, além do presidente, tem o direito de falar. Se se trata de uma lei, as centúrias só podem votar por sim ou por não. Se se trata de uma eleição, o presidente apresenta os candidatos, e ninguém pode votar senão nos candidatos apresentados. No caso atual, o presidente designado pelo senado é Lucrécio, um dos conjurados. Ele indica como único assunto de voto a eleição dos dois cônsules. Apresenta dois nomes aos sufrágios das centúrias, os de Júnio e de Tarquínio Colatino. Esses dois homens são necessariamente eleitos. O senado depois ratifica a eleição, e, por fim, os áugures a confirmam em nome dos deuses.

Essa revolução não agradou a todos os romanos. Muitos plebeus juntaram-se ao rei, e ligaram-se ao seu destino(25). Em compensação, um rico patrício da Sabina, chefe poderoso de gens numerosa, o orgulhoso Átio Clauso, achou o novo governo tão conforme a suas vistas, que veio estabelecer-se em Roma.

Além do mais, somente foi suprimida a realeza política; a realeza religiosa era santa, e devia continuar. Apressaram-se então em nomear um rei, mas somente para os sacrifícios: rex sacrorum. — Tomaram todas as precauções imagináveis, a fim de que esse rei-sacerdote nunca abusasse do grande prestígio que suas funções lhe davam para se apoderar da autoridade.

CAPÍTULO IV

A ARISTOCRACIA GOVERNA AS CIDADES

 

A mesma revolução, sob formas ligeiramente variadas, declarou-se em Atenas, em Esparta, em Roma, enfim, em todas as cidades cuja história nos é conhecida. Em toda parte foi obra da aristocracia, e teve por efeito suprimir a realeza política, deixando subsistir a realeza religiosa. A partir dessa época, e durante um período cuja duração foi muito desigual para as diversas cidades, o governo da cidade pertence à aristocracia.

Essa aristocracia baseava-se no nascimento e na constituição religiosa das famílias. A fonte de onde brotava eram as mesmas regras que observamos acima no culto doméstico e no direito privado, isto é, a lei da hereditariedade do lar, o privilégio do primogênito, o direito de recitar a oração, ligado ao nascimento. A religião hereditária era o título dessa aristocracia para o domínio absoluto. Ela outorgava-lhe direitos que pareciam sagrados. De acordo com velhas crenças, somente podia ser proprietário de terras quem possuía um culto doméstico; somente era membro da cidade quem tinha em si o caráter religioso que constituía o cidadão; somente podia ser sacerdote quem descendesse de família religiosa; só podia ser magistrado quem tinha o direito de oferecer sacrifícios. O homem que não possuía culto hereditário devia ser cliente de outro, ou, se não o quisesse, ficar fora da sociedade. Durante longas gerações ninguém sequer imaginou que essa desigualdade pudesse ser injusta, e não se pensou em constituir a sociedade de acordo com outras regras.

Em Atenas, desde a morte de Codro até Sólon, toda autoridade ficou nas mãos dos eupátridas. Somente eles podiam ser sacerdotes ou arcontes. Somente eles administravam justiça e conheciam as leis, que não estavam ainda escritas, e cujas fórmulas sagradas eram transmitidas por eles de pai a filho.

Essas famílias conservavam, tanto quanto possível, as antigas formas do regime patriarcal. Não viviam juntas na cidade. Continuavam a viver nos diversos cantões da Ática, cada uma em seu vasto domínio, rodeada de numerosos criados, governadas pelo chefe eupátrida, e praticando, com independência absoluta, seu culto hereditário(1). A cidade ateniense, durante quatro séculos, não foi senão uma confederação desses poderosos chefes de família, que se reuniam em determinados dias para a celebração do culto central, ou deliberarem sobre interesses comuns.

Observamos muitas vezes que a história é muda sobre esse longo período da existência de Atenas, e, em geral, da existência das demais cidades gregas. Ficamos admirados ao ver que se conservou a lembrança de muitos acontecimentos do tempo dos reis, e que não se conservou quase nenhuma lembrança do tempo do governo aristocrático. Sem dúvida porque então aconteceu pouca coisa de interesse geral. A volta ao regime patriarcal suspendera quase por toda parte a vida nacional. Os homens viviam separados, e tinham poucos interesses comuns. O horizonte de cada um era o pequeno grupo ou o pequeno burgo, onde vivia como eupátrida ou como servo.

Também em Roma, cada uma das famílias patrícias vivia em seu domínio, rodeada de clientes. Iam à cidade para as festas do culto público ou para as assembléias. Durante os anos que se seguiram à expulsão dos reis, o poder da aristocracia foi absoluto. Ninguém, além dos patrícios, podia exercer funções sacerdotais na cidade; era na casta sagrada que se deviam escolher exclusivamente as vestais, os pontífices, os sálios, os flâmines, os áugures. Somente os patrícios podiam ser cônsules, somente eles compunham o senado. Se não suprimiram a assembléia das centúrias, onde os plebeus tinham acesso, pelo menos encarou-se a assembléia das cúrias como a única legítima e santa. As centúrias tinham aparentemente em suas mãos a eleição dos cônsules; mas vimos que não podiam votar senão nos nomes apresentados pelos patrícios, e, além do mais, sua decisão era submetida à tríplice ratificação do senado, das cúrias e dos áugures. Somente os patrícios administravam a justiça e conheciam as fórmulas da lei.

Esse regime político não durou em Roma senão poucos anos. Na Grécia, pelo contrário, a aristocracia mandou durante muito tempo. A Odisséia apresenta-nos um quadro fiel desse estado da sociedade na parte ocidental da Grécia. Com efeito, vemos aí um regime patriarcal muito semelhante ao que observamos na Ática. Algumas famílias ricas e grandes dividem o país entre si; numerosos criados cultivam o solo, ou cuidam dos rebanhos; a vida é simples: uma só mesa reúne o chefe e os servidores. Esses chefes são chamados por um nome que em outras sociedades se torna título de pompa, ánactes, basiléis. É assim que os atenienses das épocas primitivas chamavam de basiléus o chefe do ghénos, e os clientes de Roma conservaram o costume de chamar de rex o chefe da gens. Esses chefes de família têm um caráter sagrado; o poeta chama-os de reis divinos. Ítaca é bem pequena, e, todavia, tem grande número desses reis. Entre eles há, na verdade, um rei supremo; mas não tem grande importância, e não parece possuir outra prerrogativa que a de presidir o conselho dos chefes. Parece até, por certos sinais, que esteja sujeito à eleição, e se vê claramente que Telêmaco não será chefe supremo da ilha enquanto os demais chefes, seus iguais, não se resolverem a elegê-lo. Ulisses, voltando à pátria, não parece ter outros súditos além dos servos que lhe pertenciam; quando mata alguns dos chefes, os servos destes tomam armas, e travam uma luta que o poeta nem cogita em censurar. Entre os feaces, Alcínoo tem a suprema autoridade; mas nós o vemos dirigir-se à reunião dos chefes, e podemos notar que não foi ele que convocou o conselho, mas que o conselho é que exige a presença do rei. O poeta descreve uma assembléia da cidade de Feácia; falta muito para podermos considerar esta como uma reunião do povo; somente se reúnem os chefes, individualmente convocados por um arauto, como em Roma pelos comitia calata; sentam-se em bancos de pedra; o rei toma a palavra, e qualifica seus auditores pelo nome de reis portadores de cetros.

Na cidade de Hesíodo, na pedregosa Ascra, encontramos uma categoria de homens que o poeta chama de chefes ou de reis; são os que administram a justiça ao povo. Píndaro também nos mostra uma classe de chefes entre os cadmeenses; em Tebas, o poeta louva a raça sagrada dos espartanos, à qual Epaminondas mais tarde liga seu nascimento(2). Quase não podemos ler Píndaro sem ficarmos impressionados pelo espírito aristocrático que ainda reina na sociedade grega no tempo das guerras médicas, e por aí se percebe como essa aristocracia havia sido poderosa um ou dois séculos antes, porque o que o poeta louva mais em seus heróis é a família; devemos supor que essa espécie de elogio tinha então grande importância, e que o nascimento parecia ainda o supremo bem. Píndaro mostra-nos as grandes famílias que então brilhavam em cada cidade; somente em Egina ele cita os Midílidas, os Teândridas, os Euxênidas, os Blepsíadas, os Caríadas, os Balíquidas. Em Siracusa, louva a família sacerdotal dos Iâmidas, em Agrigento a dos Emênidas, e assim em todas as cidades de que tem ocasião de falar.

Em Epidauro, todo o corpo dos cidadãos, isto é, dos que possuíam direitos políticos, por muito tempo compôs-se apenas de cento e oitenta membros; todos os demais “estavam fora da cidade(3).” — Os verdadeiros cidadãos eram menos numerosos ainda em Heracléia, onde os irmãos mais novos das grandes famílias não tinham direitos políticos(4). Isso aconteceu por muito tempo também em Cnido, em Istros, em Marselha. Em Tera, todo o poder estava nas mãos de algumas famílias, consideradas sagradas. O mesmo acontecia em Apolônia(5). Em Eritréia existia uma classe aristocrática chamada basílidas(6). Nas cidades da Eubéia a classe preponderante era conhecida como a dos cavaleiros(7). Por esse costume podemos notar, a esse respeito, que entre os antigos., como na Idade Média, constituía privilégio combater a cavalo.

A monarquia já deixara de existir em Corinto, quando uma colônia partiu de lá para fundar Siracusa. Também a nova cidade não conheceu a realeza, e a princípio foi governada pela aristocracia. Essa classe chamava-se geômoros, isto é, proprietários. Compunha-se de famílias que, no dia da fundação, haviam distribuído entre si, com todos os ritos ordinários, as partes sagradas do território. Essa aristocracia continuou por muito tempo, durante várias gerações, como senhora absoluta do governo, e conservou o título de proprietários, o que parece indicar que as classes inferiores não tinham direitos sobre o solo(8). Uma aristocracia semelhante foi por muito tempo soberana em Mileto e em Samos.

CAPÍTULO V

SEGUNDA REVOLUÇÃO. TRANSFORMAÇÕES CONSTITUIÇÃO DAS FAMÍLIAS. DESAPARECE O DIREITO DE PRIMOGENITURA. A GENS SE DESMEMBRA

 

A revolução, que havia derrubado a realeza, modificara a forma exterior do governo antes de mudar a constituição da sociedade. Não fora obra das classes inferiores, interessadas em destruir as velhas instituições, mas da aristocracia, que desejava mantê-las. A revolução, pois, não foi feita para mudar a antiga organização da família, mas para conservá-la. Os reis por muitas vezes tiveram a tentação de levantar as classes inferiores, e enfraquecer as gentes, e por isso mesmo é que foram derrubados. A aristocracia não havia operado uma revolução política, senão para impedir uma revolução social e doméstica. Ela tomara o poder nas mãos, menos pelo prazer de dominar do que para defender contra os ataques suas antigas constituições, seus velhos princípios, seu culto doméstico, sua autoridade paterna, o regime da gens e, enfim, o direito privado, que a religião primitiva havia estabelecido.

Esse esforço grande e geral da aristocracia correspondia portanto a um perigo. Ora, parece que, a despeito de seus esforços, e até de sua vitória, o perigo ainda subsistia. As velhas instituições começavam a fraquejar, e graves mudanças iam-se introduzir na constituição íntima das famílias.

O velho regime da gens, fundado pela religião da família, não fora destruído quando os homens passaram a adotar o regime da cidade. Não quiseram ou não puderam renunciar a ele imediatamente, os chefes, preocupados em conservar a autoridade, os inferiores, ainda sem pensar em liberdade maior. Conciliou-se, portanto, o regime da gens com o da cidade. Mas eram, no fundo, dois regimes opostos, que não deviam esperar unir para sempre, e que deviam um dia ou outro combater entre si. A família, indivisível e numerosa, era muito forte e independente para que o poder social não experimentasse a tentação e mesmo a necessidade de enfraquecê-la. Ou a cidade não devia durar, ou devia, com o tempo, destruir a família.

A antiga gens, com seu lar único, seu chefe soberano, seu domínio indivisível, pôde ser concebida enquanto durou o estado de isolamento, e enquanto não existiu outra sociedade além dela; mas desde que os homens se reuniram em cidades, o poder do antigo chefe é forçosamente diminuído, porque, ao mesmo tempo que é soberano em sua casa, é membro de uma comunidade; como tal, interesses gerais obrigam a sacrifícios, e leis gerais obrigam à obediência. A seus próprios olhos, e, sobretudo, aos olhos dos inferiores, sua dignidade foi diminuída. Depois, nessa comunidade, por mais aristocraticamente que seja constituída, os inferiores têm certa importância, fosse embora por causa do número. A família, que compreende vários ramos, e que comparece aos comícios rodeada de uma multidão de clientes, tem naturalmente mais autoridade nas deliberações comuns que a família pouco numerosa, que conta com poucos braços e com reduzido número de soldados. Ora, esses inferiores não tardam a sentir a importância e a força que têm; certo sentimento de orgulho, e o desejo de melhor sorte nasce entre eles. Acrescentemos a isso as rivalidades dos chefes de família, lutando cada um por maior influência, e procurando enfraquecerem-se mutuamente. Acrescentemos ainda que eles se tornam ávidos das magistraturas da cidade, e que, para obtê-las, procuram tornar-se populares, e que, para as gerirem negligenciam ou se esquecem de sua pequena soberania local. Essas causas produziram pouco a pouco uma espécie de relaxamento na constituição da gens; os que tinham interesse em manter essa constituição, respeitavam-na cada vez menos; os que tinham interesse em modificá-la, tornavam-se mais atrevidos e mais fortes.

A regra da indivisão, que havia constituído a força da família antiga, foi aos poucos abandonada. O direito de primogenitura, condição de sua unidade, desapareceu. Não vamos certamente esperar que algum escritor da antiguidade nos forneça a data exata dessa grande mudança. É provável que não houvesse data, porque não se deu em um ano. Essa transformação foi-se fazendo com o tempo, primeiro em uma família, depois em outra, e pouco a pouco, em todas. E quando menos se esperava, estava terminada.

Podemos acreditar também que os homens não passaram de um salto da indivisibilidade do patrimônio à partilha igual entre irmãos. Sem dúvida, entre esses dois regimes houve uma transição. Tudo aconteceu, talvez, na Grécia e na Itália, como na antiga sociedade hindu, onde a lei religiosa, depois de prescrever a indivisibilidade do patrimônio, deu liberdade ao pai para dar parte da herança aos filhos menores, e, depois de exigir que o mais velho recebesse pelo menos uma parte dupla, permitiu que a partilha fosse feita igualmente, acabando mesmo por recomendá-la(1).

Mas sobre tudo isso não temos nenhuma indicação precisa. Um único ponto é certo: que o direito de primogenitura e a indivisão foram a primeira regra, que depois desapareceu.

Essa mudança não se realizou ao mesmo tempo, nem da mesma maneira em todas as cidades. Em algumas a lei manteve por muito tempo a indivisão do patrimônio. Em Tebas e em Corinto estava ainda em vigor no século oitavo. Em Atenas a legislação de Sólon dava ainda certa preferência ao primogênito. Há cidades onde o direito de primogenitura não desapareceu senão depois de alguma insurreição. Em Heracléia, em Cnido, em Istros, em Marselha, os ramos mais novos tomaram armas para destruir ao mesmo tempo a autoridade paterna e o privilégio do irmão mais velho(2). A partir desse momento, uma cidade grega, que até então não contava senão com uma centena de homens que gozavam de direitos políticos, passou a contar com quinhentos ou seiscentos cidadãos. Todos os membros das famílias aristocráticas foram cidadãos, e abriu-se para todos o acesso às magistraturas e ao senado.

Não é possível afirmar em que época o privilégio do primogênito desapareceu de Roma. É provável que os reis, em meio a suas lutas contra a aristocracia, fizeram o possível para suprimi-lo, e para desorganizar assim as gentes. No início da república vemos cento e quarenta novos membros ingressar para o senado. Eles saíam — diz Tito Lívio — das primeiras classes da ordem eqüestre(3). — Ora, sabemos que as seis primeiras centúrias de cavaleiros eram compostas de patrícios(4). Eram, portanto, ainda os patrícios que vinham preencher as vagas do senado. Mas Tito Lívio acrescenta um pormenor bem significativo: a partir desse momento, passaram-se a distinguir duas espécies de senadores: os chamados patres e os chamados conscripti(5). Todos eram igualmente patrícios, mas os patres eram os chefes das cento e sessenta gentes, que ainda subsistiam, e os conscripti eram escolhidos entre os ramos mais novos dessas gentes. Podemos supor, com efeito, que essa classe, numerosa e enérgica, não tenha auxiliado a obra de Bruto e dos patres senão sob a condição de obter direitos civis e políticos. Ela conquistou assim, favorecida pela necessidade que dela tinham, o que a mesma classe havia conquistado pelas armas em Heracléia, em Cnido e em Marselha.

O direito de primogenitura, portanto, desaparece de toda parte, revolução considerável que começou a transformar a sociedade. A gens italiana e o ghénos helênico perderam sua unidade primitiva. Os diferentes ramos se separaram; cada um recebeu daí em diante sua parte de propriedade, seu domicílio, seus interesses particulares, sua independência. Singuli singulas familias incipiunt habere — diz o jurisconsulto. Há na língua latina antiga expressão que parece datar dessa época: familiam ducere — dizia-se do que se destacava da gens, e ia formar uma estirpe a parte, como se dizia ducere coloniam de quem deixava a metrópole, e ia fundar ao longe uma colônia. O irmão, que assim se separava do irmão mais velho, passava a possuir lar próprio, que sem dúvida acendera no lar comum da gens, como a colônia acendia o seu no pritaneu da metrópole. A gens não conservou mais que uma espécie de autoridade religiosa, em relação às diferentes famílias que dela se haviam destacado. Seu culto teve supremacia sobre os demais. Não lhes permitiam esquecer que haviam saído daquela gens, e continuaram a usar seu nome; em dias determinados, as novas famílias se reuniam ao redor do lar comum, para venerar o velho antepassado ou a divindade protetora. Continuaram até a ter um chefe religioso, e é provável que o mais velho conservasse ainda seu privilégio para o sacerdócio, que por muito tempo continuou hereditário. Fora isso, essas famílias eram independentes.

Esse desmembramento da gens teve conseqüências graves. A antiga família sacerdotal, que havia formado um grupo tão bem unido, tão fortemente constituído, tão poderoso, enfraqueceu-se para sempre. Essa revolução preparou e tornou mais fáceis outras modificações.

CAPÍTULO VI

OS CLIENTES SE LIBERTAM

 

1.° O que era, a princípio, a clientela, e como se transformou

Eis ainda uma revolução cuja data não se pode precisar, mas que, certamente, modificou a constituição da família e da própria sociedade. A família antiga compreendia, sob a autoridade de um único chefe, duas classes de categoria desigual: de uma parte, os ramos mais novos, isto é, indivíduos naturalmente livres; de outra, os servos ou clientes, inferiores por nascimento, mas unidos ao chefe por sua participação no culto doméstico. Dessas duas classes, acabamos de ver a primeira sair de seu estado de inferioridade; a segunda há muito tempo deseja libertar-se. Com o tempo, conseguiu-o; a clientela transformou-se, e acabou por desaparecer.

Mudança enorme, que os escritores antigos não narram. Foi assim que, na Idade Média, os cronistas não nos dizem como a população dos campos se transformou pouco a pouco. Há na existência das sociedades humanas grande número de revoluções, cuja lembrança não nos é guardada por nenhum documento. Os escritores não se aperceberam delas, porque aconteceram com extrema lentidão, de maneira insensível, sem lutas visíveis; revoluções profundas e ocultas, que revolveram as bases da sociedade humana, sem que nada aparecesse na superfície, e que permaneciam desapercebidas às próprias gerações que as faziam. A história não pôde compreendê-las senão muito tempo depois de terminadas, quando, comparando duas épocas da vida de um povo, constata entre elas tão grandes diferenças, que se torna evidente que, no intervalo que as separa, houve uma grande revolução.

Se nos limitarmos ao quadro que os escritores nos traçam da clientela primitiva de Roma, tratar-se-ia realmente de uma instituição da idade de ouro. Que há de mais humano que o patrono a defender o cliente na justiça, a sustentá-lo com seu dinheiro, se é pobre, a cuidar da educação de seus filhos? Que há de mais comovente que o cliente, que, por sua vez, sustenta o patrono caído na miséria, paga suas dívidas e dá tudo o que tem para pagar seu resgate(1)? Mas não há tanto sentimento nas leis dos povos antigos. A afeição desinteressada e o devotamento nunca foram próprios de suas instituições. Devemos fazer outra idéia da clientela e do patronado.

O que sabemos com mais certeza sobre o cliente é que ele não pode separar-se do patrono, nem escolher outro, ficando ligado de pai para filho a uma família(2). Bastava que soubéssemos isto para acreditar que sua condição não devia ser muito agradável. Acrescentemos a isso que o cliente não é proprietário da terra, que pertence ao patrono, o qual, como chefe do culto doméstico, e também como membro da cidade, é o único com qualidades para ser proprietário. Se o cliente cultiva o solo, só o faz em nome e em proveito do dono. O cliente não tem propriedade absoluta nem sobre seus objetos móveis, seu dinheiro, seu pecúlio. A prova está em que o patrono pode tirar-lhe tudo isso, para pagar suas dívidas ou resgate. Assim, nada lhe pertence. É verdade que o patrono lhe deve a subsistência, a ele e a seus filhos; mas em troca ele deve seu trabalho ao patrono. Não se pode dizer que seja precisamente escravo; mas tem um senhor ao qual pertence, e a cuja vontade está sujeito em todas as coisas. Toda a vida ele é cliente, como seus filhos o serão depois dele.

Há certa analogia entre o cliente das épocas antigas e o servo da Idade Média. Na verdade, o princípio que os condena à obediência não é o mesmo. Para o servo esse princípio é o direito de propriedade, que se exerce sobre a terra e sobre o homem ao mesmo tempo; para o cliente esse princípio é a religião doméstica, à qual está ligado sob a autoridade do patrono, sacerdote dessa religião. Aliás, para o cliente e para o servo a subordinação é a mesma: um está ligado ao patrono como o outro o está ao senhor; o cliente não pode deixar a gens, como o servo não pode abandonar a gleba. O cliente, como o servo, fica sujeito a um senhor, de pai a filho. Uma passagem de Tito faz supor que lhe é proibido casar fora da gens, como é proibido ao servo casar-se fora da aldeia(3). O certo é que não pode contrair matrimônio sem autorização do patrono. O patrono pode reapossar-se do solo que o cliente cultiva, e do dinheiro que possui, como o senhor pode fazer em relação ao servo. Se o cliente morre, tudo o que usou retorna por direito ao patrono, assim como a sucessão do servo pertence ao senhor.

O patrão não é somente senhor; é também juiz; pode condenar à morte o cliente. Além disso é chefe religioso. O cliente dobra-se sob essa autoridade, ao mesmo tempo material e moral, que o liga de corpo e alma. É verdade que essa religião impõe deveres ao patrono, mas deveres de que ele é o único juiz, e para os quais não existe nenhuma sanção. O cliente não vê nada que o proteja; não é cidadão por si mesmo; se deseja comparecer diante do tribunal da cidade, é necessário que o patrono o leve, e fale por ele. Invocará ele a lei? De que modo, se desconhece suas fórmulas sagradas? Mas, se as conhecesse, a primeira lei para ele é a de nunca testemunhar nem falar contra o patrono. Sem o patrono não havia justiça; contra o patrono não havia recurso.

O cliente não existe apenas em Roma; encontramo-lo entre os sabinos e os etruscos, fazendo parte da manus de cada chefe(4). Existiu na antiga gens helênica tanto quanto na gens italiana. É verdade que não devemos procurá-lo nas cidades dóricas, onde o regime da gens logo desapareceu, e onde os vencidos estão ligados, não à família de um homem, mas a um pedaço de terra. Encontramo-lo em Atenas, e nas cidades jônicas e eólias, sob o nome de teta e pelata. Enquanto dura o regime aristocrático, o teta não faz parte da cidade; fechado em uma família, da qual não pode sair, está sujeito a um eupátrida, que possui a mesma autoridade e caráter do patrono romano.

Podemos presumir que logo surgiu ódio entre patronos e clientes. Não temos dificuldade em imaginar o que era a existência nessa família onde um tinha plenos poderes e o outro nenhum; onde a obediência, sem esperança e sem reservas, estava toda do lado da onipotência sem freios; onde o melhor tinha seus arrebatamentos e seus caprichos; onde o servo mais resignado tinha seus rancores, suas queixas, suas cóleras. Ulisses é um bom patrono: vede que afeição paternal dedica a Eumeu e a Fileto. Mas condena à morte um servo que o insultara sem reconhecê-lo, e as criadas que caíram em faltas, a que sua própria ausência as expusera. Da morte dos pretendentes Ulisses é responsável perante a cidade; mas pela morte dos servos ninguém lhe pede contas.

No estado de isolamento em que a família viveu por tanto tempo, a clientela pôde formar-se e manter-se. A religião doméstica tinha então plenos poderes sobre a alma. O homem, que desempenhava o papel de sacerdote dessa religião, o era por direito hereditário, e aparecia às classes inferiores como uma criatura sagrada. Mais que um homem, era o intermediário entre os homens e Deus. De sua boca saía a prece poderosa, a fórmula irresistível, que atraía o favor ou a cólera da divindade. Diante de tal força era preciso inclinar-se; a obediência era exigida pela fé e pela religião. Além disso, como poderia o cliente ter a tentação de libertar-se? Ele não via outro horizonte que essa família, à qual tudo o ligava. Somente nela encontrava uma vida calma, uma subsistência assegurada; somente nela, se tinha um senhor, tinha também um protetor: somente nela, enfim, encontrava um altar do qual podia se acercar, e deuses que lhe permitiam invocar. Deixar essa família, era colocar-se fora de toda organização social e de todo o direito; era perder os deuses e o direito de rezar.

Mas, fundada a cidade, os clientes das diferentes famílias podiam encontrar-se, conversar, comunicar mutuamente seus desejos ou ódios, comparar os diferentes senhores, e entrever melhor sorte. Depois seu olhar começou a se estender para além do círculo familiar. Viam que fora dela existia uma sociedade, regras, leis, altares, templos, deuses. Sair da família, portanto, não era mais para eles desgraça irremediável. A tentação tornava-se cada dia mais forte; a clientela parecia um fardo cada vez mais pesado, e deixaram aos poucos de acreditar que a autoridade do senhor era legítima e sagrada. Apareceu então no coração desses homens um ardente desejo de liberdade.

Sem dúvida, não encontramos na história de nenhuma cidade a lembrança de uma insurreição geral dessa classe. Se houve lutas a mão armada, ficaram limitadas e ocultas no círculo de cada família. É na família que vemos, durante mais de uma geração, de um lado, enérgicos esforços pela independência, de outro, uma repressão implacável. Em cada casa desenrolou-se longa e dramática história, que hoje é impossível recontar. O que se pode afirmar apenas é que os esforços da classe inferior não ficaram sem resultados. Uma necessidade invencível obrigou pouco a pouco os senhores a ceder alguma coisa de sua onipotência. Quando a autoridade deixa de parecer justa aos súditos, é preciso ainda tempo para que deixe de parecê-lo aos senhores; mas isso vem com o tempo, e então o senhor, que deixa de julgar sua autoridade legítima, defende-a mal, ou acaba por renunciar a ela. Acrescentemos que essa classe inferior era útil, que seus braços, cultivando a terra, representavam a riqueza do senhor, e, empunhando armas, constituíam sua força em meio às rivalidades das famílias, e que, portanto, era prudente satisfazê-la, pois, o interesse juntava-se ao espírito de humanidade para aconselhar concessões.

Parece certo que a condição dos clientes pouco a pouco melhorou. A princípio, viviam na casa do senhor, cultivando juntos o domínio comum. Mais tarde, deu-se a cada um deles um lote de terra particular. O cliente então já devia julgar-se um pouco mais feliz. Sem dúvida, trabalhava ainda em proveito do senhor; a terra não lhe pertencia; ele é que pertencia à terra. Não importa: cultivava-a longos anos seguidos, e passou a amá-la. Estabelecia-se entre a terra e ele, não aquele vínculo que a religião da propriedade havia criado entre a terra e o senhor, mas outro vínculo, o que o trabalho e o próprio sofrimento, podem formar entre o homem que trabalha e a terra que produz.

Depois surgiu novo progresso: não cultivou mais para o senhor, mas para si mesmo. Sob a condição de um tributo, que a princípio deve ter sido variável, mas que depois se tornou fixo, passou a gozar de sua colheita. Seus suores encontraram assim alguma recompensa, e sua vida tornou-se ao mesmo tempo mais livre e mais altiva. “Os chefes de família — diz um antigo — davam porções de terra a seus inferiores, como se eles fossem seus próprios filhos(5).” — Lemos também na Odisséia: “Um senhor benevolente dá ao servo casa e terras”; — e Eumeu acrescenta: “uma esposa desejada”, porque o cliente ainda não pode casar contra a vontade do senhor, que é quem escolhe sua companheira.

Mas esse campo onde vivia, onde estava todo seu trabalho e toda sua satisfação, ainda não é propriedade sua. Porque o cliente não tinha em si o caráter sagrado, que fazia com que o solo pudesse tornar-se propriedade do homem. O lote que ocupava continuava a ostentar o marco sagrado, o deus termo, que a família do senhor implantara outrora. Esse limite inviolável atestava que o campo, unido à família do senhor por vínculo sagrado, não poderia jamais pertencer de fato ao cliente liberto. Na Itália o campo e a casa em que morava o villicus, cliente do patrono, possuíam um lar, o lar familiaris; mas esse lar não pertencia ao lavrador; era o lar do senhor(6). Estabelecia-se desse modo, simultaneamente, o direito de propriedade do patrono e a subordinação religiosa do cliente, que, por mais longe que estivesse do patrono, ainda seguia seu culto.

O cliente, tornando-se possuidor da terra, sofria por não ser proprietário, e aspirava vir a sê-lo. Pôs toda sua ambição em fazer desaparecer desse campo, que lhe parecia seu por direito de trabalho, o marco sagrado, que o transformava em propriedade perpétua do antigo senhor.

Vemos claramente que na Grécia os clientes alcançaram a meta desejada, mas não sabemos como. Quanto tempo e esforços foram necessários para alcançá-la só o podemos imaginar. Talvez na antiguidade acontecesse a mesma série de transformações sociais que a Europa presenciou na Idade Média, quando os escravos dos campos tornaram-se servos da gleba, transformando-se de servos à mercê dos senhores em servos abonados, para enfim tornarem-se camponeses proprietários.

2.° A clientela desaparece de Atenas. A obra de Sólon

Essa espécie de revolução está nitidamente assinalada na história de Atenas. A queda da realeza teve como efeito reavivar o regime do ghénos; as famílias haviam retomado seu modo de vida isolada, e cada uma recomeçara a formar um pequeno Estado, que tinha como chefe um eupátrida, e por súditos a multidão de clientes ou servidores, que a antiga língua chamava de tetas(7). Esse regime parece haver pesado duramente sobre a população ateniense, pela má lembrança que dele guardou. O povo considerou-se tão desgraçado, que a época precedente parecia-lhe ter sido uma espécie de idade de ouro; teve saudades dos reis, e começou a imaginar que sob a monarquia havia sido feliz e livre, gozando de igualdade, e que somente depois da queda dos reis é que haviam aparecido o sofrimento e a desigualdade. Era uma ilusão, como todo povo costuma ter; a tradição popular colocava o começo da desigualdade lá onde o povo havia começado a achá-la odiosa. A clientela, essa espécie de servidão, tão velha quanto a constituição da família, faziam-na datar da época em que os homens pela primeira vez sentiram seu peso e compreenderam sua injustiça. Todavia, é certo que não foi no século sétimo que os eupátridas estabeleceram as duras leis da clientela. Apenas conservaram-nas, e isso foi seu único erro: manter essas leis além do tempo em que os povos as aceitavam sem gemer, contra a vontade dos homens. Os eupátridas dessa época eram, talvez, senhores menos rigorosos do que seus antepassados, e todavia, foram mais detestados.

Parece que, mesmo sob o domínio da aristocracia, a condição da classe inferior melhorou, porque então vemo-la claramente obter a posse das terras, sob a única condição de pagar tributo, que consistia na sexta parte da colheita(8). Esses homens estavam assim quase emancipados; com casa própria, e longe dos olhos do senhor, respiravam mais à vontade, e trabalhavam em seu proveito.

Mas a natureza humana é de tal modo constituída, que à medida que sua sorte melhorava, sentiam mais amargamente o que ainda lhes restava de desigualdade. Não ser cidadão, não tomar parte na administração da cidade, não lhes importava tanto; mas não poder ser proprietários da terra sobre a qual viviam e morriam, era o que mais os tocava. Acrescentemos ainda que tudo o que possuíam de suportável em sua presente condição carecia de estabilidade, porque, se na verdade eram donos da terra, nenhuma lei formal assegurava-lhes a posse ou independência dela resultante. Vemos em Plutarco que o antigo patrono podia apoderar-se novamente do antigo servo; se o tributo anual não havia sido pago, ou por outra qualquer causa, esses homens recaíam em uma espécie de escravidão.

Portanto, graves questões se agitaram na Ática durante quatro ou cinco gerações seguidas. Já não era mais possível que os homens da classe inferior continuassem naquela posição instável e irregular, à qual haviam sido conduzidos por um progresso insensível; então, ou perdendo essa posição, tornariam a cair entre os laços rígidos da clientela, ou deviam subir à categoria de proprietários e de homens livres.

Podemos imaginar todos os esforços feitos por parte do lavrador, antigo cliente, e toda a resistência da parte do proprietário, antigo patrono. Não houve guerra civil, e por isso os anais atenienses não nos conservaram a lembrança de nenhum combate. Foi uma guerra doméstica, em cada burgo, em cada casa, de pais a filhos.

Essas lutas parecem ter tido resultados diversos, de acordo com a natureza do solo dos diversos cantões da Ática. Na planície, onde o eupátrida tinha seu principal domínio, e onde sempre estava presente, sua autoridade manteve-se quase intacta sobre o pequeno grupo de servos que estavam continuamente debaixo de seus olhos; por isso os pedienses se mostraram geralmente fiéis ao antigo regime. Mas aqueles que trabalhavam duramente nos flancos das montanhas, os diacrienses, mais longe dos senhores, mais habituados à vida independente, mais atrevidos e mais corajosos, guardavam no fundo do coração ódio violento para com o eupátrida, e uma vontade firme de liberdade. Eram sobretudo esses homens que se indignavam por ver “os limites sagrados” do campo do senhor, e por sentirem “a escravidão de suas terras(9).” — Quanto aos habitantes dos cantões vizinhos ao mar, os paralienses, a propriedade do solo tentava-os menos; tinham à sua frente o mar, o comércio e a indústria. Vários haviam-se tornado ricos, e, com a riqueza, eram quase livres. Não participavam, portanto, das ambições ardentes dos diacrienses, e não sentiam bastante ódio pelos eupátridas. Mas não sentiam tampouco a covarde resignação dos pedienses; exigiam mais estabilidade em sua condição, e direitos melhor assegurados.

Sólon deu satisfação a seus desejos na medida do possível. Há uma parte da obra desse legislador que os antigos nos transmitiram muito imperfeitamente, mas que parece constituir sua parte principal. Antes dele, a maior parte dos habitantes da Ática estava ainda reduzida à posse precária do solo, com perigo até de voltar à servidão pessoal. Depois, dele, não vemos mais essa numerosa classe de homens; não vemos mais nem os rendeiros sujeitos a tributos, nem “a terra escrava”, e o direito de propriedade torna-se acessível a todos. Houve uma grande transformação, cujo autor só pode ter sido Sólon.

É verdade que, se dermos atenção às palavras de Plutarco, Sólon nada mais fez do que suavizar a legislação sobre as dívidas, tirando ao credor o direito de escravizar o devedor. Mas devemos olhar de perto o que um escritor, muito posterior a essa época, nos diz sobre essas dívidas, que perturbaram a cidade ateniense, como todas as cidades da Grécia e da Itália. É difícil acreditar que antes de Sólon houvesse tal circulação de dinheiro, a ponto de haver muitos credores e devedores. Não julguemos esse tempo pelos que se lhe seguiram. O comércio então era reduzido; o crédito era desconhecido, e os empréstimos deviam ser muito raros. Sobre que garantias o homem, que não era proprietário, podia pedir um empréstimo? Em nenhuma sociedade é costume emprestar-se a quem nada tem. Na verdade, afirma-se, acreditando-se mais nos tradutores de Plutarco que no próprio Plutarco, que o devedor hipotecava a terra(10). Mas, mesmo supondo que essa terra fosse propriedade sua, ele não a poderia hipotecar, porque o sistema de hipotecas ainda era desconhecido, e estava em contradição com a natureza do direito de propriedade(11). Nesses devedores, de que nos fala Plutarco, devemos ver os antigos servos; em suas dívidas, o tributo anual, que devem pagar aos antigos senhores; na servidão em que caem, devemos ver a volta à antiga clientela.

Sólon suprimiu, talvez, o tributo, ou, mais provavelmente, reduziu-o de tal modo, que facilitou o pagamento e acrescentou que para o futuro a falta de pagamento não faria o homem voltar à servidão.

Fez mais. Antes dele, os antigos clientes, transformados em donos da terra, não podiam tornar-se proprietários, porque sobre seus campos levantava-se sempre o marco sagrado e inviolável do antigo patrono. Para a libertação da terra e do lavrador era necessário que esse marco desaparecesse. Sólon derrubou-o; encontramos o testemunho dessa grande reforma em alguns versos do próprio Sólon: “Era uma obra inesperada — diz ele — e eu a terminei com a ajuda dos deuses. Atesta-o a deusa mãe, a terra escura, da qual em muitos lugares arranquei os limites, a terra que era escrava, e que agora é livre.” — Fazendo isto, Sólon realizara uma revolução considerável. Pusera de lado a antiga religião da propriedade, que, em nome do deus Termo imóvel, retinha a terra em um pequeno número de mãos. Arrancara a terra à religião, para entregá-la ao trabalho. Suprimira, com a autoridade do eupátrida sobre o solo, sua autoridade sobre o homem, e podia afirmar em seus versos: “Eu libertei os que sobre esta terra sofriam cruel servidão, e tremiam diante do senhor.”

É provável que essa libertação é a que os contemporâneos de Sólon chamavam de seisachthéia (sacudir o jugo). As gerações seguintes, que, uma vez habituadas a liberdade, não queriam ou não podiam acreditar que seus pais haviam sido servos, explicaram essa palavra como se assinalasse apenas uma abolição de dívidas. Mas ela tem uma energia que nos revela uma revolução mais importante. Acrescentemos esta frase de Aristóteles, que, sem entrar na redação da obra de Sólon, diz simplesmente: “Ele acabou com a escravidão do povo(12).”

3.° Transformação da clientela em Roma

Essa guerra entre clientes e patrões tomou também grande período da existência de Roma. Tito Lívio, na verdade, nada diz a respeito, porque não tem o hábito de observar de perto a transformação das instituições; aliás os anais dos pontífices, e os documentos análogos, que haviam sido compulsados pelos antigos historiadores que Tito Lívio consultava, não deviam trazer a história dessas lutas domésticas.

Uma coisa, pelo menos, é certa. Roma, em seus primeiros tempos, teve clientes; ficaram-nos mesmo testemunhos bem precisos de sua dependência em relação aos patronos. Se vários séculos depois procuramos esses clientes, não os encontramos mais. O nome ainda existe, mas não a clientela, porque não há nada mais diverso dos clientes dos primeiros tempos que esses plebeus dos tempos de Cícero, que se diziam clientes de um rico para terem direito à espórtula.

Mas há uma classe que se assemelha mais à dos antigos clientes; é a dos libertos(13). No fim da república, como nos primeiros tempos de Roma, o homem, saindo da servidão, não se torna, imediatamente, homem livre e cidadão. Continua sujeito ao senhor. Outrora chamavam-no patrono, e assim continuam a chamá-lo. O liberto, de nome. Quanto ao senhor, nem o nome mudou: chamavam-no patrono, e assim continuam a chamá-lo. O liberto, como outrora o cliente, continua ligado à família, da qual leva o nome, como o antigo cliente. Ele depende do patrono; deve-lhe não somente reconhecimento, mas serviços, cuja medida só o senhor pode determinar. O patrono tem direito de justiça sobre o liberto, como já o tinha sobre o cliente; pode fazê-lo voltar à escravidão por crime de ingratidão(14). O liberto, portanto, lembra exatamente o antigo cliente. Entre eles não há senão uma diferença: outrora era-se cliente de pai a filho; agora a condição de liberto cessa na segunda, ou, pelo menos, na terceira geração. A clientela, portanto, não desapareceu; ela ainda prende o homem no momento em que a servidão o liberta; apenas deixou de ser hereditária. Isso já é uma mudança considerável; é impossível precisar a época em que se deu.

Podemos muito bem adivinhar os sucessivos abrandamentos por que passou a condição do cliente, e os degraus que o levaram a conseguir o direito de propriedade. No início o chefe da gens cede-lhe um lote de terra para cultivar(15). Não muito depois ele se torna possuidor vitalício desse lote, contanto que contribua para todas as despesas do antigo patrono. As disposições tão duras da antiga lei, que o obrigam a pagar o resgate do patrono, o dote da filha, ou suas multas judiciais, provam, pelo menos, que no tempo em que essa lei foi escrita ele já podia possuir pecúlio. O cliente em seguida dá mais um passo: obtém o direito de, ao morrer, transmitir o que possui ao filho; é verdade que, na falta de um filho, seus bens voltam ainda às mãos do patrono. Mas eis novo progresso: o cliente sem filhos obtém o direito de fazer testamento. Aqui o costume hesita e varia; ora o patrono retoma a metade dos bens, ora a vontade do testador é inteiramente respeitada; em todo caso, seu testamento sempre tem valor(16). Assim o cliente, se ainda não se pode dizer proprietário, tem pelo menos regalias tão grandes quanto possível.

Sem dúvida não se trata ainda da liberdade completa. Mas nenhum documento permite-nos fixar a época em que os clientes se libertaram definitivamente das famílias dos patrícios. Há vários textos de Tito Lívio(17) que, tomados ao pé da letra, mostram que desde os primeiros anos da república os clientes eram cidadãos. Há grandes probabilidades de que já o fossem nos tempos do rei Sérvio; talvez votassem nos comícios curiais desde a fundação de Roma. Mas não se pode por aí concluir que fossem desde então libertos, porque não é possível que os patrícios achassem interessante dar a seus clientes direitos políticos, fazendo-os votar nos comícios, sem por isso consentirem em dar-lhes direitos civis, isto é, em libertá-los de sua autoridade.

Não parece que a revolução que liberta os clientes de Roma tenha terminado de um só golpe, como em Atenas. Ela acontece muito lentamente, e de maneira quase imperceptível, sem que nenhuma lei formal jamais a tenha consagrado. Os laços da clientela alargaram-se pouco a pouco, e o cliente afastou-se insensivelmente do patrono.

O rei Sérvio fez uma grande reforma em vantagem dos clientes: modificou a organização do exército. Antes dele o exército marchava dividido em tribos, em cúrias, em gentes; era a divisão patriciana; cada chefe de gens ficava à testa de seus clientes. Sérvio dividiu o exército em centúrias: cada soldado teve um lugar de acordo com sua riqueza. Resultou daí que o cliente não marchou mais ao lado do patrono, não o reconhecendo mais como chefe no combate, tomando assim o hábito da independência.

Essa mudança causou outra na constituição dos comícios. Antes a assembléia dividia-se em cúrias e em gentes, e o cliente, quando votava, fazia-o sob os olhos do senhor. Mas, estabelecendo-se a divisão por centúrias nos comícios como no exército, o cliente não se encontrava mais ao lado do patrono. É verdade que a velha lei mandava ainda que votasse em conformidade com ele, mas como poderiam controlar-lhe o voto?

Já era muito separar o cliente do patrono nos momentos mais solenes da vida: ao combater e ao votar. A autoridade do patrono viu-se muito diminuída, e o que ainda lhe restava, dia a dia lhe era mais contestado. Desde que o cliente experimentou um pouco de independência, passou a desejá-la completa. Aspirava libertar-se da gens, e ingressar na plebe, onde seria livre. Quantas ocasiões se apresentaram! No tempo dos reis, estava certo de sua ajuda, porque eles só desejavam enfraquecer as gentes. Sob a república, encontrava a proteção da plebe e dos tribunos. Muitos clientes assim se libertaram, e a gens não conseguiu mais dominá-los. Em 472 antes de Cristo o número dos clientes era ainda considerável, pois a plebe queixava-se de que, por seus sufrágios nos comícios centuriais, faziam pender a balança para o lado dos patrícios(18). Pela mesma época, como a plebe recusava-se a se alistar, os patrícios formaram um exército apenas de clientes(19). Parece, todavia, que esses clientes já não eram tão numerosos para cultivar as terras dos patrícios, que se viam obrigados a pedir auxílio à plebe(20). É verossímil que a criação do tribunal, amparando os clientes fugitivos contra os antigos patronos, e tornando a situação dos plebeus mais invejável e mais segura, apressou esse movimento gradual em direção à liberdade. Em 372 não havia mais clientes, e certo Mânlio podia dizer à plebe: “Tanto quanto haveis sido clientes ao lado de cada patrono, sereis agora outros tantos adversários contra um só inimigo(21).” — Desde essa época não vemos mais na história de Roma esses antigos clientes, homens hereditariamente ligados à gens. A primitiva clientela é substituída por uma clientela de novo gênero, vínculo voluntário e quase fictício, que já não acarreta as mesmas obrigações. Já não se distinguem mais em Roma as três classes dos patrícios, dos clientes, dos plebeus. Restam apenas duas, pois os clientes misturaram-se à plebe.

Os Marcelos assim parecem pertencer a um ramo destacado da gens Cláudia. Seu nome era Cláudios; mas, como não eram patrícios, não podiam fazer parte da gens senão como clientes. Há muito tempo livres, enriquecidos por meios que nos são desconhecidos, elevaram-se primeiramente às dignidades da plebe, e mais tarde às da cidade. Durante vários séculos a gens Cláudia parece haver esquecido seus antigos direitos sobre os Marcelos. Contudo, um dia, nos tempos de Cícero(22), lembra-se disso inopinadamente. Um liberto ou cliente dos Marcelos morrera, e deixara uma herança que, de acordo com a lei, devia retornar ao patrono. Os Cláudios, patrícios, pretenderam que os Marcelos, como clientes que eram, não podiam eles próprios ter clientes, e que seus libertos deviam cair, juntamente com a herança, nas mãos do chefe da gens patrícia, única capaz de exercer direitos de patronado. Esse processo deixou o público de Roma muito admirado, e causou embaraços aos jurisconsultos; o próprio Cícero achou o caso muito obscuro, o que não teria acontecido quatro séculos antes, quando a gens Cláudia teria vencido facilmente a causa. Mas, nos tempos de Cícero, o direito sobre o qual baseavam sua reclamação era tão antigo que já o haviam esquecido, fazendo com que o tribunal resolvesse a causa em favor dos Marcelos. A antiga clientela não existia mais.

CAPÍTULO VII

TERCEIRA REVOLUÇÃO
A PLEBE PASSA A FAZER PARTE DA CIDADE

 

1.° História geral dessa revolução

As mudanças que, com o correr do tempo, foram surgindo na constituição da família provocaram outras na constituição da cidade. A antiga família aristocrática e sacerdotal achava-se enfraquecida. Desaparecendo o direito de primogenitura, perdeu a unidade e o vigor; com a quase total libertação dos clientes, perdera a maior parte dos súditos. Os homens da classe inferior não faziam mais parte das gentes; vivendo fora delas, constituíram corpo à parte. Por isso, a cidade mudou de aspecto; em lugar do que fora precedentemente, um ajuntamento mais ou menos frágil de tantos pequenos estados quantas eram as famílias, a união se fez, por uma parte, entre os membros patrícios das gentes, e por outra entre os homens de categoria inferior. Houve assim dois grandes corpos frente à frente, duas sociedades inimigas. Não houve mais, como na época precedente, uma luta obscura em cada família, mas a guerra aberta em cada cidade. Das duas classes, uma queria que a constituição religiosa da cidade fosse mantida, e que o governo, como o sacerdócio, continuasse nas mãos das famílias sagradas. A outra queria destruir as antigas barreiras, que a colocavam fora do direito, da religião, da sociedade política.

Na primeira parte da luta, a vantagem estava do lado da aristocracia de nascimento. Na verdade, esta não tinha mais seus antigos súditos, e sua força material desaparecera, mas restava-lhe ainda o prestígio da religião, sua organização regular, seu hábito de comando, suas tradições, seu orgulho hereditário. Ela não duvidava de seu direito; defendendo-se, julgava defender a própria religião. O povo tinha a seu favor apenas o grande número. Acostumado a respeitar, não lhe era fácil livrar-se desse hábito. Além do mais, não tinha chefes; faltava-lhe qualquer princípio de organização. A princípio, não era um corpo bem constituído e forte, mas uma multidão desunida. Se nos lembrarmos de que os homens não haviam encontrado nenhum outro princípio de associação além da religião hereditária das famílias, e que não tinham idéia de nenhuma autoridade que não derivasse do culto, compreenderemos facilmente que essa plebe, que estava fora do culto e da religião, não pôde formar a princípio uma sociedade regular, e que lhe foi necessário muito tempo para encontrar em si mesma os elementos de disciplina e as regras de governo.

Essa classe inferior, em sua fraqueza, não viu a princípio outro meio de combater a aristocracia senão opondo-lhe a monarquia.

Nas cidades onde a classe popular já estava formada ao tempo dos antigos reis, a plebe dá a eles todo o apoio e força de que dispunha, encorajando-os a aumentar seu poder. Em Roma, exigiu o estabelecimento da realeza depois de Rômulo; fez nomear Hostílio; fez rei a Tarquínio, o Antigo; apoiou Sérvio, e lamentou a sorte de Tarquínio, o Soberbo.

Quando os reis por toda parte já estavam vencidos, e a aristocracia se tornou senhora, o povo não se limitou a lamentar a monarquia: quis restaurá-la sob nova forma. Na Grécia, durante o século VI, conseguiu, em geral, eleger os próprios chefes; não podendo chamá-los de reis, porque esse título implicava a idéia de funções religiosas, e não podia ser ostentado senão pelas famílias sacerdotais, chamou-os de tiranos(1).

Seja qual for o sentido original dessa palavra, o certo é que não a foram buscar na língua religiosa; não se podia aplicá-la aos deuses, como se fazia com a palavra rei; não a pronunciavam em suas preces. Esse vocábulo, com efeito, designava algo muito novo entre os homens, uma autoridade que não derivava do culto, um poder que a religião não havia estabelecido. O aparecimento dessa palavra na língua grega marca a aparição de um princípio que as gerações precedentes não haviam conhecido: a obediência do homem ao homem. Até essa época não tivera outros chefes de Estado além dos chefes da religião; somente estes mandavam na cidade, faziam os sacrifícios e invocavam os deuses em seu favor; obedecendo a eles, não obedecia senão à lei religiosa, não se submetiam senão à divindade. A obediência a um homem, a autoridade dada a esse homem por outros homens, um poder de origem e natureza apenas humana, era coisa que os antigos eupátridas haviam desconhecido, e isso não foi pensado senão no dia em que as classes inferiores rejeitaram o jugo da aristocracia, procurando nova forma de governo.

Citemos alguns exemplos. Em Corinto “o povo suportava penosamente a dominação dos baquíadas; Cípselo, testemunha do ódio que o povo lhes devotava, e vendo que este procurava um chefe que o conduzisse à libertação”, ofereceu-se para o cargo; o povo aceitou-o, constituiu-o tirano, expulsou os baquíadas, e obedeceu a Cípselo(2). Mileto teve como tirano certo Trasíbulo; Mitilene obedeceu a Pítaco, Samos a Polícrates. Encontramos tiranos em Argos, em Epidauro, em Megara, em Cálcis, durante o século VI. Sícion teve tiranos pelo espaço de cento e trinta anos ininterruptos(3). Entre os gregos da Itália, vemos tiranos em Cumes, em Crotona, em Síbaris, por toda parte. Em Siracusa, no ano de 485, a classe inferior tornou-se senhora da cidade, e expulsou a classe aristocrática; mas ela nem pôde manter-se, nem governar, e, ao fim de um ano, teve que escolher um tirano(4).

Por toda a parte esses tiranos, com mais ou menos violência, seguiam a mesma política. Um tirano de Corinto pediu certo dia a um tirano de Mileto conselhos para bem governar. Este, por única resposta, cortou as espigas de trigo que se elevavam acima das outras. Assim, sua regra de conduta era derrubar os que se distinguiam, e ferir a aristocracia apoiando-se no povo.

A plebe romana a princípio conspirou para restabelecer no trono a Tarquínio. Tentou em seguida fazer tiranos, e lançou olhos sucessivamente sobre Publícola, Espúrio Cássio e Mânlio. A acusação que o patriciado faz freqüentemente àqueles dentre os seus que se tornam populares não deve ser pura calúnia. O medo dos poderosos confirma os desejos da plebe.

Mas é necessário notar que, se o povo, na Grécia e em Roma, procurou restaurar a monarquia, não o fez por preferir esse regime. Gostava tanto dos tiranos quanto detestava a aristocracia, A monarquia era para ele um meio de vencer e de se vingar; mas jamais esse governo, que se originara no direito da força, e não se baseava em nenhuma tradição sagrada, lançou raízes no coração dos povos. Escolhiam um tirano para as necessidades da luta; deixavam-no depois no poder por reconhecimento ou por necessidade; mas, passados alguns anos, e passada a lembrança da dura oligarquia, deixavam-no cair. Essa forma de governo nunca atraiu os gregos; aceitaram-na apenas como recurso passageiro, à espera de que o partido popular encontrasse melhor regime, ou sentisse forças para governar-se a si próprio.

A classe inferior cresceu pouco a pouco. Há progressos que se realizam obscuramente, e que, todavia, decidem o futuro de uma classe, e transformam uma sociedade. Pelo sexto século antes de nossa era, a Grécia e a Itália viram surgir uma nova fonte de riquezas. A terra não bastava mais às necessidades do homem; o bom gosto dirigia-o para o belo e para o luxo; as artes nasciam, e a indústria e o comércio tornaram-se necessários. Pouco a pouco constituiu uma riqueza mobiliária, cunhou moedas, apareceu o dinheiro. Ora, a aparição do dinheiro era uma grande revolução. O dinheiro não estava sujeito às mesmas condições de propriedade que a terra; era, de acordo com expressão do jurisconsulto, res nec mancipi; podia passar de mão em mão sem nenhuma formalidade religiosa, e chegar sem obstáculo até o plebeu. A religião, que marcara a propriedade, nada podia sobre o dinheiro.

Os homens das classes inferiores conheceram então outra ocupação, além do cultivo da terra; apareceram os artesãos, os navegantes, os chefes de indústria, os comerciantes; logo surgiram entre eles os primeiros ricos. Singular novidade! Antes apenas os chefes das gentes podiam ser proprietários, e eis que agora antigos clientes e plebeus ricos ostentam grande opulência. Além disso, o luxo que enriquecia o homem do povo empobrecia o eupátrida; em muitas cidades, principalmente em Atenas, viu-se parte dos membros do corpo aristocrático cair na miséria. Ora, uma sociedade na qual a riqueza muda de lugar, as classes não tardarão em fazer o mesmo.

Outra conseqüência dessa mudança foi que, no mesmo povo, estabeleceram-se distinções e categorias, como se faz necessário em qualquer sociedade humana. Algumas famílias tornaram-se consideradas; alguns nomes pouco a pouco foram adquirindo importância. Formou-se na plebe uma espécie de aristocracia; não se tratava de um mal; a plebe deixava de ser massa confusa, e começava a assemelhar-se a um corpo bem constituído. Possuindo classes diversas, podia escolher chefes, sem ter mais necessidade de escolher entre os patrícios o primeiro ambicioso que aparecesse com vontade de reinar. Essa aristocracia popular mostrou bem cedo as qualidades que acompanham ordinariamente a riqueza conquistada pelo trabalho, isto é, o sentimento do valor pessoal, o amor de uma liberdade calma, e esse espírito de sabedoria que, desejando progredir, teme as aventuras. A plebe deixou-se guiar por essa elite, que constituía seu orgulho. Renunciou aos tiranos logo que sentiu possuir em si os elementos capazes de melhor governar. Enfim, a riqueza tornou-se, por algum tempo, como veremos em seguida, um princípio de organização social.

Há ainda uma transformação da qual devemos falar porque ajudou fortemente a classe inferior a se elevar: é a que se deu com a arte militar. Nos primeiros séculos da história das cidades a força dos exércitos estava na cavalaria. O verdadeiro guerreiro era o que combatia sobre um carro, ou montado a cavalo; o soldado de infantaria, pouco útil no combate, era pouco estimado. Por isso a antiga aristocracia reservara para si, em toda parte, o direito do combater a cavalo(5), e até em algumas cidades os nobres davam a si mesmos o título de cavaleiros. Os celeres de Rômulo, os cavaleiros romanos dos primeiros séculos, eram todos patrícios. Entre os antigos a cavalaria foi sempre o exército nobre. Mas pouco a pouco a infantaria foi adquirindo importância. O progresso na fabricação das armas e o aparecimento da disciplina permitiram-lhe resistir à cavalaria. Obtida essa vantagem, a infantaria logo tomou os primeiros lugares nas batalhas, porque era mais maleável, e suas manobras mais fáceis; os legionários e os hoplitas constituíram daí por diante a força dos exércitos. Ora, legionários e hoplitas eram plebeus. Acrescente-se a isso que a marinha progrediu, sobretudo na Grécia, que houve batalhas navais, e que o destino de uma cidade ficou muitas vezes entre as mãos dos remeiros, isto é, dos plebeus. Ora, a classe que é bastante forte para defender uma sociedade o é também para conquistar direitos, e exercer sobre ela legítima influência. O estado político e social de uma nação está sempre em relação com a natureza e a composição política dos exércitos.

Enfim, a classe inferior conseguiu ter também sua religião. Aqueles homens tinham no coração, podemos supor, o sentimento religioso, que é inseparável de nossa natureza, e que nos faz sentir necessidade de adoração e de preces. A plebe, portanto, sofria, por se ver afastada de religião pelo antigo princípio que prescrevia que cada deus pertencia a uma família, e que o direito de rezar não se transmitia senão com o sangue. Assim, trabalharam também para ter um culto.

É impossível entrar aqui nos pormenores dos esforços que fizeram, dos meios que imaginaram, das dificuldades ou recursos que se lhes apresentaram. Esse trabalho, durante muito tempo individual, constituiu por muito tempo segredo de cada inteligência, do qual somente podemos perceber os resultados. Às vezes uma família plebéia constituía um lar, ou ousando acendê-lo por si mesma, ou buscando em outros lugares o fogo sagrado; então passou a ter seu culto, seu santuário, sua divindade protetora, à imagem da família patrícia. Outras vezes o plebeu, sem possuir culto doméstico, teve acesso aos templos da cidade; em Roma, os que não tinham lar, e, conseqüentemente, não tinham festas domésticas, ofereciam seu sacrifício anual ao deus Quirino(6). Quando a classe superior persistia em afastar de seus templos a classe inferior, esta passou a edificar templos próprios; em Roma já possuía um sobre o Aventino, consagrado a Diana, e o templo consagrado à pureza da plebe. Os cultos orientais que, a partir do século sexto, invadiram a Grécia e a Itália, foram acolhidos prazerosamente pela plebe; eram cultos que, como o budismo, não faziam acepção nem de castas, nem de povos. Muitas vezes, enfim, viu-se a plebe adotar objetos sagrados análogos aos deuses das cúrias e das tribos patrícias. Assim o rei Sérvio levantou um altar em cada bairro, para que a multidão tivesse ocasião de oferecer sacrifícios; do mesmo modo, os pisistrátidos levantaram hermas nas ruas e praças de Atenas(7). Esses foram os deuses da democracia. A plebe, outrora multidão sem culto, teve daí por diante suas cerimônias religiosas e suas festas, podia rezar; era o bastante, em uma sociedade em que a religião constituía a dignidade do homem.

Uma vez que a classe inferior conquistou esses diferentes progressos, quando teve em seu meio pessoas ricas, soldados, sacerdotes, quando teve tudo o que dá ao homem o sentimento de seu valor e de sua força, quando, enfim, obrigou a classe superior a considerá-la como alguma coisa, então tornou-se impossível mantê-la afastada da vida social e política, e a cidade não podia continuar fechada para ela durante muito tempo.

A entrada dessa classe inferior na cidade é uma revolução que, do século sétimo ou quinto, encheu toda a história da Grécia e da Itália. Os esforços do povo por toda parte foram coroados de vitória, mas não da mesma maneira, nem com os mesmos meios em toda parte.

Aqui o povo, quando se sentiu forte, insurgiu-se; com armas na mão, forçou as portas da cidade, onde lhe era proibido morar. Uma vez conquistado o poder, expulsou os grandes, ocupou suas casas, ou se contentou em decretar igualdade de direitos. É o que se vê em Siracusa, em Eritréia, em Mileto.

Algures, pelo contrário, o povo usou de meios menos violentos. Sem lutar a mão armada, somente pela força moral que lhe davam seus mais recentes progressos, obrigou os grandes a fazer concessões. Nomeou então um legislador, e mudou-se a constituição. É o que se vê em Atenas.

Em outros lugares, a classe inferior, sem revoltas nem desordens, conquistou gradualmente suas finalidades. Assim, em Cumes, o número dos membros das cidades, a princípio muito restrito, cresce pela primeira vez, admitindo os plebeus que eram bastante ricos para alimentar um cavalo. Mais tarde, elevou-se até mil o número dos cidadãos, chegando-se pouco a pouco à democracia(8).

Em algumas cidades a admissão da plebe entre os cidadãos foi obra dos reis, como aconteceu em Roma. Em outras, foi obra dos tiranos populares, como aconteceu em Corinto, em Sícion, em Argos. Quando a aristocracia tornou a conquistar o poder, teve ordinariamente a prudência de respeitar o título de cidadão que os reis ou tiranos haviam dado à classe inferior. Em Samos, a aristocracia não consegue vencer a luta contra os tiranos senão libertando as classes mais humildes. Seria muito longo enumerar todas as formas sob as quais essa grande revolução chegou ao fim. O resultado foi o mesmo por toda parte: a classe inferior penetrou na cidade, e passou a fazer parte do corpo político.

O poeta Teógnis nos dá idéia bastante nítida dessa revolução, e de suas conseqüências. Ele nos diz que em Megara, sua pátria, há duas espécies de homens. Chama uma de classe dos bons, aghathói; é este, com efeito, o nome que essa classe dava a si mesma na maior parte das cidades gregas. À outra chama de classe dos maus, kakói; é ainda com esse nome que se costumava designar a classe inferior. Com essa classe, o poeta nos descreve sua antiga condição: “ela não conhecia outrora nem tribunais, nem leis”; é o bastante para dizer que ela não tinha direitos de cidadania. Nem era permitido a esses homens aproximar-se da cidade; “viviam fora, como animais selvagens”. Não participavam dos banquetes religiosos, nem tinham o direito de casar nas famílias dos bons.

Mas como tudo isso mudou! Confundiram-se as classes, “os maus foram colocados acima dos bons”. A justiça se transforma; não existem mais as antigas leis, e leis de novidade estranha passaram a substituí-las. A riqueza torna-se o único objeto dos desejos humanos, porque proporciona poder. O homem de raça nobre casa-se com a filha do plebeu rico, e “o casamento confunde as raças”.

Teógnis, descendente de família aristocrática, tenta em vão resistir ao destino. Condenado ao exílio, despojado de seus bens, não tem nada mais, senão seus versos, para protestar e combater. Mas se não espera ser bem sucedido, pelo menos não duvida da justiça de sua causa; aceita a derrota, mas guarda o sentimento de seus direitos. A seus olhos, a revolução que se fez é um mal moral, um crime. Filho da aristocracia, parece-lhe que essa revolução não tem a seu favor nem a justiça, nem os deuses, constituindo um atentado contra a religião. “Os deuses — diz ele — abandonaram a terra; ninguém mais os teme. A raça dos homens piedosos desapareceu; ninguém mais se importa com os imortais.”

Lamentos inúteis, ele bem o sabe. Se assim se queixa, o faz por uma espécie de dever piedoso, porque recebeu dos antigos “a tradição sagrada”, estando no dever de perpetuá-la. Mas em vão: a própria tradição deve dobrar-se, os filhos dos nobres vão esquecer sua nobreza; logo os veremos unindo-se pelo casamento às famílias plebéias, “bebendo em suas festas, comendo em suas mesas”; logo passarão também a adotar seus sentimentos. Nos tempos de Teógnis, a nostalgia é tudo o que resta à aristocracia grega, e até essa nostalgia logo vai desaparecer.

Com efeito, depois de Teógnís, a nobreza não passava de simples lembrança. As grandes famílias continuaram a observar piedosamente o culto doméstico e a memória dos antepassados; mas isso era tudo. Havia ainda homens que se divertiam contando seus antepassados, mas eram ridicularizados(9). Conservou-se o costume de inscrever sobre algum túmulo que o morto era de raça nobre, mas não se fez nenhuma tentativa para reerguer um regime para sempre destronado. Isócrates diz, com verdade, que em seu tempo as grandes famílias de Atenas só existiam nos túmulos.

Desse modo a cidade antiga foi-se transformando gradativamente. Em sua origem era uma associação de uma centena de chefes de família. Mais tarde o número de cidadãos cresceu, porque os ramos mais novos conseguiram igualdade com os mais velhos. Mais tarde ainda, os clientes libertos, a plebe, toda aquela multidão que durante séculos ficara fora da associação religiosa e política, às vezes mesmo fora do recinto sagrado da cidade, derrubou as barreiras que se lhe opunham, e entrou na cidade, onde logo se tornou senhora.

2.° História dessa revolução em Atenas

Os eupátridas, depois da queda da realeza, governaram Atenas durante quatro séculos. A história nada nos diz a respeito desse longo domínio; sabemos apenas uma coisa: que foi odioso às classes inferiores, e que o povo se esforçou para se livrar desse regime.

Pelo ano de 612, o descontentamento geral, e os sinais certos que anunciavam revolução próxima, despertaram a ambição de um eupátrida, Cílon, que pensou em derrubar o governo de sua casta, e tornar-se tirano popular. A energia dos arcontes fez abortar sua tentativa, mas a agitação continuou ainda depois dele. Em vão os eupátridas lançaram mão de todos os recursos da religião. Em vão afirmaram que os deuses estavam irritados, e que começavam a aparecer fantasmas. Em vão purificaram a cidade de todos os crimes do povo, levantando dois altares à Violência e à Insolência, para apaziguar essas duas divindades, cuja influência maligna havia perturbado os espíritos(10). Tudo isso de nada serviu. Os sentimentos de ódio não se abrandaram. Mandaram vir de Creta o piedoso Epimênides, personagem misterioso, que se dizia filho de uma deusa; fizeram-no celebrar uma série de cerimônias expiatórias, na esperança de que, impressionando assim a imaginação do povo, reavivasse a religião, e fortificasse, conseqüentemente, a aristocracia. Mas o povo não se comoveu; a religião dos eupátridas não tinha mais prestígio sobre sua alma, e continuaram a reclamar reformas.

Durante dezesseis anos ainda a oposição feroz dos pobres da montanha e a oposição paciente dos ricos do litoral fizeram rude guerra aos eupátridas. Por fim, todos os homens prudentes dos três partidos concordaram em confiar a Sólon o cuidado de terminar com essas querelas, prevenindo-se contra males maiores. Sólon tinha a rara fortuna de pertencer ao mesmo tempo aos eupátridas, pelo nascimento, e aos comerciantes, por suas ocupações da mocidade. Suas poesias no-lo mostram como homem completamente livre dos preconceitos de sua casta; por seu espírito conciliador, por seu gosto pela riqueza e pelo luxo, por seu amor ao prazer, está muito distanciado dos antigos eupátridas, e pertence à nova Atenas.

Dissemos acima que Sólon começara por libertar a terra da velha dominação que a religião das famílias eupátridas exercera sobre ela. Sólon quebrou os grilhões que prendiam a clientela. Tal mudança na ordem social acarretava outra na ordem política. Era necessário que as classes inferiores tivessem dali por diante, segundo expressão do próprio Sólon, um escudo para defender sua recente liberdade. Esse escudo eram os direitos políticos.

Muito nos falta para conhecer claramente a constituição de Sólon; parece, pelo menos, que todos os atenienses passaram desde essa época a fazer parte da assembléia do povo, e que o senado não era mais composto apenas de eupátridas; parece mesmo que os arcontes poderiam ser nomeados fora da antiga casta sacerdotal. Essas grandes inovações revolucionaram todas as antigas regra da cidade. Sufrágios, magistraturas, sacerdócios, direção da sociedade, tudo isso o eupátrida devia dividir com homem da classe inferior. Na nova constituição não eram tidos em nenhuma consideração os direitos de nascimento; ainda existiam classes, mas não se distinguiam senão pela riqueza(11). Desde essa época a dominação dos eupátridas desapareceu. O eupátrida não era mais nada, a não ser que fosse rico; valia pela riqueza, e não pelo nascimento. Daí por diante o poeta já podia dizer: “Na pobreza o homem nobre não é mais nada”; e o povo aplaudia no teatro este dito cômico: “Qual o nascimento deste homem? — Rico; hoje são estes os nobres(12).”

O regime que assim se constituíra tinha duas espécies de inimigos: os eupátridas, que lamentavam os privilégios perdidos, e os pobres, que ainda continuavam a sofrer pela desigualdade.

Apenas Sólon acabara de terminar sua obra, recomeçou a agitação. “Os pobres mostraram-se — diz Plutarco — cruéis inimigos dos ricos.” — O novo governo desagradava-lhes talvez quase tanto quanto o dos eupátridas. Aliás, vendo que eupátridas podiam ainda ser arcontes e senadores, muitos imaginavam que a revolução não havia sido completa. Sólon mantivera as formas republicanas; ora, o povo sentia ainda ódio irrefletido contra essas formas de governo, sob as quais não vira, durante quatro séculos, nada além do reinado da aristocracia. Seguindo o exemplo de muitas cidades gregas, desejou um tirano.

Pisístrato, descendente dos eupátridas, mas visando satisfazer ambições pessoais, prometeu aos pobres uma divisão de terras, e conseguiu seu apoio. Um dia aparece na assembléia, e, pretendendo que o haviam ferido, pede que lhe dêem uma guarda pessoal. Os homens das primeiras classes iam responder-lhe, e desvendar sua mentira, mas “a plebe estava preparada para lutar em defesa de Pisístrato, provocando a desordem e a fuga dos ricos.”

Assim, um dos primeiros atos da assembléia popular recentemente instituída foi ajudar um homem a se tornar senhor da pátria(13).

Não parece, aliás, que o reinado de Pisístrato tenha causado algum entrave ao desenvolvimento dos destinos de Atenas. Teve, pelo contrário, como principal efeito, assegurar e garantir contra a reação uma grande reforma social e política, que acabava de se realizar(14).

O povo não se mostrou ainda desejoso de restabelecer a liberdade: duas vezes a coalizão dos grandes e dos ricos derrubou Pisístrato; duas vezes ele reconquistou o poder; seu filho mais velho reinou em Atenas depois de sua morte. Foi necessária a intervenção de um exército espartano na Ática para fazer cessar o domínio dessa família(15).

A antiga aristocracia teve por momentos esperanças de se aproveitar da queda dos pisistrátidas para readquirir seus privilégios. Não somente não o conseguiu, mas recebeu o mais rude golpe de todos os que sofrera. Clístenes, nascido nessa classe, mas de família que a aristocracia cobria de opróbrios, e parecia renegar há três gerações, encontrou meios para tirar-lhe para sempre o que lhe restava ainda de força(16). Sólon, ao mudar a constituição política, deixara subsistir toda a velha organização religiosa da sociedade ateniense. A população continuava dividida em duzentas ou trezentas gentes, em doze fratrias, em quatro tribos. Em cada um desses grupos possuía ainda, como na época precedente, um culto hereditário, um sacerdote eupátrida, um chefe, que era o próprio sacerdote. Tudo isso eram restos de um passado que tentava subsistir, perpetuando assim as tradições, os costumes, as regras, as distinções que haviam reinado no antigo estado social. Essas categorias haviam sido estabelecidas pela religião, e, por sua vez, mantinham a religião, isto é, o poder das grandes famílias. Em cada uma dessas categorias havia duas classes de homens: de uma parte os eupátridas, que possuíam hereditariamente o sacerdócio e a autoridade; de outra os homens de condição inferior, que não eram mais nem servos, nem clientes, mas que ainda se achavam ligados à autoridade dos eupátridas pela religião. Em vão a lei de Sólon dizia que todos os atenienses eram livres. A antiga religião apoderava-se do homem ao sair da assembléia, onde havia votado livremente, e lhe dizia: Estás ligado a um eupátrida pelo culto; deves-lhe respeito, deferência, submissão; como membro da cidade, Sólon te fez livre, mas como membro da tribo, deves obediência a um eupátrida; como membro de uma fratria, tens ainda um eupátrida como chefe. Na própria família, na gens onde nasceram teus antepassados, e da qual não podes sair, encontras ainda a autoridade de um eupátrida. — De que adiantava a lei política fazer desse homem um cidadão, se a religião e os costumes persistiam em conservá-lo como cliente? É verdade que há várias gerações muitos homens se encontravam fora dessas categorias, ou porque viessem de países estrangeiros, ou porque houvessem escapado da gens e das tribos para serem livres. Mas esses homens sofriam de outra maneira; postos à margem das tribos, achavam-se em estado de inferioridade moral em relação aos outros homens, e uma espécie de ignomínia ligava-se a sua independência.

Havia ainda, depois da reforma política de Sólon, uma outra reforma a ser feita no domínio da religião. Clístenes realizou-a, substituindo as quatro antigas tribos religiosas por dez novas tribos, que eram divididas em certo número de demos(17).

Essas tribos e demos assemelharam-se aparentemente a antigas tribos e gentes. Em cada uma dessas circunscrições houve um culto, um sacerdote, um juiz, reuniões para as cerimônias religiosas, assembléias para deliberar sobre interesses comuns(18). Mas os novos grupos diferenciaram-se dos antigos em dois pontos essenciais. Em primeiro lugar, todos os homens livres de Atenas, mesmo os que não haviam feito parte das antigas tribos e gentes, foram repartidos entre os quadros formados por Clístenes(19), grande reforma que dava um culto àqueles que ainda não o possuíam, e que fazia entrar para uma associação religiosa aqueles que antes estavam excluídos de toda e qualquer associação. Em segundo lugar, os homens foram distribuídos em tribos e demos não mais de acordo com o nascimento, como outrora, mas de acordo com o domicílio. O nascimento deixou de ser considerado; os homens tornaram-se iguais, e acabaram-se os privilégios. O culto, para cuja celebração se reunia a nova tribo ou demo não era mais o culto hereditário de uma antiga família; não se reuniam mais ao redor do lar de um eupátrida. Não era mais um antigo eupátrida que a tribo ou o demo venerava como antepassado divino; as tribos tiveram novos heróis epônimos, escolhidos entre os personagens antigos, dos quais o povo conservara boa recordação; quanto aos demos, adotaram uniformemente por deuses protetores a Zeus, protetor do domicílio, e a Apolo paternal. Desde então não havia mais razão para que o sacerdócio fosse hereditário, como o fora na gens; também não havia mais razão para que o sacerdote fosse sempre eupátrida. Nos novos grupos, a dignidade de sacerdote e de chefe tornou-se anual, e cada membro pôde exercê-la sucessivamente.

Foi essa reforma que acabou de derrubar a aristocracia dos eupátridas. A partir desse momento, não houve castas religiosas, nem privilégios de nascimento na religião ou na política. A sociedade ateniense estava completamente transformada(20).

Ora, a supressão das antigas tribos, substituídas por novas, na qual todos os homens tinham acesso, e eram iguais, não é fato particular da história de Atenas. A mesma mudança aconteceu em Cirene, em Sícion, em Eléia, em Esparta e, provavelmente, em muitas outras cidades gregas(21). De todos os meios próprios para enfraquecer a antiga aristocracia, Aristóteles não viu nenhum mais eficaz que esse. — “Se se quiser fundar a democracia — diz ele — é necessário fazer o que fez Clístenes entre os atenienses: estabelecer-se-ão novas tribos e novas fratrias; os sacrifícios hereditários das famílias serão substituídos por sacrifícios onde todos os homens serão admitidos; tanto quanto possível, as relações dos homens entre si devem confundir-se, tendo-se o cuidado de extinguir todas as associações anteriores(22).”

Realizada essa reforma em todas as cidades, pode-se afirmar que o antigo molde da velha sociedade está destruído, e que se forma novo corpo social. Essa mudança nas categorias que a antiga religião hereditária havia estabelecido, e que declarava imutáveis, marca o fim do regime religioso da cidade.

3.° História dessa revolução em Roma

A plebe em Roma logo teve grande importância. A situação da cidade entre latinos, sabinos e etruscos condenava-a a perpétua guerra, e a guerra exigia que sua população fosse numerosa. Por isso os reis acolheram a todos os estrangeiros, sem dar importância às suas origens. As guerras sucediam-se ininterruptamente, e, como havia necessidade de homens, o resultado mais ordinário de cada vitória era tirar da cidade vencida a população a fim de transferi-la para Roma. Que acontecia a esses homens, levados juntamente com os despojos? Se entre eles encontravam-se famílias sacerdotais ou patrícias, o patriciado apressava-se em chamá-la para seu meio. Quanto aos demais, parte ingressava na clientela dos grandes ou do rei, parte era relegada para a plebe.

Outros elementos ainda entravam na composição dessa classe. Muitos estrangeiros afluíam a Roma, como lugar que, por sua situação, era propício ao comércio. Os descontentes de Sabina, da Etrúria, do Lácio aí encontravam refúgio, e todos entravam para a plebe. O cliente que conseguia escapar da gens também se tornava plebeu. O patrício que contraía matrimônio com pessoa de classe inferior, ou que cometia um daqueles crimes que causavam infâmia, também passava a fazer parte da plebe. Todos os bastardos eram rejeitados pela religião das famílias puras, e relegados para a plebe.

Por todas essas razões, a plebe aumentava de número. A luta que se travava entre patrícios e reis tomou maior importância. Realeza e plebe logo sentiram que tinham os mesmos inimigos. A ambição dos reis era libertar-se dos velhos princípios de governo, que entravavam o exercício do poder. A ambição da plebe era destruir as barreiras que a excluíam da associação religiosa ou política. Estabeleceu-se uma aliança tácita: os reis protegiam a plebe, e a plebe sustentava os reis.

As tradições e testemunhos da antiguidade colocam sob o reinado de Sérvio os primeiros progressos dos plebeus. O ódio que os patrícios conservaram por esse rei mostra suficientemente qual era sua política. Sua primeira reforma foi dar terras à plebe, é verdade que não no ager romamus, mas em territórios tomados ao inimigo; mas nem por isso deixava de ser uma inovação grave conferir assim o direito de propriedade a famílias que até então só podiam cultivar terras alheias(23).

O que foi ainda mais grave foram as leis que promulgou em favor da plebe, coisa que jamais existira antes. Essas leis, em sua maior parte, diziam respeito às obrigações que o plebeu podia contrair com os patrícios. Era um início de direito comum entre as duas ordens, e, para a plebe, um começo de igualdade(24).

Depois, esse mesmo rei estabeleceu nova divisão na cidade. Sem destruir as três antigas tribos, nas quais as famílias patrícias e os clientes estavam repartidos de acordo com o nascimento, Sérvio formou quatro tribos novas, onde toda a população estava distribuída de acordo com o domicílio. Vimos essa reforma em Atenas, e consideramos seus efeitos, que foram idênticos em Roma. A plebe, que não entrava nas antigas tribos, foi admitida nas tribos novas(25). Aquela multidão, até então flutuante, espécie de população nômade, que não tinha vínculo algum com a cidade, teve de aí por diante divisões fixas e organização regular. A formação dessas tribos, onde as duas ordens estavam misturadas, marca verdadeiramente a entrada da plebe na cidade. Cada tribo teve um lar e sacrifícios; Sérvio estabeleceu os deuses lares em cada esquina da cidade, em cada circunscrição do campo. Eles serviram de divindades para os que não as tinham por nascimento. O plebeu celebrou as festas religiosas do bairro e do burgo (compitalia, paganalia), como o patrício celebrava os sacrifícios da gens e da cúria. O plebeu teve assim uma religião.

Ao mesmo tempo introduziu-se grande mudança na cerimônia sagrada da lustração. O povo não foi mais dividido por cúrias, com exclusão dos que não eram nelas aceitos. Todos os habitantes livres de Roma, todos os que faziam parte das novas tribos, passaram a figurar no ato sagrado. Pela primeira vez, todos os homens, sem distinção de patrícios, clientes ou plebeus, foram reunidos. O rei deu a volta ao redor dessa assembléia heterogênea, conduzindo as vítimas e cantando um hino solene. Terminada a cerimônia, todos passaram a ser cidadãos.

Antes de Sérvio, não se distinguiam em Roma mais que duas espécies de homens: a casta sacerdotal dos patrícios, com seus clientes, e a classe dos plebeus. Não se conhecia nenhuma outra distinção que a da religião hereditária. Sérvio determinou nova divisão, que tinha por princípio a riqueza. Dividiu os habitantes de Roma em duas grandes categorias: numa estavam os que possuíam alguma coisa, noutra os que não tinham nada. A primeira dividiu-se em cinco classes, nas quais os homens foram repartidos de acordo com o que possuíam(26). Sérvio introduziu assim um princípio absolutamente novo na sociedade romana: a riqueza passava a determinar as classes, como o fizera a religião.

Sérvio aplicou essa divisão da população romana ao serviço militar. Antes dele os plebeus só combatiam fora das fileiras da legião. Mas, como Sérvio transformara-os em proprietários e cidadãos, podia também torná-los legionários. A partir de então o exército não se compôs unicamente dos homens das cúrias: todos os homens livres, todos os que, pelo menos, possuíam alguma coisa passaram a fazer parte das legiões; somente os proletários continuaram a ser excluídos. Não foi mais a categoria de patrício ou de cliente que determinava as armas de cada soldado, e seu lugar na batalha; o exército era dividido por classes, exatamente como a população, de acordo com as posses de cada um. A primeira classe, que tinha armadura completa, e as duas seguintes, que tinham pelo menos escudo, elmo e espada, formaram as três primeiras linhas da legião. A quarta e a quinta, ligeiramente armadas, compunham os corpos dos vélites e dos fundibulários. Cada classe dividia-se em companhias, chamadas centúrias. A primeira compreendia, segundo se diz, oitenta centúrias; as outras quatro, vinte e três cada uma. A cavalaria ficava separada, e também nesse ponto Sérvio fez grande inovação: enquanto, até então, somente os jovens patrícios compunham as centúrias de cavaleiros, Sérvio admitiu certo número de plebeus, escolhidos dentre os mais ricos, para combater a cavalo, formando doze novas centúrias.

Ora, não se podia tocar no exército sem se tocar ao mesmo tempo na constituição política. Os plebeus sentiram que seu valor no Estado crescera; tinham armas, disciplina, chefes; cada centúria tinha seu centurião, e uma insígnia sagrada. Essa organização militar era permanente; a paz não a dissolvia. É verdade que ao voltar de alguma campanha os soldados abandonavam as fileiras, pois, a lei proibia entrar na cidade incorporados. Mas depois, ao primeiro sinal, os cidadãos dirigiam-se armados para o campo de Marte, onde cada um reencontrava sua centúria. Ora, aconteceu que, vinte e cinco anos depois de Sérvio Túlio, pensou-se em convocar o exército sem ser para um empreendimento militar. Reunido o exército, cada centúria, com seu centurião à frente, e ostentando sua bandeira, o magistrado falou, consultou, e fez votar(27). As seis centúrias de patrícios e os doze cavaleiros plebeus votaram antes, seguidos pelas centúrias de infantaria de primeira classe, e pelas demais. Assim se estabeleceu, depois de pouco tempo, a assembléia centuriata, onde todos os soldados tinham direito ao voto, e onde quase não se distinguia mais o plebeu do patrício(28).

Todas essas reformas mudavam singularmente o aspecto da cidade romana. O patriciado continuava de pé, com seus cultos hereditários, suas cúrias, seu senado. Mas os plebeus adquiriam o hábito da independência, riqueza, armas, religião. A plebe não se confundia com o patriciado, mas crescia a seu lado.

É verdade que o patriciado vingou-se. Começou por assassinar a Sérvio; mais tarde, expulsou a Tarquínio. Juntamente com a realeza, a plebe foi vencida.

Os patrícios esforçaram-se por privá-los de todas as conquistas obtidas sob o domínio dos reis. Um de seus primeiros atos foi tirar aos plebeus as terras que Sérvio lhes havia dado, e se pode notar que o único motivo alegado para fazê-lo foi sua condição de plebeus(29). O patriciado tornava a pôr em vigor o antigo princípio de que a religião hereditária era a única base do direito de propriedade, e que não permitia que o homem sem religião e sem antepassados pudesse exercer direitos sobre o solo.

As leis que Sérvio havia promulgado para a plebe também lhes foram tiradas. Se não se aboliu o sistema de classes e a assembléia centuriata, foi porque as guerras não permitiam desorganizar o exército, e, depois, porque souberam rodear esses comícios de tais formalidades, que o patriciado era o senhor das eleições. Não ousaram tirar aos plebeus o título de cidadãos, deixando que continuassem a figurar no censo. Mas é claro que o patriciado, permitindo que a plebe fizesse parte da cidade, não dividiu com elas nem os direitos políticos, nem a religião, nem as leis. De nome, a plebe continuou na cidade; de fato, foi excluída.

Não acusemos injustamente os patrícios, e não vamos supor que eles tenham friamente concebido o desígnio de oprimir e esmagar a plebe. O patrício, que descendia de família sagrada, e se sentia herdeiro do culto, não compreendia outro regime social além do que a antiga religião havia traçado. A seus olhos, o elemento constitutivo de toda sociedade era a gens, com seu culto, seu chefe hereditário, sua clientela. Para o patrício a cidade não podia ser outra coisa que a reunião dos chefes das gentes. Não podia conceber outro sistema político além do que se baseava no culto, outros magistrados além dos que realizavam os sacrifícios públicos, outras leis além daquelas cujas fórmulas sagradas eram ditadas pela religião. Não seria necessário objetar-lhe que também os plebeus, desde há pouco, tinham uma religião, faziam sacrifícios aos lares das esquinas, porque o patrício responderia que o culto deles não tinha o caráter essencial da verdadeira religião, que não era hereditário, que aqueles lares não tinham fogo antigo, e que aqueles deuses lares não eram verdadeiros antepassados. E o patrício acrescentaria ainda que os plebeus, adotando um culto, haviam feito o que não tinham o direito de fazer; que para fazê-lo, haviam violado todos os princípios; que não haviam adotado senão as exterioridades do culto, suprimindo o que havia de essencial, que era a hereditariedade; e que, enfim, seu simulacro de religião era absolutamente o oposto da religião verdadeira.

Desde que o patrício se obstinava em pensar que somente a religião hereditária devia governar os homens, resultava daí que não via governo possível para a plebe. O patrício não concebia que o poder social pudesse ser exercido sobre aquela classe de homens. A lei sagrada não podia aplicar-se a eles; a justiça era um terreno santo, que lhes era interditado. Enquanto houve reis, estes tomaram sobre si o encargo de governar o povo, e o fizeram de acordo com certas regras, que nada tinham em comum com a antiga religião, e que a necessidade ou o interesse público inventara. Mas, pela revolução que havia expulso os reis, a religião retomara o poder, fazendo com que, automaticamente, toda a classe dos plebeus fosse excluída de todas as leis sociais.

O patriciado então formou um governo conforme seus princípios, mas não pensou em estabelecer um para a plebe. Não tinha coragem de expulsá-la de Roma, mas não encontrou meios de constituí-la em sociedade regular. Viam-se por isso no meio de Roma milhares de famílias para as quais não existiam leis fixas, ordem social, magistraturas. A cidade, o populus, isto é, a sociedade patrícia, com os clientes que ainda lhe restavam, levantava-se poderosa, organizada, majestosa. A seu redor vivia a multidão de plebeus, que não era um povo, e não constituía um corpo. Os cônsules, chefes da cidade dos patrícios, mantinham a ordem material em meio àquela população confusa; os plebeus obedeciam; fracos, geralmente pobres, dobravam-se sob a força das famílias patrícias.

O problema, cuja solução devia decidir o futuro de Roma, era este: como fazer da plebe uma sociedade regular?

Ora, o patriciado, dominado pelos princípios rigorosos da religião, não via senão um meio de resolver esse problema: fazer a plebe entrar, por meio da clientela, nos quadros sagrados das gentes. Deve ter havido alguma tentativa nesse sentido. A questão das dívidas, que agitou Roma por essa época, não se pode explicar pela pendência bem mais grave que havia entre a clientela e a escravidão. A plebe romana, despojada de suas terras, não podia mais viver. Os patrícios calcularam que, com o sacrifício de algum dinheiro, a fariam cair em seus laços. O homem da plebe fazia empréstimos, escolhia credores, ligava-se a eles por uma espécie de operação, que os romanos chamavam nexum. Era uma espécie de venda que se fazia per aes et libram, isto é, com a formalidade solene que se usava comumente para conferir a um homem o direito de propriedade sobre um objeto(30). É verdade que o plebeu tomava suas garantias contra a servidão; por uma espécie de contrato fiduciário, estipulava conservar sua categoria de homem livre até o dia do vencimento, e que nesse dia retomaria posse de si mesmo pagando a dívida. Mas, chegado esse dia, se a dívida não fosse paga, o plebeu perdia o benefício de seu contrato. Tornando-se addictus, ficava à disposição do credor, que o levava para casa e fazia dele seu escravo. Em tudo isso o patrício não julgava fazer nada de desumano, pois, o ideal da sociedade para ele era a gens, e não via nada mais legítimo e mais belo do que conduzir os homens para esse estado, não importava por que meios. Se seu plano obtivesse êxito, a plebe desapareceria em pouco tempo, e a cidade romana teria apenas a associação das gentes patrícias, dividindo entre si a multidão de clientes.

Mas essa clientela era uma corrente da qual o plebeu tinha horror, e debatia-se contra o patrício, o qual, armado de seu crédito, queria fazê-lo cair. A clientela era para ele o correspondente da escravidão; a missão do patrício a seus olhos era uma prisão (ergastulum). Muitas vezes o plebeu, levado pela mão do patrício, implorou a ajuda de seus semelhantes, e amotinou a plebe, declarando que era homem livre, e mostrando como prova as feridas que havia recebido nos combates em defesa de Roma. A manobra dos patrícios só conseguiu irritar a plebe. Ela viu o perigo, desejou ardentemente sair daquele estado precário, em que a queda do governo real a colocara, e quis ter leis e direitos.

Mas não parece que a princípio os homens tenham desejado participar das leis e direitos dos patrícios. Talvez acreditassem, como os próprios patrícios, que não podia haver nada em comum entre as duas ordens. Ninguém pensava em igualdade política e civil. Nem plebeus, nem patrícios imaginavam que ambos pudessem estar à mesma altura. Longe, portanto, de reclamar igualdade de direitos e de leis, aqueles homens pareciam preferir a princípio uma separação completa. Em Roma não encontravam remédio para seus sofrimentos, e não viram senão um meio para sair de sua inferioridade: afastar-se de Roma.

O historiador antigo retrata bem seu pensamento quando lhes atribui esta frase: “Já que os patrícios querem possuir sozinhos a cidade, que fiquem à vontade. Para nós, Roma nada significa. Lá não temos nem lares, nem sacrifícios, nem pátria. Só deixamos uma cidade estrangeira; nenhuma religião hereditária liga-nos a ela. Qualquer terra para nós é boa; lá encontraremos liberdade, lá será nossa pátria(31).” — E foram estabelecer-se sobre o monte Sagrado, fora dos limites do ager romanus.

Em presença de tal ato, o senado dividiu-se em várias opiniões. Os mais ardentes dos patrícios deixaram ver que a partida da plebe estava longe de afligi-los. Agora os patrícios ficariam sozinhos em Roma, com os clientes, que ainda lhes eram fiéis. Roma renunciaria à sua futura grandeza, mas o patriciado continuaria como senhor. Não teriam mais que se preocupar com a plebe, à qual não podiam aplicar as regras ordinárias de governo, e que constituía um embaraço para a cidade. Podiam tê-la expulsado quando haviam expulsado os reis; desde que ela tomara por si a decisão de se afastar, deviam deixá-la fazer o que quisesse, e alegrarem-se por isso.

Mas outros, menos fiéis aos velhos princípios, ou mais desejosos da grandeza de Roma, afligiram-se com o afastamento da plebe. Roma perdia a metade dos soldados. Que aconteceria a ela, em meio de latinos, sabinos e etruscos, todos inimigos? Esses senadores queriam, portanto, que a preço de alguns sacrifícios, cujas conseqüências talvez não podiam prever totalmente, se trouxessem de volta para a cidade aqueles milhares de braços, que constituíam a força de suas legiões.

Por outra parte, a plebe percebeu, ao cabo de poucos meses, que não podia viver sobre o monte Sagrado. Ali podia muito bem conseguir o que lhe era materialmente necessário para a existência, mas faltava-lhe tudo o que constituía uma sociedade organizada. Não podia fundar lá uma cidade, porque não possuía sacerdotes capazes de realizar a cerimônia religiosa da fundação. Não podia eleger magistrados, porque não possuía um pritaneu acendido de acordo com as regras, onde o magistrado pudesse oferecer sacrifícios. Não podia encontrar o fundamento das leis sociais, porque as únicas leis de que tinha idéia derivavam da religião dos patrícios. Em uma palavra, a plebe não tinha em si os elementos de uma cidade. Logo viu que, para ser mais independente, não era mais feliz, e não formava uma sociedade mais regular que em Roma, e que assim o problema, cuja resolução tanto lhe importava, continuava sem solução. De nada lhe adiantava afastar-se de Roma; não era no isolamento do monte Sagrado que poderia encontrar as leis e direitos a que aspirava.

Aconteceu então que plebe e patriciado, sem nada ter em comum, não podiam todavia viver um sem o outro. Tornaram a se reconciliar, e fizeram um tratado de aliança. Esse tratado parece que foi celebrado da mesma forma que os que se faziam no término das guerras entre dois povos; plebe e patriciado não eram, com efeito, nem um mesmo povo, nem uma mesma cidade(32). Por esse tratado o patriciado não deixou que a plebe fizesse parte da cidade religiosa e política; parece até que esta não o exigiu. Combinou-se apenas que a plebe de ali em diante, constituída em sociedade quase regular, teria chefes escolhidos entre seus próprios membros(33). É esta a origem do tribunado da plebe, instituição completamente nova, e que não se assemelha a nada do que as cidades haviam conhecido até então.

O poder do tribuno não era da mesma natureza que a autoridade do magistrado; não derivava do culto da cidade. O tribuno não oficiava nenhuma cerimônia religiosa; era eleito sem auspícios, sem necessidade do assentimento dos deuses(34). Não tinha cadeira curul, nem manto de púrpura, nem coroa de louros, nem nenhuma das insígnias que em todas as cidades antigas designavam à veneração dos homens os verdadeiros magistrados romanos(35).

Qual era, portanto, a natureza e o princípio de seu poder? É necessário aqui afastar todas as idéias e todos os costumes modernos, e transportar-nos, tanto quanto possível, ao meio das crenças dos antigos. Até então os homens não haviam compreendido a autoridade senão como apêndice do sacerdócio. Quando, portanto, quiseram estabelecer um poder desligado do culto, e chefes que não fossem sacerdotes, tiveram de imaginar um singular subterfúgio. Para tanto, no dia em que criaram os primeiros tribunos, realizou-se uma cerimônia religiosa de caráter particular(36). Os historiadores não descrevem seus ritos; dizem apenas que essa cerimônia teve por efeito tornar aqueles primeiros tribunos sacrossantos. Não tomemos esse termo em sentido figurado e vago. A palavra sacrossanto designava algo bem preciso na linguagem religiosa dos antigos. Aplicava-se aos objetos que eram dedicados aos deuses, e que, por essa razão, o homem não podia tocar. Não era a dignidade do tribuno que era declarada honrosa e santa; era a pessoa, era o próprio corpo do tribuno(37) que era posto em tal relação com os deuses, que deixava de ser coisa profana, para se tornar objeto sagrado. Desde então, nenhum homem podia atacá-lo sem cometer crime de violação, e sem incorrer em culpa, ághei énochos einãi(38).

Plutarco conta-nos, a esse respeito, um estranho costume: parece que, quando alguém se encontrava com um tribuno em público, a regra religiosa exigia que se purificasse, como se esse encontro significasse impureza(39), costume que alguns devotos ainda observavam nos tempos de Plutarco, e que nos dá alguma idéia da maneira pela qual encaravam o tribunado cinco séculos antes.

Esse caráter sacrossanto continuava ligado ao corpo do tribuno durante toda a duração de suas funções; depois, criando seu sucessor, ele lhe transmitia esse caráter, exatamente como o cônsul, criando outros cônsules, passava-lhes os auspícios e o direito de realizar os ritos sagrados Em 449, interrompendo-se o tribunado por dois anos, foi necessário, para estabelecer novos tribunos, renovar a cerimônia religiosa que havia sido celebrada sobre o monte Sagrado.

Não conhecemos bastante bem as idéias dos antigos para afirmar se esse caráter sacrossanto tornava a pessoa do tribuno digna de honra aos olhos dos patrícios, ou se, pelo contrário, tornava-a objeto de horror ou de maldição. Essa segunda conjectura é mais provável, pelo menos nos primeiros tempos. O que é certo é que, de toda maneira, o tribuno era inviolável, e a mão do patrício não podia tocá-lo, sem se tornar culpado de grave impiedade.

Uma lei confirmou e garantiu essa inviolabilidade, declarando que “ninguém podia violentar um tribuno, nem atacá-lo, nem matá-lo”. E acrescentou que “o que fizesse uma dessas ações na presença do tribuno seria impuro, seus bens seriam confiscados em proveito do templo de Ceres, e podia ser morto impunemente(40)”. E terminava por esta fórmula, cuja imprecisão muito contribuiu para o progresso futuro do tribunado: “Nem o magistrado, nem o cidadão têm direito de fazer o que quer que seja contra o tribuno(41).” — Todos os cidadãos pronunciaram um juramento “sobre as coisas sagradas”, pelo qual obrigavam-se a observar sempre essa estranha lei, e cada um recitou uma fórmula de oração, pela qual chamava sobre si a cólera dos deuses caso violasse a lei, acrescentando que quem quer que se tornasse culpado de atentado contra um tribuno “manchava-se da mais negra das impurezas(42)”.

Esse privilégio de inviolabilidade estendia-se até onde o corpo do tribuno podia estender sua ação direta. Um plebeu era maltratado por um cônsul, que o condenava à prisão, ou por um credor, que se apoderava dele; o tribuno aparecia, colocava-se entre os dois (intercessio), e detinha a mão patrícia. Quem ousaria “fazer algo contra um tribuno”, ou expor-se a ser tocado por ele?

Mas o tribuno não exercia esse poder singular senão onde podia estar presente. Longe dele, os plebeus podiam ser maltratados. Não tinha ação nenhuma sobre o que se passava fora do alcance de suas mãos, de seu olhar, de sua palavra(43).

Os patrícios não deram direitos à plebe; concederam apenas que alguns dentre os plebeus fossem invioláveis. Todavia era o que bastava para que houvesse alguma segurança para todos. O tribuno era uma espécie de altar vivo, ao qual se atribuía o direito de asilo(44).

Os tribunos, naturalmente, tornaram-se chefes da plebe, e se apoderaram do direito de julgar. Na verdade, não tinham o direito de citar para comparecer diante deles nem mesmo a um plebeu, mas podiam prendê-lo(45). Uma vez sob sua mão, o homem obedecia. Bastava encontrar-se em um raio onde sua palavra se fizesse ouvir; essa palavra era irresistível e era necessário submeter-se a ela, quer se fosse patrício ou cônsul.

O tribuno não tinha, nos primeiros tempos, nenhuma autoridade política. Não sendo magistrado, não podia convocar nem cúrias, nem centúrias. Não tinha nenhuma proposição a fazer no senado; no princípio nem sequer se pensava que ele lá pudesse aparecer. Nada tinha em comum com a verdadeira cidade, isto é, com a cidade patrícia, onde não lhe reconheciam nenhuma autoridade. Ele não era tribuno do povo, era tribuno da plebe(46).

Em Roma, portanto, como no passado, havia duas sociedades: a cidade e a plebe; uma, muito bem organizada, com leis, magistrados, senado; outra, que continuava a ser uma multidão sem lei, mas que em seus tribunos invioláveis encontrava protetores e juízes.

Nos anos que se seguem pode-se ver como os tribunos são atrevidos, e quantas liberdades imprevistas andaram tomando. Nada lhes autorizava a convocar a plebe: mas eles o fazem. Nada os chamava ao senado: mas eles ali tomaram assento, primeiro na porta da sala, depois no interior do recinto. Nada lhes dava o direito de julgar patrícios; mas eles julgam-nos e submetem-nos à condenação. Era a conseqüência daquela inviolabilidade que se prendia à sua pessoa sacrossanta. Toda força caía diante deles. O patriciado desarmara-se no dia em que declarara, com ritos solenes, que quem quer que tocasse em um tribuno tornava-se impuro. A lei declarava: Nada se fará contra um tribuno. — Portanto, se esse tribuno convocava a plebe, a plebe se reunia, e ninguém podia dissolver essa assembléia, que a presença de um tribuno colocava fora do alcance do patriciado e das leis. Se um tribuno entrava no senado, ninguém podia obrigá-lo a sair. Se prendia um cônsul, ninguém podia livrá-lo de suas mãos. Nada podia resistir às ousadias de um tribuno. Contra ele ninguém tinha forças, a não ser outro tribuno.

Desde que a plebe teve assim seus chefes, não tardou em reunir também suas assembléias deliberativas. Estas não se assemelhavam de modo nenhum às da cidade patrícia. A plebe em seus comícios era dividida em tribos; o lugar de cada plebeu era indicado de acordo com o domicílio, e não de acordo com a religião ou riqueza. A assembléia não era iniciada com um sacrifício; a religião mantinha-se longe dessas reuniões. Dispensavam-se os presságios, e a voz dos áugures ou do pontífice não podia forçar a dissolução da assembléia. Eram, verdadeiramente, comícios da plebe, que nada tinham com as velhas regras da religião ou do patriciado.

É verdade que essas assembléias, a princípio, não se ocupavam dos interesses gerais da cidade; não nomeavam magistrados nem promulgavam leis. Deliberavam apenas acerca dos interesses da plebe, nomeavam os chefes plebeus, e faziam plebiscitos. Houve por muito tempo em Roma uma dupla série de decretos, senatus-consultos para os patrícios, plebiscitos para a plebe. Nem a plebe obedecia aos senatus-consultos, nem os patrícios aos plebiscitos. Havia dois povos em Roma.

Esses dois povos, sempre juntos, morando dentro dos mesmos muros, não tinham, todavia, quase nada em comum. Um plebeu não podia ser cônsul da cidade, nem um patrício podia ser tribuno da plebe. O plebeu não tomava parte nas assembléias curiatas, nem o patrício nas assembléias das tribos(47).

Eram dois povos que nem mesmo se compreendiam, que, por assim dizer, nem tinham idéias comuns. Se o patrício falava em nome da religião e das leis, o plebeu respondia que não conhecia essa religião hereditária, nem tampouco as leis que dela derivavam. Se o patrício alegava um costume sagrado, o plebeu respondia em nome do direito da natureza. Acusavam-se mutuamente de injustiça; cada um deles era justo de acordo com seus próprios princípios, injusto de acordo com os princípios e crenças dos outros. A assembléia das cúrias e a reunião dos patres pareciam ao plebeu privilégios odiosos. Na assembléia das tribos o patrício via um conciliábulo reprovado pela religião. O consulado era para o plebeu uma autoridade arbitrária e tirânica; o tribunado era aos olhos do patrício algo de ímpio, de anormal, de contrário a todos os princípios; ele não podia compreender aquela espécie de chefe que não era sacerdote, eleito sem auspícios. O tribuno alterava a ordem sagrada da cidade; era o que é uma heresia em religião, uma espécie de nódoa para o culto público. — “Os deuses nos serão contrários — dizia um patrício — enquanto tivermos entre nós essa úlcera que nos rói, e que estende sua corrupção a todo o corpo social.” — A história de Roma, durante um século, esteve cheia de semelhantes mal-entendidos entre dois povos que não pareciam falar a mesma língua. O patriciado persistia em manter a plebe fora do corpo político; a plebe decretava as próprias instituições. A dualidade da população romana tornava-se dia a dia mais manifesta.

Havia, contudo, algo que formava um vínculo entre esses dois povos: era a guerra. O patriciado tomara precauções para não se privar de soldados. Deixara aos plebeus o título de cidadãos apenas para podê-los incorporar nas legiões. Cuidaram outrossim para que a inviolabilidade dos tribunos não se estendesse fora dos limites de Roma, decidindo-se para isso que os tribunos jamais sairiam da cidade. No exército, portanto, a plebe tinha que se submeter; não havia mais dualidade de poderes; na presença do inimigo Roma voltava a ser una.

Depois, graças ao hábito tomado após a expulsão dos reis, de reunir o exército para consultá-lo a respeito dos interesses públicos ou da escolha dos magistrados, reuniam-se assembléias mistas, nas quais a plebe figurava ao lado dos patrícios. Ora. vemos claramente na história que esses comícios por centúrias tomaram cada vez maior importância, transformando-se insensivelmente no que depois se chamou de grandes comícios. Com efeito, no conflito que se travava entre a assembléia curiata e a assembléia das tribos, parecia natural que a assembléia centuriata se tornasse uma espécie de terreno neutro, onde os interesses gerais fossem debatidos de preferência.

O plebeu nem sempre era pobre. Muitas vezes pertencia a família originária de outra cidade, onde era rica e considerada, e que os percalços da guerra levara a Roma sem lhe tirar a riqueza, nem esse sentimento de dignidade que de ordinário a acompanha. Às vezes também o plebeu teve ocasião de se enriquecer pelo trabalho, sobretudo no tempo dos reis. Quando Sérvio Túlio dividiu a população em classes, de acordo com a fortuna de cada um, alguns plebeus ingressaram na primeira. O patriciado não ousara ou não pudera abolir essa divisão. Não faltaram, pois, plebeus que combatessem ao lado dos patrícios nas primeiras fileiras das legiões, ou que voltassem a seu lado nas primeiras centúrias.

Essa classe rica, altiva, e também prudente, que não podia se comprazer com as revoltas, antes devia temê-las, que tinha muito a perder se Roma viesse a cair, e muito a ganhar com o progresso da cidade, era a intermediária natural entre as duas ordens inimigas.

Não parece que a plebe tenha experimentado repugnância ao ver estabelecer-se em seu meio as distinções da riqueza. Trinta e seis anos depois da criação do tribunado, o número dos tribunos foi elevado a dez, a fim de que houvesse dois em cada uma das cinco classes. A plebe, portanto, aceitava e procurava conservar a divisão que Sérvio havia estabelecido. E mesmo a parte pobre, que não estava compreendida nas classes, não fazia ouvir nenhuma reclamação, deixando aos mais abastados esse privilégio, e não exigia que escolhessem tribunos também entre os seus.

Quanto aos patrícios, pouco se assustavam com a importância que tomava a riqueza, porque também eram ricos. Mais sábios ou mais felizes que os eupátridas de Atenas, que caíram no nada quando a direção da sociedade passou para as mãos da riqueza, os patrícios nunca se descuidaram da agricultura, nem do comércio, nem mesmo da indústria. Aumentar a própria fortuna era sua preocupação constante. O trabalho, a frugalidade, a boa especulação sempre foram uma de suas virtudes. Aliás, cada vitória sobre o inimigo, cada conquista aumentava-lhes as posses. Assim, não viam grande mal em que o poder ficasse ligado à riqueza.

Os hábitos e o caráter dos patrícios eram tais que não podiam desprezar nenhum rico, mesmo se fosse plebeu. O rico plebeu aproximava-se deles, vivia com eles; estabeleciam-se muitas relações de interesse ou de amizade. Esse contato perpétuo provocava uma troca de idéias. O plebeu, pouco a pouco, dava a conhecer ao patrício os desejos e direitos da plebe. O patrício acabava por se deixar convencer; insensivelmente, começava a ter opinião menos firme e menos orgulhosa a respeito da própria superioridade, perdendo a convicção da segurança de seu direito. Ora, quando uma aristocracia chega a duvidar de que seu poder seja legítimo, ou não tem mais coragem para defendê-lo, ou passa a defendê-lo mal. Desde que as prerrogativas do patrício não constituíam mais artigo de fé para ele próprio, pode-se dizer que o patriciado já estava meio vencido.

A classe rica parece ter exercido ação de outro gênero sobre a plebe, da qual nascera e da qual ainda não se havia separado. Como tinha interesse na grandeza de Roma, desejava a união das duas ordens. Além disso, ela era ambiciosa; calculava que a separação absoluta das duas ordens limitava sua carreira, acorrentando-a para sempre à classe inferior, enquanto que a união lhe abriria um caminho cujo termo não podia adivinhar. Esforçou-se, portanto, por imprimir às idéias e desejos da plebe outra direção. Em lugar de persistir em formar uma ordem separada, em lugar de promulgar para si mesma leis particulares, que a outra ordem jamais reconheceria, em lugar de trabalhar lentamente, nos plebiscitos, para fazer leis para seu próprio uso, e em elaborar um código que nunca teria valor oficial, ela lhe inspirou a ambição de penetrar na cidade patrícia, e de participar das leis, instituições e dignidades dos patrícios. Os desejos da plebe inclinaram-se então à união das duas ordens, em condições de igualdade.

A plebe, uma vez adotado esse caminho, começou por reclamar um código. Em Roma, como em todas as outras cidades, havia leis invariáveis e sagradas, leis escritas, cujo texto era guardado pelos sacerdotes(48). Mas essas leis, que faziam parte da religião, não se aplicavam senão aos membros da cidade religiosa. O plebeu não tinha o direito de conhecê-las, e podemos acreditar que também não tinha o direito de invocá-las em seu favor. Essas leis existiam para as cúrias, para as gentes, para os patrícios e seus clientes, mas não para os outros. Elas não reconheciam o direito de propriedade a quem não tivesse sacra; não concediam ações judiciais a quem não tivesse patrono. É esse caráter exclusivamente religioso da lei que a plebe queria fazer desaparecer, pedindo não só que as leis fossem escritas, e se tornassem públicas, mas que houvesse leis que fossem igualmente aplicáveis a patrícios e plebeus.

Parece que os tribunos quiseram a princípio que essas leis fossem redigidas por plebeus. Os patrícios responderam que, aparentemente, os tribunos ignoravam o que fosse uma lei, porque de outro modo não teriam ousado manifestar semelhante pensamento. — “É absolutamente impossível — diziam eles — que os plebeus façam leis; vós, que não tendes auspícios, que não celebrais atos religiosos, que tendes em comum com todas as coisas sagradas, entre as quais está a lei(49)?” — A pretensão da plebe, portanto, parecia monstruosa e ímpia aos olhos dos patrícios. Por isso os velhos anais, que Tito Lívio e Dionísio consultaram nesse trecho da história, mencionam prodígios horríveis: o céu em fogo, fantasmas voltejando pelo ar, chuvas de sangue(50). O verdadeiro prodígio era que plebeus tivessem o pensamento de fazer leis. Entre as duas ordens, cada uma se admirando da insistência da outra, a república ficou oito anos indecisa. Depois os tribunos imaginaram um acordo: “Já que não quereis que a lei seja escrita pelos plebeus — disseram — escolhamos legisladores dentre as duas ordens.” — Com isso julgavam conceder muito, mas era pouco em relação aos princípios tão rigorosos da religião patrícia. O senado replicou dizendo que não se opunha de nenhum modo à redação de um código, mas que esse código não podia ser redigido senão por patrícios. Acabaram por encontrar um meio de conciliar os interesses da plebe com a necessidade religiosa que o patriciado invocava: decidiu-se que os legisladores seriam todos patrícios, mas que o código, antes de ser promulgado e posto em vigor, seria mostrado ao público, e submetido à aprovação prévia de todas as classes.

Não é este o momento de analisar o código dos decênviros. Importa tão somente notar desde agora que a obra dos legisladores, previamente exposta ao fórum, discutida livremente por todos os cidadãos, foi depois aceita pelos comícios centuriais, isto é, pela assembléia na qual ambas as ordens se achavam unidas. Nisso havia uma inovação grave. Adotada pelas duas classes, a mesma lei passava desde então a se aplicar a ambas. Não se encontra, no que ainda nos resta desse código, uma só palavra que denote desigualdade entre o plebeu e o patrício, seja no direito de propriedade, seja nos contratos e obrigações, seja nos processos judiciais. A partir desse momento o plebeu comparece diante do mesmo tribunal que o patrício, age como ele, é julgado pelas mesmas leis que o julgam. Ora, não se podia fazer revolução mais radical; os hábitos de cada dia, os costumes, os sentimentos do homem para com seus semelhantes, a idéia da dignidade pessoal, o princípio do direito, tudo estava mudado em Roma.

Como ainda restavam algumas leis a fazer, nomearam-se novos decênviros, e entre eles havia três plebeus Assim, depois que se havia proclamado com tanta energia que o direito de escrever leis não pertencia senão à classe dos patrícios, o progresso das idéias foi tão rápido, que ao cabo de um ano já se admitiam plebeus entre os legisladores.

Os costumes tendiam para a igualdade. Estava-se em um declive no qual não se podia parar. Tornou-se necessário promulgar uma lei que proibisse o casamento entre as duas ordens, prova certa de que a religião e os costumes não bastavam mais para evitá-los. Mas, apenas tiveram tempo para fazer essa lei, ela foi abolida por reprovação universal. Alguns patrícios ainda persistiram em alegar a religião: “Nosso sangue vai ser manchado; o culto hereditário de cada família ficará infamado; ninguém mais saberá de que sangue nasceu, a que sacrifícios está obrigado; será a ruína de todas as instituições divinas e humanas.” — Os plebeus nada entendiam desses argumentos, que lhes pareciam apenas sutilezas sem valor. Discutir artigos de fé diante de homens que não têm religião é trabalho perdido. Os tribunos, por sua vez, replicavam com muita justiça: “Se é verdade que vossa religião fala tão alto, porque tendes necessidade dessa lei? Não vos servirá para nada; retirai-a, e ficareis tão livres quanto antes para não vos unirdes às famílias dos plebeus.” — A lei foi ab-rogada. Logo os casamentos entre as duas ordens se tornaram freqüentes. Os ricos plebeus foram tão procurados que, para não falar senão dos Licínios, viram-nos unir-se a três gentes patrícias; aos Fábios, aos Cornélios e aos Mânlios(51). Reconheceu-se então que a lei era a única barreira que separava as duas ordens. Daí por diante o sangue patrício e o plebeu se misturaram.

Desde que se conquistara a igualdade na vida privada, o mais difícil estava feito, e parecia natural que também existisse igualdade na política. A plebe queria, portanto, saber por que o consulado lhe era vedado, e não via razões para continuar para sempre afastada desse cargo.

Havia, contudo, uma razão muito forte. O consulado não significava apenas comando; era um sacerdócio. Para ser cônsul, não bastava dar provas de inteligência, coragem, probidade; era necessário sobretudo capacidade para celebrar as cerimônias do culto público. Era necessário que os ritos fossem bem observados, e que os deuses ficassem satisfeitos. Ora, somente os patrícios tinham em si o caráter sagrado que lhes permitia pronunciar preces e invocar a proteção divina sobre a cidade. O plebeu nada tinha em comum com o culto; a religião opunha-se, portanto, a que fosse cônsul: Nefas plebeium consulem fieri.

Podemos imaginar a surpresa e indignação do patriciado, quando os plebeus exprimiram pela primeira vez a pretensão de ser cônsules. Parecia que a religião estava ameaçada. Esforçaram-se por todos os meios para fazer com que a plebe compreendesse isso, dizendo-lhe da importância que a religião tinha para a cidade, pois, ela a fundara, presidia a todos os atos públicos, dirigia as assembléias deliberativas, e elegia os magistrados da república. Acrescentaram ainda que essa religião era, de acordo com antiga regra (more majorum), patrimônio dos patrícios, que seus ritos não podiam ser conhecidos e praticados senão por eles, e que, enfim, os deuses não aceitavam o sacrifício dos plebeus. Propor a criação de cônsules plebeus era querer suprimir a religião da cidade; dali por diante o culto estaria manchado, e a cidade não estaria mais em paz com os deuses(52).

O patriciado usou de todas as suas forças e habilidades para afastar os plebeus dessa magistratura, defendendo ao mesmo tempo a religião e o poder. Desde que percebeu que o consulado estava em perigo de ser conquistado pela plebe, separou do mesmo a função religiosa que entre todas tinha mais importância, a que consistia em fazer a lustração dos cidadãos; assim foram criados os censores. Quando os patrícios perceberam que era muito difícil resistir à vontade dos plebeus, substituíram o consulado pelo tribunado militar. A plebe mostrou, aliás, grande paciência; esperou setenta e cinco anos para que seu desejo fosse realizado. É evidente que mostrava menos ardor para conseguir essas magistraturas do que demonstrara para conquistar o tribunado e o código.

Mas se a plebe era tão indiferente, havia uma aristocracia plebéia mais ambiciosa. Eis uma lenda da época: “Fábio Ambusto, um dos patrícios mais distintos, tinha casado suas duas filhas, uma com um patrício, que se tornou tribuno militar, outra com Licínio Stolon, homem muito conhecido, mas plebeu. Esta encontrava-se um dia em casa da irmã, quando os lictores, trazendo para casa o tribuno militar, bateram à porta com os seus fasces. Como ignorava esse costume, teve medo. Os risos e as perguntas irônicas da irmã fizeram-lhe ver como o casamento plebeu a rebaixara, colocando-a em uma casa onde dignidades e honras jamais deviam ter entrada. Seu pai adivinhou-lhe o desgosto, consolou-a, e prometeu-lhe que veria um dia em sua casa o que acabava de presenciar na casa da irmã. Entendeu-se com o genro, e ambos se puseram a trabalhar com a mesma finalidade.” — Esta lenda, em meio a alguns pormenores pueris e inverossímeis, ensina-nos pelo menos duas coisas: uma, que a aristocracia plebéia, à força de viver com os patrícios, adotava suas ambições e aspirava a suas dignidades; outra, que havia patrícios que encorajavam e excitavam a ambição dessa nova aristocracia, que se unira a eles pelos laços mais íntimos.

Parece que Licínio, e Séxtio, que se juntara a ele, não esperavam que a plebe fizesse grandes esforços para lhes dar o direito de ser cônsules, porque julgaram de seu dever propor três leis ao mesmo tempo. A que tinha por objeto estabelecer que um dos cônsules fosse forçosamente escolhido dentre a plebe, era precedida de duas outras, uma visando diminuir as dívidas, outro procurando dar terras ao povo. É evidente que as duas primeiras deviam servir para estimular o zelo da plebe em favor da terceira. Houve um momento em que a plebe se mostrou clarividente: tomou das proposições de Licínio o que lhe interessava, isto é, a redução das dívidas e a distribuição das terras, e não se importou com a conquista do consulado. Mas Licínio replicou que as três leis eram inseparáveis, e que era necessário aceitá-las ou rejeitá-las em conjunto. A constituição romana autorizava esse modo de proceder. É lógico que a plebe preferiu aceitar tudo a perder tudo.

Mas não bastava que a plebe quisesse promulgar leis; nessa época ainda era necessário que o senado convocasse os grandes comícios para aprovar os decretos(53), e o senado recusou-se a isso durante dez anos. Enfim sucedeu algo que Tito Lívio não esclarece satisfatoriamente(54); parece que a plebe tomou armas, e que a guerra civil cobriu de sangue as ruas de Roma. O patriciado, vencido, promulgou um senatus-consulto pelo qual aprovava e confirmava de antemão todos os decretos que o povo apresentasse naquele ano. Nada mais impedia aos tribunos a votação das três leis. A partir desse momento a plebe teve cada ano um cônsul plebeu sobre dois patrícios, e não tardou a conseguir outras magistraturas. O plebeu passou a usar o vestido púrpura e a ser precedido pelos fasces; administrou a justiça, elegeu-se senador, governou a cidade e comandou legiões.

Restava ainda o sacerdócio, que parecia não poder ser tirado aos patrícios, pois, era dogma inabalável da antiga religião que o direito de recitar orações e de tocar nos objetos sagrados não se transmitia senão pelo sangue. A ciência dos ritos, como a posse dos deuses, era hereditária. Assim, como o culto doméstico constituía patrimônio do qual nenhum estranho podia participar, o culto da cidade pertencia exclusivamente às famílias que haviam formado a cidade primitiva. Certamente, nos primeiros séculos de Roma, ninguém jamais pensou que um plebeu pudesse ser pontífice.

Mas as idéias eram outras. A plebe, tirando à religião o caráter de hereditariedade, instituiu uma religião para seu próprio uso, acendendo lares domésticos, erigindo altares nas esquinas, e lares tribais. O patrício, a princípio, só sentiu desprezo por esse arremedo de sua religião. Mas, com o tempo, a religião dos plebeus tornou-se coisa séria, chegando estes a crer que eram, mesmo sob o ponto de vista do culto e em relação aos deuses, iguais aos patrícios.

Dois princípios se defrontavam. O patriciado persistia em sustentar que o caráter sacerdotal e o direito de adorar a divindade eram hereditários. A plebe libertara a religião e o sacerdócio dessa antiga regra de hereditariedade, pretendendo que todo homem era apto a pronunciar as preces, e que, contanto que fosse cidadão, tinha o direito de realizar as cerimônias do culto da cidade, chegando por fim à conclusão de que o plebeu podia ser pontífice.

Se os sacerdotes não se imiscuíssem no comando e na política, é possível que os plebeus não houvessem desejado tão ardentemente esses cargos. Mas todas essas coisas estavam ligadas umas às outras: o sacerdote era magistrado, o pontífice era juiz, o áugure podia dissolver as assembléias públicas. A plebe não deixou de se aperceber de que sem o sacerdócio não possuía realmente nem igualdade civil, nem igualdade política. Reclamou, portanto, a divisão do pontificado entre as duas ordens, como outrora exigira a divisão do consulado.

Tornava-se difícil objetar-lhe sua incapacidade religiosa, porque há sessenta anos já se via o plebeu, como cônsul, oferecer sacrifícios; como censor, realizava o rito da lustração; vencedor do inimigo, preenchia as sagradas formalidades do triunfo. Por meio das magistraturas a plebe já se havia apoderado de uma parte do sacerdócio; não era fácil salvar o resto. A fé no princípio da hereditariedade religiosa já estava abalada mesmo entre os próprios patrícios. Alguns dentre eles invocaram em vão as velhas regras, e disseram: “O culto vai ser alterado, vai ser manchado por mãos indignas; estais provocando os próprios deuses; tomai cuidado para que sua cólera não se faça sentir em nossa cidade(55).” — Não parece que esses argumentos tenham tido muita força sobre a plebe, nem mesmo que a maioria dos patrícios se tenha comovido com eles. Os novos costumes davam ganho de causa ao princípio plebeu. Decidiu-se, portanto, que metade dos pontífices e dos áugures seria para o futuro escolhida dentre a plebe(56).

Esta foi a última conquista da ordem inferior; não havia mais nada a desejar. O patriciado perdera até sua superioridade religiosa. Nada mais o distinguia da plebe; o patriciado não era mais que um nome, uma lembrança. Os velhos princípios sobre os quais a cidade romana, como todas as cidades antigas, estava fundada, haviam desaparecido. Da antiga religião hereditária, que por muito tempo governara os homens, estabelecendo classes e divisões, não restavam mais que as formas exteriores. O plebeu lutara contra ela durante quatro séculos, sob a república e sob os reis, e por fim alcançara vitória.

CAPÍTULO VIII

MODIFICAÇÕES NO DIREITO PRIVADO. O CÓDIGO DAS DOZE TÁBUAS. O CÓDIGO DE SÓLON

 

Não está na natureza do direito ser absoluto e imutável. O direito se modifica e evolui, como qualquer obra humana. Cada sociedade tem seu direito, que se forma e se desenvolve com ela, que juntamente com ela se transforma, e que, enfim, segue sempre a evolução de suas instituições, de seus costumes, de suas crenças.

Os homens das antigas idades estavam sujeitos a uma religião tanto mais poderosa sobre suas almas quanto mais rude; essa religião dera-lhes o direito, assim como formara suas instituições políticas. Mas eis que a sociedade se transforma. O regime patriarcal, gerado por essa religião hereditária, com o tempo tornou-se regime da cidade. Insensivelmente a gens se desmembrou, o irmão mais novo libertou-se do mais velho, o servo libertou-se do senhor; a classe inferior cresceu, armou-se, e acabou por conquistar a igualdade, vencendo a aristocracia. Essa modificação do estado social devia modificar também o direito, porque, assim como eupátridas e patrícios estavam ligados à velha religião das famílias, e, por conseqüência, ao velho direito, assim a classe inferior tinha ódio dessa religião hereditária, que por muito tempo a conservara em estado de inferioridade, e detestava esse direito antigo, que a oprimira. Não somente ela o detestava, mas não o compreendia. Como não acreditava nas crenças sobre em que se baseava, esse direito lhe parecia sem fundamento. A plebe achava-o injusto, e desde então tornou-se impossível mantê-lo.

Se nos colocarmos na época em que a plebe levantou-se, e passou a fazer parte do corpo político, se compararmos o direito dessa época ao direito primitivo, graves mudanças aparecem logo à primeira vista. A primeira, a mais evidente, é que o direito tornou-se público e conhecido de todos. Não é mais aquele canto sagrado e misterioso, que se repetia de idade em idade com piedoso respeito, que somente os sacerdotes escreviam, e que somente os homens das famílias religiosas podiam conhecer. O direito saiu dos rituais e dos livros dos sacerdotes, perdendo seu mistério religioso; é uma língua que todos podem ler e falar.

Algo mais grave ainda se manifesta nesses códigos. A natureza da lei, e seu princípio, não são mais os mesmos do período precedente. Antes a lei era decreto da religião; passava por uma revelação feita pelos deuses aos antepassados, ao fundador divino, aos reis sagrados, aos magistrados sacerdotes. Nos novos códigos, pelo contrário, não é mais em nome dos deuses que o legislador fala; os decênviros de Roma receberam o poder do povo; foi também o povo que investiu Sólon do direito de fazer leis. O legislador, portanto, não representa mais a tradição religiosa, mas a vontade popular. A lei doravante tem por princípio o interesse dos homens, e por fundamento o assentimento da maioria.

Daí, duas conseqüências. Em primeiro lugar, a lei não se apresenta mais como fórmula imutável e indiscutível. Tornando-se obra humana, ela se reconhece sujeita a mudanças. As Doze Tábuas o afirmam: “O que os sufrágios do povo ordenaram em último lugar, essa é a lei(1).” — De todos os textos que nos restam desse código, não há nenhum que tenha mais importância que esse, nem que marque melhor o caráter da revolução que então se deu no direito. A lei não é mais uma tradição sagrada, mos; é um simples texto, lex; e, como é feita pela vontade dos homens, essa mesma vontade pode modificá-la.

Outra conseqüência é esta: a lei, que antes era parte da religião, e constituía, portanto, patrimônio das famílias sagradas, tornou-se propriedade comum de todos os cidadãos. O plebeu podia invocá-la, e mover ação em justiça. Quando muito, o patrício de Roma, mais tenaz ou mais astucioso que o eupátrida de Atenas, tentou esconder da multidão as formas do processo, que também não tardaram a ser divulgadas.

Assim o direito mudou de natureza. A partir dessa época não podia mais conter as mesmas prescrições da época precedente. Enquanto a religião imperou sobre o direito, ele regulara as relações dos homens entre si, de acordo com os princípios dessa religião. Mas a classe inferior, que trazia para a cidade outros princípios, não entendia nada das velhas regras do direito de propriedade, nem o antigo direito de sucessão, nem a autoridade absoluta do pai, nem o parentesco por agnação. Ela queria que tudo isso desaparecesse.

Na verdade essa transformação do direito não pôde se realizar de um só golpe. Se às vezes é possível ao homem mudar bruscamente suas instituições políticas, ele não pode modificar as leis e o direito privado senão muito devagar, e gradativamente. É o que prova a história do direito romano, como a do direito ateniense.

As Doze Tábuas, como vimos acima, foram escritas em meio a uma transformação social; foram feitas pelos patrícios, mas a pedido da plebe, e para seu uso. Essa legislação, portanto, não é mais o direito primitivo de Roma; não é ainda o direito pretoriano; é uma transição entre os dois.

Eis aqui, em primeiro lugar, os pontos sobre os quais não se afasta ainda do direito antigo:

Conserva o poder do pai; deixa que ele julgue o filho, condene-o à morte, venda-o. Enquanto o pai for vivo, o filho nunca é considerado maior.

Pelo que respeita às sucessões, as Doze Tábuas também conservam regras antigas; a herança passa aos agnados, e, na falta de agnados, aos gentiles. Quanto aos cognados, isto é, aos parentes pela parte das mulheres, a lei ainda os desconhece; eles não herdam entre si; a mãe não sucede ao filho, nem o filho à mãe(2).

Conservam à emancipação e à adoção o caráter e os efeitos que esses dois atos tinham no direito antigo. O filho emancipado não tem mais parte no culto de família, resultando daí perder seu direito à sucessão.

Eis agora os pontos sobre os quais essa legislação se afasta do direito primitivo:

Admite formalmente que o patrimônio pode ser dividido entre irmãos, pois que lhes concede a actio familiae erciscundae(3).

Declara que o pai não poderá dispor por mais de três vezes da pessoa do filho, e que depois de três vendas o filho será livre(4). Este foi o primeiro golpe que o direito romano vibrou sobre a autoridade paterna.

Outra mudança mais grave foi a que deu ao homem o poder de testar. Antes o filho era herdeiro seu e necessário; na falta de filhos, o agnado mais próximo tornava-se herdeiro; na falta de agnados, os bens retornavam à gens, em memória do tempo em que a gens, ainda indivisa, era a única proprietária do domínio que depois foi dividido. As Doze Tábuas deixam de lado os velhos princípios; consideram a propriedade como pertencente não mais à gens, mas ao indivíduo; reconhecem, portanto, ao homem o direito de dispor de seus bens por testamento.

Não que no direito primitivo o testamento fosse completamente desconhecido. O homem já podia escolher um legatário estranho à gens, com a condição, porém, de submeter sua escolha à aprovação da assembléia das cúrias; de forma que só a vontade da cidade inteira podia fazer derrogar a ordem que a religião havia estabelecido. O novo direito desembaraça o testamento dessa regra incômoda, e dá-lhe forma mais fácil: a de uma venda simulada. O homem fingirá vender sua fortuna àquele que escolheu como legatário; na realidade, fará um testamento, sem ter necessidade de comparecer diante da assembléia do povo.

Essa forma de testamento tinha a grande vantagem de ser permitida ao plebeu. Ele, que nada tinha em comum com as cúrias, não tinha até então nenhum meio para testar(5). Daí por diante podia usar o processo da venda fictícia, e dispor de seus bens. O que há de mais notável nesse período da história da legislação romana é que, pela introdução de certas formas novas, o direito pôde estender sua ação e benefícios às classes inferiores. As antigas regras e formalidades não haviam podido, e não podiam ainda aplicar-se convenientemente senão às famílias religiosas; mas imaginaram-se novas regras e novos processos, que fossem aplicáveis aos plebeus.

É pela mesma razão, e em conseqüência da mesma necessidade, que se introduziram inovações na parte do direito que dizia respeito ao matrimônio. É claro que as famílias plebéias não observavam o casamento religioso, e podemos acreditar que para elas a união conjugal repousava unicamente sobre a convenção mútua das partes (mutuus consensus) e sobre o afeto que se haviam prometido (affectio maritalis). Não se realizava nenhuma formalidade civil ou religiosa. Esse casamento plebeu acabou por prevalecer, com o tempo, nos costumes e no direito; mas a princípio as leis da cidade patrícia não lhe reconheciam nenhum valor. Ora, isso tinha graves conseqüências; como o poder marital e paternal não derivava, aos olhos do patrício, senão da cerimônia religiosa, que havia iniciado a mulher no culto do esposo, resultava daí não ter o plebeu esse poder. A lei não lhe reconhecia família, e o direito privado não existia para ele. Era uma situação que não podia durar mais. Imaginou-se, portanto, um processo para uso do plebeu, e que, para as relações civis, produzisse os mesmos efeitos que o casamento religioso. Recorreu-se, como para o testamento, a uma venda fictícia. A mulher era comprada pelo marido (coemptio), e desde então a reconheceram em direito como parte de sua propriedade (familia), e ficou na sua mão, como filha em relação ao esposo, justamente como se a cerimônia religiosa se tivesse realizado(6).

Não saberíamos afirmar se esse processo era ou não mais antigo que as Doze Tábuas. Pelo menos é certo que a nova legislação reconheceu-o como legítimo. Ela dava assim ao plebeu um direito privado, análogo em seus efeitos ao direito do patriciado, embora se diferenciasse muito em seus princípios.

À coemptio corresponde o usus: são duas formas de um mesmo ato. Todo objeto pode ser adquirido indiferentemente de duas maneiras: por compra ou por uso; o mesmo acontece com a propriedade fictícia da mulher. O uso aqui é a coabitação de um ano, que estabelece entre os dois esposos os mesmos laços de direito que a compra e a cerimônia religiosa. Sem dúvida não é necessário acrescentar que a coabitação devia ser precedida de casamento, pelo menos do casamento plebeu, que se efetuava pelo consentimento e afeição das partes. Nem a coemptio nem o usus criavam união moral entre os esposos; esta só acontecia depois do casamento, e não estabelecia senão um vínculo de direito. Não eram, como muitas vezes se repete, formas de casamento; eram apenas meios de adquirir o poder marital e paternal(7).

Mas o poder marital dos tempos antigos tinha conseqüências que, na época da história em que chegamos, começavam a parecer excessivas. Vimos que a mulher estava sujeita sem reservas ao marido, e que o direito deste ia até poder vendê-la ou aliená-la(8). De outro ponto de vista, o poder marital produzia ainda efeitos que o bom-senso do plebeu mal podia compreender; assim a mulher, colocada na mão do marido, ficava separada de maneira absoluta da família paterna; não herdava, e não conservava com ela nenhum laço ou parentesco aos olhos da lei. Isso era bom no direito primitivo, quando a religião proibia que a mesma pessoa fizesse parte de duas gentes, sacrificasse a dois lares, e fosse herdeira em duas casas. Mas o poder marital não era mais concebido com esse rigor, e se podiam ter vários motivos excelentes para escapar a essas duras conseqüências. Também a lei das Doze Tábuas, ao estabelecer que a coabitação de um ano colocava a mulher sob o poder do marido, foi obrigada a deixar aos esposos a liberdade de não contrair vínculo tão rigoroso. Que a mulher interrompa a coabitação todos os anos, fosse embora por uma ausência de três noites, é o bastante para que o poder marital deixe de se estabelecer. Desse modo a mulher conserva os laços de direito com a própria família, e pode herdar.

Sem que seja necessário entrarmos em pormenores mais longos, vemos que o código das Doze Tábuas já se afasta muito do direito primitivo. A legislação romana se transforma, como acontece com o governo e o Estado social. Pouco a pouco, e quase em cada geração, surgem novas modificações. À medida que as classes inferiores progridem na ordem política, nova modificação será introduzida nas regras do direito. A princípio é o casamento, que vai ser permitido entre patrícios e plebeus. Depois é a lei Papíria, que proibirá ao devedor empenhar sua pessoa ao credor. É o processo que se simplifica, para grande proveito dos plebeus, com a abolição das ações da lei. Enfim, o pretor, continuando a caminhar pela via aberta pelas Doze Tábuas, traçará ao lado do direito antigo um direito absolutamente novo, não inspirado pela religião, e que cada vez mais se aproximará do direito natural.

Revolução análoga aparece no direito ateniense. Sabemos que em Atenas foram redigidos dois códigos de leis, no intervalo de trinta anos, o primeiro por Drácon o segundo por Sólon. O de Drácon foi escrito quando era mais forte a luta entre as duas classes, e quando os eupátridas ainda não estavam vencidos. Sólon redigiu o seu no mesmo momento em que a classe inferior o conquistou. Assim as diferenças são grandes entre os dois códigos.

Drácon era eupátrida; tinha todos os sentimentos de sua casta, e “era instruído no direito religioso”. Não parece ter feito outra coisa que passar por escrito antigos costumes, sem nada mudar. Sua primeira lei é esta: “Devem-se honrar os deuses e heróis do país, e oferecer-lhes sacrifícios anuais, sem se afastar dos ritos seguidos pelos antepassados.” — Conservou-se a lembrança de suas leis sobre o homicídio; elas prescrevem que o culpado seja afastado dos templos, e proíbe-lhe tocar na água lustral e nos vasos sagrados(9).

Suas leis pareceram cruéis às gerações seguintes. Com efeito, foram ditadas por uma religião implacável, que via em toda falta uma ofensa à divindade, e em toda ofensa à divindade um crime irremissível. O roubo era punido com a morte, porque era um atentado contra a religião da propriedade.

Um curioso artigo que nos foi conservado dessa legislação mostra com qual espírito foi feita. Ela não concedia o direito de demandar em justiça senão aos pais do morto e aos membros de sua gens(10). Por aí vemos quanto a gens era ainda poderosa nessa época, pois não permitia que a cidade interviesse oficiosamente em seus negócios, fosse embora para vingá-la. O homem pertencia ainda à família, mais que à cidade.

Em tudo o que chegou até nós dessa legislação vemos que ela não fazia nada mais que reproduzir o direito antigo. Possuía a dureza e a rigidez da velha lei não escrita. Podemos acreditar que estabelecia uma demarcação bem profunda entre as classes, porque a classe inferior sempre a detestou, e, ao cabo de trinta anos, reclamava nova legislação.

O código de Sólon é completamente diferente; vê-se que corresponde a uma grande revolução social. A primeira coisa que se nota é que as leis são as mesmas para todos; não estabelecem distinção entre o eupátrida, o simples homem livre e o teta. Essas palavras nem sequer se encontram em nenhum dos artigos que nos são conservados. Sólon se orgulha em seus versos de haver escrito as mesmas leis para os grandes e para os pequenos(11).

Como as Doze Tábuas, o código de Sólon se afasta em muitos pontos do direito antigo; em outros pontos continua-lhe fiel. Isso não quer dizer que os decênviros romanos tenham copiado as leis de Atenas; mas as duas legislações, obras da mesma época, conseqüências da mesma revolução social, não puderam deixar de se assemelharem. Essa semelhança, contudo, existe apenas no espírito de ambas as legislações, porque a comparação de dois artigos apresenta numerosas diferenças. Há pequenos pontos sobre os quais o código de Sólon fica mais perto do direito primitivo que as Doze Tábuas, como há outros nos quais se afasta consideravelmente.

O direito mais antigo estabelecera que o filho mais velho fosse o único herdeiro. A lei de Sólon se afasta dessa lei, e diz em termos formais: “Os irmãos dividirão entre si o patrimônio” — Mas o legislador não se afasta ainda do direito primitivo ao ponto de dar à irmã parte da herança: “A divisão — diz ele — será feita entre os filhos(12).”

Há mais: se um pai não deixa senão uma filha, essa filha única não pode ser herdeira; é sempre o agnado mais próximo que tem a sucessão. Nisso Sólon se conformou com o antigo direito; pelo menos conseguiu dar à filha o gozo do patrimônio, obrigando o herdeiro a se casar com ela(13).

O parentesco pelas mulheres era desconhecido no antigo direito; Sólon o admite no novo direito, colocando-o, porém, abaixo do direito pela linha masculina. Eis sua lei(14): “Se um pai, morrendo intestado, não deixa senão uma filha, o agnado mais próximo herda, casando-se com a filha. Se não deixa filhos, seu irmão herda, e não a irmã; seu irmão germano, ou consangüíneo, e não o irmão uterino. Na falta de irmãos, ou de seus filhos, a sucessão passa à irmã. Se não deixa nem irmãos, nem irmãs, nem sobrinhos, herdam os primos do ramo paterno, e seus filhos. Se não se encontram primos no ramo paterno (isto é, entre os agnados), a sucessão é deferida aos colaterais do ramo materno (isto é, aos cognados).” — Assim, as mulheres começam a ter direitos à sucessão, mas inferiores aos dos homens; a lei enuncia, formalmente esse princípio: “Os varões, e seus descendentes, excluem as mulheres, e seus descendentes.” — Pelo menos essa espécie de parentesco é reconhecida, e passa a fazer parte das leis, prova certa de que o direito natural começa a falar quase tão alto quanto a antiga religião.

Sólon introduziu ainda na legislação ateniense algo absolutamente novo, o testamento. Antes dele os bens passavam necessariamente ao agnado mais próximo, ou, na falta desses, aos genetas (gentiles)(15), e isso porque os bens não eram considerados como pertencentes ao indivíduo, mas à família. Mas, nos tempos de Sólon, começou-se a conceber de outra maneira o direito de propriedade; o desaparecimento do antigo ghénos havia feito de cada domínio propriedade de um indivíduo. O legislador permitiu, portanto, ao homem dispor da própria fortuna e escolher seu legatário. Todavia, suprimindo o direito que o ghénos tivera sobre os bens de cada um de seus membros, ele não suprimiu os direitos da família natural; o filho continuou como herdeiro necessário; se o moribundo não deixava senão uma filha, não podia escolher herdeiro senão sob a condição de que este se casasse com sua filha; sem filhos, o homem era livre de testar como bem entendesse(16). Esta última regra era absolutamente nova no direito ateniense, e podemos ver por ela como se formaram então novas idéias sobre a família, e como já se começava a distingui-la do antigo ghénos.

A religião primitiva havia dado ao pai uma autoridade soberana. O direito antigo de Atenas chegava até a dar-lhe permissão para vender ou matar o próprio filho(17). Sólon, conformando-se aos novos costumes, limitou esse poder(18); sabemos com certeza que ele proibiu que os pais vendessem as próprias filhas, a menos que elas se tornassem culpadas de falta grave; é provável que a mesma proibição protegesse o filho. A autoridade paterna ia-se enfraquecendo à medida que a antiga religião perdia terreno, o que aconteceu mais depressa em Atenas que em Roma. Por isso o direito ateniense não se contentou em afirmar, como as Doze Tábuas: “Depois de tríplice venda o filho será livre” — mas permitiu ao filho, depois de certa idade, escapar ao poder do pai. Os costumes, senão as leis, chegaram insensivelmente a estabelecer a maioridade do filho, mesmo durante a vida do pai. Conhecemos uma lei de Atenas que manda ao filho alimentar o pai idoso ou enfermo; tal lei implica necessariamente no filho o direito de possuir, e, por conseqüência, sua emancipação do poder paterno. Essa lei não existia em Roma, porque o filho nunca possuía coisa alguma, e ficava sempre sob o domínio do pai.

Para a mulher a lei de Sólon se conformava ainda ao direito antigo, quando lhe proibia testar, porque a mulher jamais era realmente proprietária, e não podia ter senão o usufruto. Mas se afastava desse direito antigo quando lhe permitia reaver seu dote(19).

Havia ainda outras inovações nesse código. Ao contrário de Drácon, que não havia concedido senão à família da vítima, o direito de perseguir um crime em justiça, Sólon concedeu-o a qualquer cidadão(20). Mais uma lei do antigo direito patriarcal que desaparecia.

Assim, em Atenas como em Roma, o direito começava a se transformar. Para um novo estado social surgia um novo direito. Modificando-se as crenças, os costumes, as instituições, as leis que antes pareceram justas e boas deixaram de parecê-lo, e pouco a pouco foram sendo esquecidas.

CAPÍTULO IX

NOVO PRINCÍPIO DE GOVERNO. O INTERESSE PÚBLICO E O SUFRÁGIO

 

A revolução, que derrubou o domínio da classe sacerdotal e elevou a classe inferior ao nível dos anciãos chefes das gentes, marcou o início de um período novo na história das cidades. Deu-se uma espécie de renovação social. Não era apenas uma classe de homens que substituía outra classe no poder. Eram velhos princípios que eram postos de lado, e regras novas que passariam a governar as sociedades humanas.

É verdade que a cidade conservou as formas exteriores que tivera na época precedente. O regime republicano subsistiu; os magistrados conservaram em quase toda parte seus antigos nomes; Atenas teve ainda seus arcontes, e Roma continuou com seus cônsules. Não se alteraram tampouco as cerimônias da religião pública; o banquete do pritaneu, os sacrifícios no início das assembléias, os auspícios e as preces, tudo foi conservado. É comum acontecer ao homem, quando rejeita velhas instituições, querer conservar pelo menos as aparências.

No fundo, tudo estava mudado. Nem as instituições, nem o direito, nem as crenças, nem os costumes desse novo período foram o que haviam sido no período anterior. O antigo regime desapareceu, levando consigo as regras rigorosas que havia estabelecido em todas as coisas; fundou-se novo regime, e a vida humana mudou de feição.

A religião havia sido, durante longos séculos, o único princípio de governo. Era necessário encontrar novo princípio capaz de o substituir, e que pudesse, como ela, reger as sociedades, pondo-as, tanto quanto possível, ao abrigo de flutuações e de conflitos. O princípio sobre o qual o governo das cidades se fundou daí por diante passou a ser o interesse público.

É necessário observar esse novo dogma que então apareceu no espírito dos homens e na história. Antes, a regra superior, de onde derivava a ordem social, não era o interesse, era a religião. O dever de celebrar os ritos do culto havia sido o vínculo que unia a sociedade. Dessa necessidade religiosa derivava-se, para uns o direito de mandar, para outros a obrigação de obedecer; daí surgiram as regras da justiça e dos processos, as das deliberações públicas e as da guerra. As cidades não perguntavam a si mesmas se as instituições que tinham eram úteis; essas instituições eram fundadas porque a religião assim o quis. Nem o interesse, nem a conveniência haviam contribuído para estabelecê-las; e se a classe sacerdotal havia combatido para defendê-las, não o fez em nome do interesse público, mas em nome da tradição religiosa.

Mas no período em que entramos agora, a tradição não tem mais força e a religião não governa mais. O princípio regulador, do qual todas as instituições devem tirar de agora em diante sua força, o único que estará acima das vontades individuais, e que seja capaz de obrigá-las a se submeter, é o interesse público. O que os latinos chamam res publica, os gregos tò koinón, eis o que agora substitui a velha religião. Isso é o que decidirá de agora em diante as instituições e as leis, e é a isso que se reportam todos os atos importantes das cidades. Nas deliberações do senado ou das assembléias populares, quer se discuta uma lei ou uma forma de governo, um ponto de direito privado ou uma instituição política, ninguém mais quer saber o que a religião prescreve, mas o que reclama o interesse geral.

Atribui-se a Sólon uma palavra que caracteriza muito bem o novo regime. Alguém lhe perguntava se ele julgava haver dado à pátria a melhor constituição: “Não — responde ele — mas a que mais nos convém.” — Ora, era algo novo não exigir mais das formas de governo e às leis senão mérito relativo. As antigas constituições, baseando-se nas regras do culto, haviam-se proclamado infalíveis e imutáveis; tendo o mesmo rigor e inflexibilidade da religião. Sólon indicava por essa palavra que para o futuro as constituições políticas deveriam se conformar às necessidades, aos costumes, aos interesses dos homens de cada época. Não se tratava mais de verdade absoluta; as regras de governo deviam de aí em diante tornar-se flexíveis e variáveis. Diz-se que Sólon desejava, quando muito, que as leis fossem observadas durante cem anos(1).

As prescrições do interesse público não são tão absolutas, tão claras, tão manifestas como as da religião. Sempre se pode discuti-las; não são encontradas à primeira vista. O modo que pareceu mais simples e seguro para se saber o que o interesse público reclamava, foi reunir os homens, e consultá-los. Esse processo foi considerado necessário, e empregado quase que diariamente. Na época anterior, os auspícios haviam decidido quase que sozinhos todas as deliberações: a opinião do sacerdote, do rei, do magistrado sagrado era onipotente; votava-se pouco, e mais para cumprir uma formalidade que para dar a conhecer a opinião de cada um. De agora em diante passou-se a votar sobre todas as coisas; era necessário conhecer a opinião de todos para se estar seguro de conhecer o interesse de todos. A regra do direito foi a origem das instituições, que decidiu o que era útil e o que era justo. Essa regra ficava acima dos magistrados, acima mesmo das leis; foi a soberana da cidade.

Também o governo mudou de natureza. Sua função essencial não foi mais o cumprimento regular das cerimônias religiosas; foi, sobretudo, constituído para manter a ordem e a paz no interior, a dignidade e o poder no exterior. O que ficara outrora em segundo plano, passou para o primeiro. A política passou à frente da religião, e o governo dos homens tornou-se coisa humana. Em conseqüência, criavam-se novas magistraturas, ou, pelo menos, as antigas tomavam novo caráter. É o que se pode ver pelo exemplo de Atenas e de Roma.

Em Atenas, durante o domínio da aristocracia, os arcontes haviam sido sobretudo sacerdotes; o cuidado de julgar, de administrar, de declarar guerra, reduzia-se a pouca coisa, e podia, sem inconvenientes, estar ao lado do sacerdócio. Quando a cidade ateniense rejeitou os velhos processos religiosos de governo, não suprimiu o arcontado, porque havia grande repugnância em suprimir o que era antigo. Mas ao lado dos arcontes estabeleceram-se outras magistraturas, que, pela natureza de suas funções, correspondiam melhor às necessidades da época. Eram os estrategos. A palavra significa chefe do exército, mas sua autoridade não era puramente militar; cuidavam das relações com as outras cidades, assim como da administração das finanças, e de tudo o que dizia respeito à polícia da cidade. Pode-se dizer que os arcontes tinham em suas mãos a religião, e tudo o que a ela dizia respeito, juntamente com a direção aparente da justiça, enquanto que os estrategos tinham o poder político. Os arcontes conservavam a autoridade tal qual as antigas idades a haviam concebido; os estrategos possuíam a autoridade que as novas necessidades julgaram bem estabelecer. Pouco a pouco chegou-se ao ponto de os arcontes não conservarem senão uma aparência de poder, enquanto que os estrategos o tinham realmente nas mãos. Esses novos magistrados não eram mais sacerdotes; apenas realizavam as cerimônias absolutamente indispensáveis em tempos de guerra. O governo tendia cada vez mais a se separar da religião.

Esses estrategos podiam ser escolhidos fora da classe dos eupátridas. Na prova por que passavam antes de serem nomeados (dokimasia), não lhes perguntavam, como o faziam aos arcontes, se tinham culto doméstico, ou se eram de família pura; bastava que sempre tivessem cumprido os deveres de cidadãos, e possuíssem terras na Ática(2). Os arcontes eram designados por sorte, isto é, pela voz dos deuses; o mesmo não acontecia com os estrategos. Como o governo se tornava mais difícil e mais complicado, a piedade já não era mais a qualidade principal, e como havia necessidade de habilidade, de prudência, de coragem, da arte de comandar, não se acreditava mais que a voz da sorte fosse suficiente para fazer um bom magistrado. A cidade não queria mais estar vinculada à pretensa vontade dos deuses, e fazia questão de escolher livremente seus chefes. Que o arconte, que era sacerdote, fosse designado pelos deuses, era natural; mas o estratego, que tinha nas mãos os interesses materiais da cidade, devia ser eleito pelos homens.

Se observarmos de perto as instituições de Roma veremos que também ali surgiam mudanças do mesmo gênero. De uma parte, os tribunos da plebe aumentaram a tal ponto a própria importância, que a direção da república, pelo menos no que dizia respeito aos negócios internos, acabou caindo-lhes nas mãos. Ora, esses tribunos, que não .tinham caráter sacerdotal, assemelhavam-se muito aos estrategos. De outra parte, o próprio consulado não se pôde manter sem mudar de natureza. O que tinha em si de sacerdotal foi aos poucos desaparecendo. É bem verdade que o respeito dos romanos para com as tradições e as formas do passado exigia que o cônsul continuasse a celebrar cerimônias religiosas instituídas pelos antepassados. Mas é evidente que no dia em que os plebeus se tornaram cônsules essas cerimônias não passavam de meras formalidades. O consulado tornou-se cada vez menos sacerdócio, para se transformar cada vez mais em cargo de comando. Essa transformação foi lenta, insensível, desapercebida, e não deixou por isso de ser completa. O consulado já não era certamente no tempo dos Cipiões o que havia sido nos tempos de Publícola. O tribunado militar, que o senado instituiu em 443, e sobre o qual os antigos nos dão poucas informações, foi talvez a transição entre o consulado da primeira época e o da segunda.

Pode-se notar também que houve uma mudança na maneira de nomear cônsules. Com efeito, nos primeiros séculos, o voto das centúrias na eleição do magistrado não era, como vimos, senão pura formalidade. Na verdade, o cônsul de cada ano era criado pelo cônsul do ano precedente que transmitia os auspícios, depois de consultar a vontade dos deuses. As centúrias não votavam senão em dois ou três candidatos, apresentados pelo cônsul em exercício; não havia debates. O povo podia detestar um candidato, e não era forçado a votar em quem não queria. Na época em que estamos agora a eleição é completamente diferente, embora as formas ainda sejam as mesmas. Como no passado, ainda há cerimônia religiosa e voto; mas a cerimônia religiosa é mera formalidade, o voto é que é realidade. O candidato deve ainda fazer-se apresentar pelo cônsul que preside; mas o cônsul é obrigado, senão por lei, ao menos pelo costume, a aceitar todos os candidatos, e a declarar que os auspícios são igualmente favoráveis a todos. Assim as centúrias elegem os que bem entende. A eleição não pertence mais aos deuses, mas está nas mãos do povo. Os deuses e os auspícios não são mais consultados senão com a condição de serem imparciais com todos os candidatos. Os homens é que escolhem.

CAPÍTULO X

TENTA-SE CONSTITUIR UMA ARISTOCRACIA DA RIQUEZA. ESTABELECIMENTO DA DEMOCRACIA. A QUARTA REVOLUÇÃO

 

O regime que sucedeu à dominação da aristocracia religiosa não foi logo a democracia. Vimos, pelo exemplo de Atenas e de Roma, que a revolução realizada não havia sido obra das classes humildes. Houve, na verdade, algumas cidades em que essas classes a princípio se insurgiram; mas elas não puderam estabelecer nada de duradouro, como o provam as longas desordens que abalaram Siracusa, Mileto e Samos. O novo regime não se estabeleceu de maneira mais ou menos sólida senão nos lugares onde se encontrou imediatamente uma classe superior, capaz de tomar nas mãos, por algum tempo, o poder e a autoridade moral que escapavam aos eupátridas e aos patrícios.

Qual podia ser essa nova aristocracia? A religião hereditária havia sido esquecida; não havia mais outro elemento de distinção social que a riqueza. Pediu-se, pois, à riqueza que fixasse as classes, porque ninguém podia admitir imediatamente que a igualdade pudesse ser absoluta.

Por isso Sólon não julgou poder fazer esquecer a antiga distinção, baseada na religião hereditária, senão estabelecendo nova distinção, baseada na riqueza. Dividiu os homens em quatro classes, e deu-lhes direitos desiguais: era necessário ser-se rico para se galgar às altas magistraturas; era necessário, pelo menos, pertencer a uma das duas classes médias, para se ter acesso ao senado e aos tribunais(1).

O mesmo aconteceu em Roma. Já vimos que Sérvio não diminuiu o poder do patriciado senão fundando uma aristocracia rival. Criou doze centúrias de cavaleiros, escolhidos entre os mais ricos plebeus; essa foi a origem da ordem eqüestre, que, daí por diante, passou a ser a ordem rica de Roma. Os plebeus que não possuíam a fortuna exigida para serem cavaleiros, foram repartidos em cinco classes, de acordo com suas possibilidades. Os proletários foram excluídos de todas as classes. Não tinham direitos políticos; se compareciam aos comícios centuriais, é pelo menos certo que não votavam(2). A constituição republicana conservou essas distinções estabelecidas por um rei, e a plebe não se mostrou a princípio muito desejosa de estabelecer igualdade entre seus membros.

O que se vê tão claramente em Atenas e em Roma encontra-se também em quase todas as outras cidades. Em Cumes, por exemplo, os direitos políticos não foram dados a princípio senão aos que, possuindo cavalos, formavam uma espécie de ordem eqüestre; mais tarde, aqueles que os seguiam em riqueza obtiveram os mesmos direitos, e essa última medida apenas elevou a mil o número dos cidadãos. Em Régio o governo ficou por muito tempo nas mãos dos mil cidadãos mais ricos da cidade. Em Túrio exigia-se grande fortuna para fazer parte do corpo político. Vemos claramente nas poesias de Teógnis que em Megara, depois da queda dos nobres, a riqueza passou a reinar. Em Tebas, para se gozar dos direitos de cidadão, não se precisava ser nem artesão, nem comerciante(3).

Assim os direitos políticos, que na época precedente eram inerentes ao nascimento, tornaram-se, durante algum tempo, inerentes à fortuna. Essa aristocracia de riqueza formou-se em todas as cidades, não por efeito de cálculo, mas pela própria natureza do espírito humano, que, saindo de um regime de profunda desigualdade, não alcançou imediatamente a igualdade completa.

Deve-se notar que essa aristocracia não baseava sua superioridade unicamente na riqueza. Em toda parte ela sempre procurou ser a classe militar, encarregando-se de defender as cidades ao mesmo tempo em que as governavam. Ela reservou para si as melhores armas e os maiores perigos das batalhas, querendo imitar nisso a classe nobre, que substituía. Em todas as cidades, os mais ricos constituíram a cavalaria(4); a classe abastada compôs o corpo dos hoplitas ou dos legionários(5). Os pobres ficaram isentos do serviço militar; quando muito empregavam-nos como vélites ou como peltastas, ou entre os remadores da frota(6). A organização do exército correspondia assim, com perfeita exatidão, à organização política da cidade. Os perigos estavam proporcionados aos privilégios, e a força material encontrava-se nas mesmas mãos em que se achava a riqueza(7).

Houve assim em quase todas as cidades cuja história nos é conhecida um período durante o qual a classe rica, ou pelo menos a classe abastada, tomou posse do governo. Esse regime político teve seus méritos, como qualquer outro regime pode ter os seus, quando é conforme aos costumes da época, e não é contrário às crenças em vigor. A nobreza sacerdotal da época anterior certamente havia prestado grandes serviços, porque, pela primeira vez, havia estabelecido leis e fundado governos regulares. Durante vários séculos, fizera viver com calma e dignidade as sociedades humanas. A aristocracia da riqueza teve outros méritos: imprimiu à sociedade e à inteligência novo impulso. Saída do trabalho, sob todas as suas formas, ela soube honrá-lo e estimulá-lo. Esse novo regime dava mais valor político ao homem mais trabalhador, mais ativo, mais hábil; era, portanto, favorável ao desenvolvimento da indústria e do comércio, como também o era ao progresso intelectual, porque a aquisição dessa riqueza, que se ganhava ou se perdia, de ordinário, de acordo com o mérito de cada um, fazia da instrução a primeira necessidade, e da inteligência o mais poderoso impulso dos negócios humanos. Não nos devemos portanto surpreender ao ver que sob esse regime a Grécia e Roma ampliaram os limites de sua cultura intelectual, levando avante sua civilização.

A classe rica não conservou o império em suas mãos tanto quanto a antiga nobreza hereditária. Seus títulos para o governo não eram do mesmo valor. Não possuía o caráter sagrado de que se revestia o antigo eupátrida; não reinava em virtude das crenças e pela vontade dos deuses. Nada tinha em si que pudesse dominar as consciências, forçando o homem a se submeter. O homem somente se inclina diante do que julga ser o direito, ou do que suas opiniões mostram muito superior a si próprio. Por muito tempo curvou-se diante da superioridade religiosa do eupátrida, que dizia as preces e possuía os deuses. Mas a riqueza não se lhe impunha. Diante da riqueza o sentimento mais comum não é respeito, mas inveja. A desigualdade política resultante da diferença de fortunas logo pareceu uma iniqüidade, e os homens trabalharam para fazê-la desaparecer.

Além do mais, a série de revoluções, uma vez começada, não devia mais parar. Os velhos princípios haviam sido derrubados, e não havia mais nem tradições, nem regras fixas. Havia um sentimento geral de instabilidade das coisas, que fazia com que nenhuma constituição fosse mais capaz de durar por muito tempo. A nova aristocracia, portanto, foi atacada, como o havia sido a antiga; os pobres quiseram ser cidadãos, e se esforçaram para penetrar por sua vez no corpo político.

É impossível relatar os pormenores dessa nova luta. A história das cidades, à medida que ela se afasta de suas origens, diversifica-se cada vez mais. Elas passam pela mesma série de revoluções, mas, essas revoluções se apresentam sob formas muito diferentes. Podemos pelo menos notar que nas cidades em que o principal elemento da riqueza era a posse do solo, a classe rica foi por mais tempo respeitada e soberana; e, pelo contrário, nas cidades como Atenas, onde havia poucas fortunas territoriais, e onde os homens se enriqueciam sobretudo pelo comércio e pela indústria, a instabilidade das fortunas despertou mais cedo a cobiça e a esperança das classes inferiores, e a aristocracia foi atacada mais cedo.

Os ricos de Roma resistiram por muito mais tempo que os da Grécia, por causas que mais tarde relataremos. Mas quando lemos a história grega, notamos com certa surpresa que a nova aristocracia defendeu-se mal. É verdade que ela não podia, como os eupátridas, opor a seus adversários o grande e poderoso argumento da tradição e da piedade; não podia chamar em seu socorro os antepassados e os deuses; não tinha pontos de apoio em suas crenças; não tinha fé na legitimidade de seus privilégios.

Pelo contrário, tinha a força das armas a seu favor, mas essa superioridade acabou também por lhe faltar. As constituições criadas pelos Estados durariam sem dúvida mais tempo se cada Estado pudesse permanecer no isolamento, ou se pelo menos pudesse viver sempre em paz. Mas a guerra perturba o mecanismo das constituições, e apressa as mudanças. Ora, entre as cidades da Grécia ou da Itália o estado de guerra era quase perpétuo. O serviço militar pesava com mais forca sobre a classe rica, pois era ela que ocupava os primeiros lugares nas batalhas. Muitas vezes, ao voltar de uma campanha, ela voltava para cidade dizimada e enfraquecida, e. conseqüentemente, impossibilitada de enfrentar o partido popular. Em Tarento, por exemplo, como a classe alta perdera a maior parte de seus membros em uma guerra contra os jápiges, a democracia logo se estabeleceu na cidade. O mesmo aconteceu em Argos, cerca de trinta anos antes: depois de uma guerra infeliz contra os espartanos, o número de verdadeiros cidadãos ficou tão reduzido, que se tornou necessário conceder direito de cidadania a uma multidão de periecos(8). É para não cair nesse extremo que Esparta era tão ciosa do sangue dos verdadeiros espartanos. Quanto a Roma, suas guerras contínuas explicam em grande parte suas revoluções. A guerra destruiu a princípio seu patriciado; das trezentas famílias dessa classe, existentes no tempo dos reis, restava apenas um terço depois da conquista de Sâmnio. A guerra ceifou em seguida a primitiva plebe, aquela plebe rica e corajosa, que preenchia cinco classes e que formava as legiões.

Um dos efeitos da guerra era que as cidades quase sempre viam-se obrigadas a dar armas às classes inferiores. É por isso que em Atenas, e em todas as cidades marítimas, a necessidade de uma marinha e os combates marítimos deram à classe pobre a importância que as constituições lhe negavam. Os tetas, elevados à categoria de remadores, de marinheiros e até de soldados, tendo nas mãos a salvação da pátria, sentiram-se necessários, e se tornaram mais ousados. Tal foi a origem da democracia ateniense. Esparta temia a guerra. Podemos ver em Tucídides sua lentidão e repugnância para entrar na batalha. Contra a vontade, deixara-se arrastar à guerra do Peloponeso; mas como se esforçou para se retirar! É que Esparta via-se obrigada a armar seus hypoméiones, seus neodâmodas, seus motácios, lacônios, e até mesmo seus ilotas; bem sabia ela que qualquer guerra, dando armas às classes oprimidas, colocava-a em perigo de revolução, sendo necessário, à volta do exército, ou submeter-se à lei dos ilotas, ou encontrar meios de massacrá-los sem causar escândalo(9). Os plebeus caluniavam o senado de Roma quando o censuravam por estar sempre a procurar novas guerras. O senado era muito hábil. Sabia que essas guerras lhe custavam concessões e derrotas no fórum, mas não podia evitá-las, porque Roma estava rodeada de inimigos.

É, portanto, fora de dúvida que a guerra, pouco a pouco, preencheu a distância que a aristocracia da riqueza colocara entre ela e as classes inferiores. Por isso bem depressa as constituições encontraram-se em desacordo com o estado social, sendo necessário modificá-las. Aliás, devemos reconhecer que todo privilégio estava necessariamente em desacordo com o princípio que então governava os homens. O interesse público não era um princípio capaz de autorizar e manter por muito tempo a desigualdade de classes, conduzindo inevitavelmente as sociedades à democracia.

E isso era tão verdade que, mais cedo ou mais tarde, tornou-se necessário dar a todos os homens livres direitos políticos. Desde que a plebe romana quis ter comícios próprios, viu-se obrigada a admitir os proletários, sem poder realizar a divisão de classes. A maior parte das cidades viram assim aparecerem assembléias verdadeiramente populares, e o sufrágio universal foi estabelecido.

Ora, o direito de sufrágio tinha então valor incomparavelmente maior que o que pode ter nos Estados modernos. Por ele o último dos cidadãos imiscuía-se em todos os negócios, nomeava magistrados, fazia leis, administrava a justiça, decidia a guerra ou a paz, e redigia tratados de aliança. Bastava, portanto, essa extensão do direito de sufrágio para que o governo se tornasse realmente democrático.

É necessário fazer ainda uma última observação. Ter-se-ia talvez evitado o aparecimento da democracia se se pudesse fundar o que Tucídides chama de oligarkía isónomos, isto é, o governo para alguns e a liberdade para todos. Mas os gregos não tinham idéias claras a respeito da liberdade; os direitos individuais entre eles nunca tiveram garantias. Sabemos, por Tucídides, que não é certamente suspeito de demasiado amor pelo governo democrático, que sob o domínio da oligarquia o povo se via exposto a muitos vexames, a condenações arbitrárias, a execuções violentas. Lemos nesse historiador “que era necessário o regime democrático para que os pobres tivessem um refúgio e os ricos um freio.” — Os gregos nunca souberam conciliar igualdade civil com desigualdade política. Para que o pobre não fosse prejudicado em seus interesses pessoais, julgaram necessário dar-lhe direito ao voto, poder para julgar nos tribunais e ser escolhido como magistrado. Aliás, se nos lembrarmos de que entre os gregos o Estado era uma potência absoluta, e que nenhum direito individual podia resistir-lhe, compreenderemos o imenso interesse que tinha para cada homem, mesmo para o mais humilde, ter direitos políticos, isto é, fazer parte do governo. Sendo tão onipotente o soberano coletivo, o homem não podia ser coisa alguma senão como membro desse soberano. Sua segurança e dignidade dependiam disso; desejavam possuir direitos políticos, não para ter a verdadeira liberdade, mas para ter, pelo menos, o que a pudesse substituir.

CAPÍTULO XI

REGRAS DO GOVERNO DEMOCRÁTICO. EXEMPLO DA DEMOCRACIA ATENIENSE

 

À medida que essas revoluções seguiam seu curso, afastando-se do antigo regime, o governo dos homens tornava-se mais difícil. Faziam-se necessárias regras mais minuciosas, mecanismos mais complicados, mais delicados. É o que podemos observar pelo exemplo do governo de Atenas.

Atenas contava com grande número de magistrados. Em primeiro lugar, conservou todos os da época precedente: o arconte, que dava nome ao ano, e cuidava da continuidade do culto doméstico; o rei, que oferecia os sacrifícios; o polemarco, que figurava como chefe do exército e julgava os estrangeiros; os seis tesmótetas, que, segundo parece, administravam a justiça, mas na realidade nada mais faziam senão presidir aos grandes júris; havia ainda os dez hierópoioi, que consultavam os oráculos, e faziam alguns sacrifícios; os parásitoi que acompanhavam o arconte e o rei nas cerimônias; os dez atlótetas, que ocupavam o cargo durante quatro anos, para preparar a festa de Atenas; enfim, os prítanos, que, em número de cinqüenta, ficavam permanentemente reunidos a fim de velar pela manutenção do fogo sagrado da cidade e pela continuação dos banquetes sagrados. Por essa lista podemos ver que Atenas continuava fiel às tradições dos velhos tempos; tantas revoluções não haviam ainda destruído aquele respeito supersticioso. Ninguém ousava romper com as velhas formas da religião nacional; a democracia continuava com o culto instituído pelos eupátridos.

Vinham em seguida os magistrados especialmente criados para a democracia, que não eram sacerdotes, e que velavam pelos interesses materiais da cidade. Em primeiro lugar havia os dez estrategos, que se ocupavam dos problemas da guerra e da política; depois, os dez astínomos, que cuidavam da polícia; os dez agorânomos, que vigiavam os mercados da cidade e do Pireu; os quinze sitofilace, que cuidavam da venda do trigo; os quinze metrônomos, que controlavam os pesos e as medidas; os dez guardas do tesouro, os dez recebedores de impostos, os onze encarregados da execução das sentenças. Acrescentemos ainda que a maior parte dessas magistraturas repetiam-se em cada uma das tribos e em cada demo. O menor grupo da população, na Ática, tinha seu arconte, seu sacerdote, seu secretário, seu recebedor, seu chefe militar. Quase não se podia dar um passo na cidade ou no campo sem encontrar um magistrado.

Essas funções eram anuais, resultando daí que não havia ninguém sem esperanças de um dia exercer alguma magistratura. Os magistrados sacerdotes eram escolhidos por sorte. Os magistrados que não exerciam senão funções de ordem pública eram eleitos pelo povo. Todavia, tomavam-se precauções contra os caprichos da sorte ou do sufrágio universal; cada novo eleito era submetido a um exame, ou diante do senado, ou diante dos magistrados que deixavam o cargo, ou diante do Areópago; não se exigiam provas de capacidade ou de talento, mas se procedia a um inquérito sobre a probidade do candidato e sua família; exigia-se também que todo magistrado tivesse um patrimônio em bens de raiz(1).

Poderá parecer que esses magistrados, eleitos pelos sufrágios de seus iguais, nomeados apenas por um ano, responsáveis, e até revogáveis, tivessem pouco prestígio e autoridade. Basta, contudo, ler Tucídides e Xenofonte para se ter certeza de que eles eram respeitados e obedecidos. Sempre houve no caráter dos antigos, mesmo dos atenienses, grande facilidade para se submeterem a uma disciplina. Isso era talvez conseqüência dos hábitos de obediência que o governo sacerdotal lhes havia dado. Estavam acostumados a respeitar o Estado, e todos os que, nos diversos cargos, o representavam. Não lhes vinha ao espírito a tentação de desprezar um magistrado, porque este havia sido escolhido por eles; o voto era considerado uma das fontes mais santas da autoridade(2).

Abaixo dos magistrados, que não tinham outra obrigação que a de fazer executar as leis, havia o senado. Este não passava de um corpo deliberativo, uma espécie de Conselho de Estado; não agia, não promulgava leis, não exercia nenhum domínio. Não se via nenhum inconveniente em que fosse renovado todos os anos, porque o senado não exigia de seus membros nem inteligência superior, nem grande experiência. Compunha-se dos cinco prítanes de cada tribo, que exerciam sucessivamente as funções sagradas, e deliberavam todo o ano acerca dos interesses religiosos ou políticos da cidade. Provavelmente, porque o senado não era em sua origem senão a reunião dos prítanes, isto é, dos padres anuais do lar, é que se conservou o costume de nomeá-los por sorte. É justo dizer que, tirada a sorte, cada nome era submetido a uma prova, sendo rejeitados os que não pareciam suficientemente honrados(3).

Acima do próprio senado estava a assembléia do povo. Este era o verdadeiro soberano. Mas, assim como nas monarquias bem constituídas o monarca se cerca de precauções contra seus próprios caprichos e erros, assim a democracia tinha regras invariáveis, às quais se submetia.

A assembléia era convocada pelos prítanes ou os estrategos. Reunia-se em recinto consagrado pela religião; desde a manhã os sacerdotes haviam dado a volta ao Pnix, imolando vítimas e invocando a proteção dos deuses. O povo sentava-se em bancos de pedra. Sobre uma espécie de estrado elevado tomavam lugar os prítanes ou proedros, que presidiam à assembléia. Quando todos estavam sentados, um sacerdote Kéryx levantava a voz: “Guardai silêncio — dizia — silêncio religioso (euphemía); rogai aos deuses e às deusas (e aqui nomeava as principais divindades do país) a fim de que tudo se passe do melhor modo possível nesta assembléia, para maior honra de Atenas e felicidade dos cidadãos.” — Depois o povo, ou alguém em seu nome, respondia: “Invocamos os deuses para que protejam a cidade. Que prevaleça a opinião do mais sábio! Seja maldito aquele que nos der maus conselhos, que pretender mudar os decretos ou as leis, ou que revelar nossos segredos ao inimigo(4)!”

Depois o arauto, de acordo com a ordem dos presidentes, declarava o assunto a ser discutido pela assembléia, assunto este que só era apresentado ao povo depois de discutido ou estudado pelo senado. O povo não tinha o que em linguagem moderna se chama de iniciativa; o senado apresentava-lhe um projeto de decreto; ele podia rejeitá-lo ou aprová-lo, mas não devia deliberar sobre nada mais.

Depois que o arauto procedia à leitura do projeto de decreto, a discussão estava aberta. O arauto dizia: “Quem quer tomar a palavra?” — Os oradores subiam à tribuna, por ordem de idade. Todos podiam falar, sem distinção de fortuna nem de profissão, mas com a condição de que provasse que gozava de direitos civis políticos, que não devia ao Estado, que era de bons costumes, que se casara legitimamente, que possuía bens imóveis na Ática, que cumprira todos seus deveres para com os pais, que havia feito todas as expedições militares para as quais fora convocado, e que não se desfizera do escudo em nenhum combate(5).

Uma vez tomadas essas precauções contra a eloqüência, o povo abandonava-se a ela inteiramente. Os atenienses, como diz Tucídides, não acreditavam que a palavra prejudicasse à ação. Pelo contrário, sentiam necessidade de serem esclarecidos. A política não era mais, como no regime precedente, um caso de tradição e de fé. Era necessário refletir e pesar as razões. A discussão era necessária, porque toda questão era mais ou menos obscura, e somente a palavra podia pôr a verdade à luz. O povo ateniense queria que cada problema lhe fosse apresentado sob todas as suas diversas faces, e que lhe mostrassem claramente os prós e os contras. Tinha em grande conta seus oradores; dizem até que pagavam-lhe pelos discursos que pronunciavam na tribuna(6). Fazia mais ainda: dava-lhes ouvidos, razão pela qual não devemos imaginar uma multidão barulhenta, turbulenta. A atitude do povo, pelo contrário, era muito outra; o poeta cômico representa-o escutando boquiaberto, imóvel em seus bancos de pedra(7). Os historiadores e os oradores nos descrevem freqüentemente essas reuniões populares; quase nunca vemos um orador interrompido; quer se trate de Péricles ou Cléon, Ésquino ou Demóstenes, o povo está atento; quer o lisonjeiem ou o repreendam, ele escuta, deixando que se exprimam as opiniões mais contraditórias com paciência digna de louvor. Às vezes ouvem-se murmúrios; jamais gritos ou algazarra. O orador, diga o que disser, pode sempre chegar ao fim do discurso.

Em Esparta a eloqüência é desconhecida, porque os princípios do governo não são os mesmos. A aristocracia ainda governa, e tem tradições fixas, que a dispensam de debater longamente o pró e o contra de cada questão Em Atenas o povo quer ser instruído, e não se decide senão depois de debates contraditórios; não age senão quando está convencido, ou se julga tal. Para dirigir o mecanismo do sufrágio universal faz-se necessária a palavra; a eloqüência é a mola do governo democrático. Por isso os oradores logo recebem o título de demagogos, isto é, de condutores da cidade, e são eles, com efeito, que a fazem agir, que determinam todas suas resoluções.

Previu-se o caso em que um orador apresentasse proposta contrária às leis existentes. Atenas possuía magistrados especiais, chamados guardas das leis. Em número de sete, vigiavam a assembléia, sentados em cadeiras elevadas, e pareciam representar a lei, que está acima do povo. Se percebiam que uma lei era atacada, interrompiam o orador no meio do discurso, e ordenavam a dissolução imediata da assembléia. O povo se dispersava, sem ter o direito de votar(8).

Havia uma lei, pouco aplicada, na verdade, que punia todo orador convencido de haver dado mau conselho ao povo. Havia outra que proibia o acesso à tribuna a todo orador que aconselhasse três vezes resoluções contrárias às leis existentes(9).

Atenas sabia muito bem que a democracia não se pode sustentar senão pelo respeito às leis. O cuidado de procurar modificações que pudessem ser úteis à legislação pertencia especialmente aos tesmótetas. Suas proposições eram apresentadas ao senado, que tinha o direito de rejeitá-las, mas não de convertê-las em leis. Em caso de aprovação o senado convocava a assembléia, e lhe comunicava o projeto dos tesmótetas. Mas o povo não devia resolver nada imediatamente; a discussão era adiada para outro dia, e enquanto isso escolhiam-se cinco oradores que tinham a missão especial de defender a antiga lei, e pôr em evidência os inconvenientes da inovação proposta. No dia fixado, o povo se reunia novamente, e escutava primeiro os oradores encarregados da defesa das leis antigas, e depois os que apoiavam as novas. Ouvidos os discursos, o povo ainda não se pronunciava. Contentava-se com nomear uma comissão, muito numerosa, mas composta exclusivamente de homens que tivessem exercido o cargo de juiz. Essa comissão retomava o exame do caso, ouvindo novamente os oradores, discutia e deliberava. Se rejeitasse a lei proposta, seu julgamento não tinha apelação. Se a aprovava, reunia ainda uma vez o povo, que para essa terceira vez, devia enfim votar, e então os sufrágios transformavam o projeto em lei(10).

Apesar de toda essa prudência, podia ainda acontecer que uma proposição injusta ou funesta fosse adotada. Mas a nova lei levava para sempre o nome do autor, que podia mais tarde ser perseguido judicialmente, e punido. O povo, como verdadeiro soberano, era considerado impecável; mas cada orador ficava sempre responsável pelo conselho dado(11).

Tais eram as regras às quais a democracia prestava obediência. Por isso não devemos concluir que jamais tenha cometido faltas. Seja qual for a forma de governo, monarquia, aristocracia, democracia, há dias em que a razão é que governa, e outros em que é a paixão. Nenhuma constituição jamais suprimiu as fraquezas e vícios da natureza humana. Quanto mais minuciosas as regras, mais elas acusam que o governo da sociedade é difícil e cheio de perigos. A democracia não podia durar senão à força de prudência.

Admiramo-nos por isso de todo o trabalho que essa democracia exigia dos homens. Era um governo muito trabalhoso. Vede como se passa a vida de um ateniense. Um dia é chamado à assembléia de seu demo, onde deve deliberar a respeito dos interesses religiosos ou financeiros dessa pequena associação. Outro dia é convocado para a assembléia da tribo: trata-se de regulamentar uma festa religiosa, ou de examinar as despesas, ou de promulgar decretos, ou de nomear chefes ou juízes. Três vezes por mês, regularmente, deve assistir à assembléia geral do povo, e não tem direito de faltar. Ora, a reunião é longa e ele não vai apenas para votar: chegando pela manhã) tem de ficar até uma hora avançada do dia para ouvir os oradores. Não pode votar se não chegou no princípio da reunião, e se não ouviu todos os discursos. Esse voto é para ele um negócio dos mais sérios; ora se trata de nomear chefes políticos ou militares, isto é, aqueles a quem seu interesse e sua vida vão ser confiados por um ano; ora é um imposto que deve ser criado, ou uma lei que deve ser modificada; ora deve votar sobre a guerra, sabendo que terá de dar seu sangue, ou o de seus filhos. Os interesses individuais estão unidos inseparavelmente ao interesse do Estado. O homem não pode ser nem indiferente, nem leviano. Se se engana, sabe que logo sofrerá as conseqüências, e que em cada voto arrisca a fortuna e a vida. No dia em que se decidiu a malograda expedição da Sicília, não havia cidadão que não soubesse que um dos seus participaria da mesma, e que devia aplicar toda sua atenção para avaliar todas as vantagens e perigos que semelhante guerra poderia trazer. Havia absoluta necessidade de reflexão e de esclarecimento, porque um desastre para a pátria representava para cada cidadão diminuição de sua dignidade pessoal, de sua segurança, de sua riqueza.

O dever do cidadão limitava-se ao voto. Quando chegava sua vez, ele se tornava magistrado do demo ou da tribo. Cada dois anos, em média(12), era heliasta, isto é, juiz, e passava todo esse ano nos tribunais, ocupado em ouvir os advogados e em aplicar as leis. Talvez não houvesse cidadão que não fosse chamado duas vezes na vida para fazer parte do Senado dos Quinhentos; então, durante um ano, sentava-se todos os dias, da manhã à noite, recebendo os depoimentos dos magistrados, fazendo-os prestar contas, respondendo aos embaixadores estrangeiros, redigindo as instruções dos embaixadores atenienses, examinando todos os casos que deviam ser submetidos ao povo, e preparando todos os decretos. Enfim, ele podia ser magistrado da cidade, arconte, estratego, astínomo, se a sorte ou o sufrágio o designasse para esses cargos. Vê-se que era trabalhoso ser cidadão de um Estado democrático; era o mesmo que ocupar quase toda uma existência, deixando muito pouco tempo para os trabalhos pessoais e a vida doméstica. Por isso Aristóteles dizia, com muita justiça, que o homem que tinha necessidade de trabalhar para viver não podia ser cidadão. Tais eram as exigências da democracia. O cidadão, como o funcionário público de nossos dias, pertencia inteiramente ao Estado. Dava-lhe seu sangue na guerra, seu tempo na paz. Não era livre de deixar de lado os negócios públicos para se dedicar com mais cuidado aos negócios particulares. Antes, devia negligenciar a estes para trabalhar em proveito da cidade. Os homens passavam a vida a se governar. A democracia não podia durar senão sob a condição do trabalho incessante de todos os cidadãos. Por pouco que o zelo se afrouxasse, ela devia ou perecer ou se corromper.

CAPÍTULO XII

RICOS E POBRES. DESAPARECE A DEMOCRACIA. OS TIRANOS POPULARES

 

Quando uma série de revoluções estabeleceu a igualdade entre os homens, e não havia mais ocasião para se combater por princípios e direitos, os homens passaram a guerrear pelo interesse. Esse novo período da história das cidades teve início para todas ao mesmo tempo. Em umas, ele seguiu de muito perto o estabelecimento da democracia; em outras, não apareceu senão depois de várias gerações que souberam governar-se com calma. Mas todas as cidades, cedo ou tarde, caíram em lutas deploráveis.

À medida que se afastavam do antigo regime, formara-se uma classe pobre. Antes, quando cada homem fazia parte de uma gens, e tinha um chefe, a miséria era quase desconhecida. O homem era alimentado pelo chefe; aquele a quem ele prestava obediência devia retribuir atendendo a todas as suas necessidades. Mas as revoluções, que haviam dissolvido o ghénos, também haviam mudado as condições da vida humana. No dia em que o homem se libertou dos laços da clientela, viu levantarem-se diante de si as necessidades e dificuldades da existência. A vida tornara-se mais independente, mas também mais laboriosa, e sujeita a acidentes. Cada um, de agora em diante, devia cuidar do próprio bem-estar; cada um tinha agora sua propriedade e seu trabalho. Uns enriqueciam por sua atividade e boa sorte, e outros continuavam pobres. A desigualdade da riqueza é inevitável em qualquer sociedade que não queira continuar no estado patriarcal ou na condição de tribo.

A democracia não suprimiu a miséria; pelo contrário, tornou-a mais sensível. A igualdade de direitos políticos tornou mais evidentes ainda a desigualdade de condições.

Como não havia nenhuma autoridade que se levantasse acima dos ricos e dos pobres ao mesmo tempo, e que fosse capaz de conservá-los em paz, seria de desejar que as condições econômicas e as condições de trabalho fossem tais que ambas as classes se vissem forçadas a viver em harmonia. Seria necessário, por exemplo, que tivessem necessidade uma da outra, que o rico não pudesse enriquecer a não ser dependendo do trabalho do pobre, e que o pobre encontrasse meios de viver ajudando o rico. Então a desigualdade de fortunas teria estimulado a inteligência do homem, e não teria provocado a corrupção e a guerra civil.

Mas muitas cidades careciam absolutamente de indústria e de comércio, e portanto não tinham recursos para aumentar a riqueza pública, a fim de dar algo ao pobre sem prejudicar a ninguém. Nas cidades onde havia comércio quase todos os benefícios eram para os ricos, como conseqüência do valor exagerado do dinheiro. Se havia indústria, os trabalhadores, em sua maior parte, eram escravos. Sabemos que o rico de Roma ou de Atenas tinha em sua casa oficinas para tecelões, cinzeladores, armeiros, todos escravos. Mesmo as profissões liberais eram quase que proibidas ao cidadão. O médico era quase sempre um escravo, que curava os doentes em proveito de seu senhor. Os empregados de banco, muitos arquitetos, os construtores de navios, os baixos funcionários do Estado, eram escravos. A escravidão era um flagelo que fazia sofrer à própria sociedade. O cidadão quase não tinha empregos, não encontrava trabalho. A falta de ocupação logo o tornava preguiçoso. Como não via trabalhar senão os escravos, desprezava o trabalho. Desse modo os hábitos econômicos, as disposições morais, tudo se aliava para impedir que o pobre saísse da miséria e vivesse honestamente. Riqueza e pobreza não estavam constituídas de maneira a poder viver em paz.

O pobre tinha igualdade de direitos. Mas certamente os sofrimentos diários inspiravam-lhe a idéia de que a igualdade de fortunas seria bem mais preferível. Ora, não passou muito tempo sem que ele percebesse que a igualdade que tinha podia servir-lhe para conquistar a que não tinha, e que, senhor dos sufrágios, podia vir a ser senhor da riqueza.

Começou por querer viver de seu direito de sufrágio. Fez-se pagar para assistir à assembléia, ou para julgar nos tribunais(1). Se a cidade não era bastante rica para arcar com tais despesas, o pobre tinha outros recursos. Vendia o próprio voto, e como as ocasiões de votar eram freqüentes, conseguia viver. Em Roma, esse comércio se fazia regularmente, e às claras; em Atenas, era mais escondido. Em Roma, onde o pobre não entrava nos tribunais, ele se vendia como testemunha; em Atenas, como juiz. Tudo isso não tirava o pobre da miséria, e lançava-o na degradação.

Não bastando esses expedientes, o pobre usou de meios mais enérgicos. Organizou uma guerra em regra contra a riqueza. Essa guerra, a princípio, foi disfarçada sob formas legais; os ricos foram encarregados de todas as despesas públicas; carregaram-nos de impostos, encarregaram-nos de construir as trirremes, e queriam ainda que oferecessem festas ao povo(2). Depois, multiplicaram-se as multas nos julgamentos, declarou-se a confiscação dos bens pelas menores faltas. Será possível dizer quantos homens foram condenados ao exílio pela única razão de que eram ricos? A fortuna do exilado ia para o tesouro público, de onde saía, sob a forma de trióbolo, para ser dividida entre os pobres. Mas tudo isso ainda não bastava, porque o número de pobres aumentava sempre mais. Os pobres, então, em muitas cidades, passaram a usar do direito de voto para decretar abolição de dívidas, ou confiscação em massa, e total subversão.

Nas épocas precedentes ainda se respeitava o direito de propriedade, porque tinha por fundamento uma crença religiosa. Enquanto cada patrimônio estava ligado a um culto, e era considerado inseparável dos deuses domésticos de uma família, ninguém pensou que se tivesse o direito de privar um homem de seu campo. Mas na época em que as revoluções nos conduziram, essas velhas crenças foram abandonadas, e a religião da propriedade desapareceu. A riqueza não é mais um terreno sagrado e inviolável. Não parece mais um dom dos deuses, mas um presente do acaso. Surge então o desejo de se apoderar dela, tirando-a de quem tem; e esse desejo, que outrora pareceria impiedade, começa a parecer legítimo. Não se vê mais o princípio superior que consagra o direito de propriedade; cada um só sente a própria necessidade, e por esta mede seu direito.

Já dissemos que a cidade, sobretudo entre os gregos, tinha um poder sem limites, que a liberdade era desconhecida, e que o direito individual não significava nada em relação com a vontade do Estado. Resultava daí que a maioria de votos podia decretar o confisco dos bens dos ricos, e que os gregos não viam nisso nem ilegalidade, nem injustiça. O que o Estado decidira era o direito. Essa ausência de liberdade individual foi causa de desordens para a Grécia. Roma, que respeitava um pouco mais o direito do homem, também sofreu menos.

Plutarco conta que em Megara, depois de uma insurreição, decretou-se que as dívidas seriam abolidas, e que os credores, além da perda do capital, seriam obrigados a reembolsar os juros já pagos(3).

“Em Megara, como em outras cidades — diz Aristóteles(4) — o partido popular, apoderando-se do poder, começou por declarar o confisco dos bens contra algumas famílias ricas. Mas, uma vez nesse caminho, não lhe foi mais possível parar. Era necessário fazer cada dia uma nova vítima, e no fim o número dos ricos atingidos pelo confisco e pelo exílio tornou-se tão grande, que formaram um exército.”

Em 412, “o povo de Samos condenou à morte duzentos de seus adversários, exilou outros quatrocentos, dividindo suas terras e casas(5)”.

Em Siracusa, o povo, apenas se viu livre do tirano Dionísio, logo na primeira assembléia decretou a divisão das terras(6).

Nesse período da história grega, todas as vezes que vemos uma guerra civil, os ricos são de um partido e os pobres do outro. Estes querem apoderar-se da riqueza, aqueles querem conservá-la ou retomá-la. — “Em toda guerra civil — diz um historiador grego — o problema é a mudança das fortunas(7).” — Todo demagogo fazia como aquele Molpágoras de Cios, que entregava à multidão os que possuíam dinheiro, massacrava uns, exilava outros, e distribuía seus bens entre os pobres. Em Messênia, desde que o partido popular tomou o poder, passou a exilar os ricos e a dividir suas terras(8).

As classes elevadas, entre os antigos, nunca tiveram bastante inteligência nem habilidade para dirigir os pobres ao trabalho, ajudando-os a sair honrosamente da miséria e da corrupção. Alguns homens de exceção tentaram fazê-lo, mas sem êxito. Resultava daí que a cidade flutuava sempre entre duas revoluções, uma que despojava os ricos, outra que os fazia voltar à posse de sua fortuna. Isso durou desde a guerra do Peloponeso até à conquista da Grécia pelos romanos.

Em cada cidade o rico e o pobre eram inimigos, que viviam um ao lado do outro, um ambicionando a riqueza, outro vendo a própria riqueza cobiçada. Entre eles não havia nenhuma relação, nenhum serviço, nenhum trabalho que os unisse. O pobre não podia adquirir a riqueza senão despojando o rico. O rico não podia defender seus bens senão com extrema habilidade, ou com a força. Ambos se olhavam com rancor. Em cada cidade havia dupla conspiração: os pobres conspiravam por cobiça, os ricos por medo. Aristóteles afirma que os ricos pronunciavam entre si este juramento: “Juro ser eterno inimigo do povo, e de lhe fazer todo o mal que puder(9).”

Não é possível dizer qual das duas partes cometeu mais atrocidades e crimes. O ódio apagava do coração qualquer sentimento de humanidade. — “Em Mileto houve uma guerra entre ricos e pobres. Estes, a princípio, venceram, e forçaram os ricos a fugir da cidade. Mas depois, lamentando não ter podido degolá-los, tomaram seus filhos, fecharam-nos em currais, e deixaram-nos pisar pelas patas dos bois. Os ricos tornaram a conquistar a cidade. Pegaram, por sua vez, os filhos dos pobres, besuntaram-nos com piche, e queimaram-nos vivos(10).”

Que acontecia então com a democracia? Ela não era precisamente responsável por esses excessos e crimes, mas foi a primeira a ser atingida. Não havia mais regras. Ora, a democracia não pode viver senão por meio de regras muito restritas, e melhor ainda observadas. Não se viam mais verdadeiros governos, mas facções no poder. O magistrado não exercia mais sua autoridade em proveito da paz e da lei, mas em proveito dos interesses e cobiças de um partido. O comando não tinha mais nem títulos legítimos, nem caráter sagrado; a obediência não tinha mais nada de voluntário; sempre constrangida, estava sempre à espera de uma desforra. A cidade, como diz Platão, não era mais que um ajuntamento de homens, dos quais parte era senhora, parte escrava. Dizia-se que o governo era aristocrático quando os ricos estavam no poder, democrático quando estavam os pobres. Na realidade, a verdadeira democracia deixara de existir.

A partir do dia em que as necessidades e interesses materiais a invadiram, ela se alterou, se corrompeu. A democracia, com os ricos no poder, tornara-se oligarquia violenta; a democracia dos pobres transformara-se em tirania. Do quinto até o segundo século antes de nossa era vemos que em todas as cidades da Grécia e da Itália, excetuando-se ainda Roma, as formas republicanas são postas em perigo, e que se tornam odiosas a um partido. Ora, podemos distinguir claramente quem são os que desejam destruí-las e quem são os que as querem conservar. Os ricos, mais esclarecidos e orgulhosos, continuam fiéis ao regime republicano, enquanto que os pobres, para quem os direitos políticos têm menos valor, escolhem de bom grado por chefe a um tirano. Quando essa classe pobre, depois de muitas guerras civis, reconhece que suas vitórias de nada servem, que o partido contrário sempre voltava ao poder, e que depois de longas alternativas de confiscos e restituições, a luta estava sempre por recomeçar, imaginou estabelecer um regime monárquico que fosse conforme a seus interesses, e que, reprimindo para sempre o partido contrário, lhe assegurasse para o futuro os benefícios da vitória. É por isso que criou os tiranos.

A partir desse momento os partidos mudaram de nome; não se era mais aristocrata ou democrata; combatia-se pela liberdade ou pela tirania. Sob essas duas palavras eram ainda a riqueza e a pobreza que estavam em luta. Liberdade significava governo onde os ricos tinham o comando e defendiam suas fortunas; tirania indicava exatamente o contrário.

É um fato geral, e quase sem exceção na história da Grécia e da Itália, que os tiranos saiam dos partidos populares, e tenham por inimigo o partido aristocrático. “O tirano — diz Aristóteles — não tem por missão senão proteger o povo contra os ricos; sempre começou por ser demagogo; faz parte da essência da tirania combater a aristocracia.” — “O meio de chegar à tirania — diz ele ainda — é conquistar a confiança do povo; ora, para isso é preciso que alguém se declare inimigo dos ricos. Assim fizeram Pisístrato em Atenas, Teágenes em Megara, Dionísio em Siracusa(11).”

O tirano sempre combate os ricos. Em Megara, Teágenes surpreende no campo os rebanhos dos ricos, e degola-os. Em Cumes, Aristodemo perdoa as dívidas, e tira as terras dos ricos para dá-las aos pobres. Assim fazem Nícocles em Sícion, Aristômaco em Argos. Todos esses tiranos nos são representados pelos escritores como extremamente cruéis; não é provável que todos o fossem por natureza, mas o eram pela necessidade premente em que se encontravam de dar terras ou dinheiro aos pobres. Eles não podiam manter-se no poder senão enquanto satisfaziam à ambição da plebe, e alimentavam suas paixões.

O tirano das cidades gregas é um personagem do qual ninguém hoje em dia pode dar-nos idéia. É um homem que vive no meio de seus súditos, sem intermediário e sem ministros, e que governa diretamente. Não está na posição elevada e independente de um soberano de grande Estado. Tem todas as pequenas paixões do homem particular; não é insensível aos lucros de uma confiscação; é acessível à cólera e ao desejo de vingança pessoal; tem medo; sabe que tem inimigos ao lado, e que a opinião pública aprova o assassinato, quando o agredido é um tirano. Podemos adivinhar o que pode ser o governo de tal homem. Salvo duas ou três exceções honrosas, os tiranos que se levantaram em duas ou três cidades gregas, no quarto ou terceiro século, não reinaram senão lisonjeando o que havia de pior na multidão, e derrubando violentamente tudo o que era superior pelo nascimento, riqueza ou merecimento. Seu poder era ilimitado; os gregos puderam avaliar quanto o governo republicano, quando não professa grande respeito pelos direitos individuais, se transforma facilmente em despotismo. Os antigos haviam dado tal poder ao Estado, que no dia em que um tirano tomava nas mãos essa onipotência, os homens não tinham mais nenhuma garantia contra ele, pois, ele era legalmente o senhor de suas vidas e bens.

CAPÍTULO XIII

REVOLUÇÕES DE ESPARTA

 

Não devemos acreditar que Esparta tenha vivido dez séculos sem ver revoluções. Tucídides nos diz, pelo contrário, “que ela sofreu com as dissensões mais que nenhuma outra cidade grega(1)”. A história dessas lutas internas, na verdade, é-nos pouco conhecida, mas isso aconteceu porque o governo de Esparta tinha por hábito rodear-se do mais profundo mistério(2). A maior parte das lutas que a agitaram ficaram encobertas e foram esquecidas; pelo menos, sabemos o suficiente para poder afirmar que, se a história de Esparta difere sensivelmente das outras cidades, nem por isso deixou de passar pela mesma série de revoluções.

Os dórios já se haviam organizado como povo quando invadiram o Peloponeso. Qual a causa que os obrigou a sair do país? Seria uma invasão de um povo estranho, uma revolução interna? Não o sabemos. O que parece certo é que nesse momento da existência do povo dório o antigo regime da gens já havia desaparecido. Não se distingue mais em seu meio aquela antiga organização da família; não se encontram mais vestígios do regime patriarcal, de nobreza religiosa nem de clientela hereditária; não se vêem senão guerreiros iguais debaixo de um só rei. É, portanto, provável que uma primeira revolução social já houvesse acontecido, ou na Dórida, ou no caminho que conduzia esse povo até Esparta. Se se compara a sociedade dória do século nono com a sociedade jônia da mesma época, percebe-se que a primeira estava muito mais avançada que a outra na série de transformações. A raça jônia entrou mais tarde no caminho das revoluções; é verdade que ela o percorreu mais depressa.

Se os dórios, por ocasião de sua chegada a Esparta, não tinham mais o regime da gens, não haviam podido libertar-se do mesmo de modo tão completo, a ponto de não guardarem dele algumas instituições, como por exemplo, a indivisão e a inalienabilidade do patrimônio. Essas instituições não tardaram em restabelecer na sociedade espartana a aristocracia.

Todas as tradições mostram-nos que na época em que apareceu Licurgo havia duas classes entre os espartanos, e que ambas estavam em luta(3). A realeza tinha uma tendência natural para tomar o partido da classe inferior. Licurgo, que não era rei, “se pôs a frente dos melhores(4)”, forçou o rei a prestar um juramento que diminuía seu poder, instituiu um senado oligárquico, e fez, enfim, com que, de acordo com expressão de Aristóteles, a tirania se transformasse em aristocracia(5).

As declamações de alguns antigos e de muitos modernos sobre a sabedoria das instituições de Esparta, sobre a felicidade inalterável de que gozava, sobre a igualdade, sobre a vida em comum, não devem iludir-nos. De todas as cidades que há sobre a terra, Esparta é talvez aquela em que a aristocracia reinou mais duramente, e em que menos se conheceu a igualdade. Não é necessário falar da divisão igual das terras; se essa igualdade algum dia foi estabelecida, pelo menos é certo que não se manteve, porque nos tempos de Aristóteles “alguns possuíam domínios imensos, enquanto outros não tinham nada, ou quase nada; em toda a Lacônia contavam-se apenas cerca de mil proprietários(6).”

Deixamos de lado ilotas e lacônios, e examinemos apenas a sociedade espartana: encontramos aí uma jerarquia de classes sobrepostas uma à outra. Em primeiro lugar estão os neodâmodas, que parecem ser antigos escravos libertos(7); depois os epeumactas, admitidos para preencher os vazios causados pela guerra entre os espartanos(8); em categoria pouco superior figuravam os motácios, que, muito semelhantes a clientes domésticos, viviam com um senhor, formavam sua corte, partilhavam de suas ocupações, de seus trabalhos, de suas festas, e combatiam a seu lado(9). Vinha em seguida a classe dos bastardos, nóthoi, que descendiam de espartanos legítimos, mas que a religião e a lei afastavam deles(10); depois ainda uma classe chamada dos inferiores, hypoméiones(11), que eram talvez irmãos mais novos deserdados pelas famílias. Enfim, acima de tudo isso, levantava-se a aristocracia, composta de homens que se chamavam Iguais, hómoioi. Esses homens eram com efeito iguais entre si, mas muito superiores a todos os outros. O número dos membros dessa classe é-nos desconhecido; sabemos apenas que era muito restrito. Um dia, um de seus inimigos contou-os na praça pública, e não encontrou mais que sessenta no meio de uma multidão de quatro mil indivíduos(12). Somente esses iguais podiam tomar parte no governo da cidade. — “Estar fora dessa classe — diz Xenofonte — é ficar fora do corpo político(13).” Demóstenes diz que o homem que entra na classe dos iguais somente por isso se torna “um dos senhores do governo(14).” — “Chamam-nos de Iguais, diz ele ainda, porque entre os membros de uma oligarquia deve haver igualdade.”

Esses Iguais eram os únicos que tinham a plenitude dos direitos civis; somente eles formavam o que em Esparta se chamava de povo, isto é, o corpo político. Dessa classe saíam, por eleição, os vinte e oito senadores. Entrar para o senado chamava-se na língua oficial de Esparta obter o prêmio da virtude(15). Não sabemos quanto mérito, nascimento ou riqueza eram necessários para compor essa virtude. Vemos logo que não bastava o nascimento, porque havia pelo menos um arremedo de eleição(16); podemos ainda acreditar que a riqueza devia ter muita importância em uma cidade “que tinha na mais alta consideração o amor do dinheiro, e na qual tudo era permitido aos ricos(17).”

Seja como for, esses senadores, que eram inamovíveis, gozavam de grande autoridade, pois Demóstenes afirma que no dia em que um homem entra para o senado, torna-se déspota para a multidão(18). Esse senado, de que os reis eram simples membros, governava o Estado de acordo com o processo habitual dos corpos aristocráticos; magistrados anuais, cuja eleição lhe pertencia inteiramente, exerciam em seu nome autoridade absoluta. Esparta possuía assim um regime republicano, com todas as aparências de democracia: reis, sacerdotes, magistrados anuais, senado deliberativo, assembléias populares. Mas esse povo não era mais que a reunião de duzentos ou trezentos homens.

Assim foi desde Licurgo, e, sobretudo, depois do estabelecimento dos éforos, o governo de Esparta. Uma aristocracia composta de alguns ricos, fazia pesar um jugo de ferro sobre os ilotas, sobre os lacônios, e até sobre a maior parte dos espartanos. Por sua energia, por sua habilidade, por seu pouco escrúpulo e pouco apego às leis morais, ela soube conservar o poder durante cinco séculos, mas suscitou ódios cruéis, e teve que reprimir grande número de insurreições.

Não é necessário que falemos das conspirações dos ilotas. Não conhecemos todas as conspirações dos espartanos; o governo era muito hábil para não deixar de apagar até seus vestígios e lembranças. Houve contudo alguns que a história não pôde esquecer. Sabemos que os colonos que fundaram Tarento eram espartanos que haviam desejado derrubar o governo. Uma indiscrição do poeta Tirteu deu a conhecer à Grécia que durante as guerras da Messênia parte da população havia conspirado para conseguir a divisão das terras(19).

O que salvava Esparta era a divisão extrema que sabia fazer entre as classes inferiores. Os ilotas não se davam com os lacônios; os motácios desprezavam os neodâmodas. Era impossível qualquer união, e a aristocracia, graças à sua educação militar e à estreita união de seus membros, era sempre forte para fazer frente a cada uma dessas classes inimigas.

Os reis tentaram o que nenhuma classe podia realizar. Todos aqueles que aspiraram sair do estado de inferioridade em que a aristocracia os mantinha procuraram apoio entre pessoas de condição inferior. Durante a guerra médica, Pausânias formou o projeto de levantar ao mesmo tempo a realeza e as classes baixas, derrubando a oligarquia. Os espartanos condenaram-no à morte acusando-o de manter relações com o rei da Pérsia; talvez seu verdadeiro crime fosse o de ter pensado em libertar os ilotas(20). Podemos contar na história como são numerosos os reis exilados pelos éforos; a causa dessas condenações é fácil adivinhar, e Aristóteles no-la diz: “Os reis de Esparta, para fazer frente aos éforos e ao senado, tornavam-se demagogos(21).”

Em 397 uma conspiração quase derrubou esse governo oligárquico. Certo Cinadon, que não pertencia à classe dos Iguais, era o chefe dos conjurados. Quando queria conseguir adeptos, levava-os para a praça pública, e fazia com que contassem os cidadãos; incluindo os reis, os éforos, os senadores, chegava-se a um total de mais ou menos setenta. Cinadon dizia-lhes então: “Esses são os nossos inimigos; todos os outros, pelo contrário, que enchem a praça, em número de mais de quatro mil, são nossos aliados.” — E acrescentava: “Quando encontrardes em campanha algum espartano, vede nele um senhor e um inimigo; todos os outros são amigos.” — Ilotas, lacônios, neodâmodas, hypoméiones, todos desta vez estavam unidos, e eram cúmplices de Cinadon, “porque todos — diz o historiador — tinham tal ódio pelos senhores, que não havia um só dentre eles que não confessasse que lhes seria agradável devorá-los a todos crus.” — Mas o governo de Esparta estava admiravelmente servido: para ele não havia segredo. Os éforos pretenderam que as entranhas das vítimas lhes haviam revelado a conjuração. Não deram tempo aos conjurados de agir: prenderam-nos e mataram-nos em segredo. A oligarquia estava mais uma vez salva(22).

Favorecida por esse governo, a desigualdade foi crescendo cada vez mais. A guerra do Peloponeso e as expedições à Ásia faziam afluir dinheiro para Esparta; mas este se espalhava de maneira muito desigual, e não enriquecera senão os que já estavam ricos. Ao mesmo tempo, desaparecia a pequena propriedade. O número de proprietários, que eram ainda mil nos tempos de Aristóteles, estava reduzido a cem um século depois(23). A terra estava dividida entre poucos, em um tempo em que não havia nem indústria, nem comércio para dar trabalho ao pobre, e em que os ricos faziam cultivar seus imensos domínios por escravos. De uma parte estavam alguns homens que tinham tudo, de outra um grande número que não tinha absolutamente nada. Plutarco nos apresenta, na vida de Ágis e na de Cleômenes, um quadro da sociedade espartana; vê-se aí amor desenfreado à riqueza, à qual tudo se sujeitava; em alguns, o luxo, a indolência, o desejo de aumentar ilimitadamente a própria riqueza; além destes, apenas uma multidão miserável, indigente, sem direitos políticos, sem nenhum valor na cidade, invejosa, odienta, e que semelhante estado social condenava ao desejo de revoluções.

Quando a oligarquia levou as coisas até os últimos limites do possível, tornou-se necessária uma revolução, pela qual a democracia, contida e reprimida por tanto tempo, rompesse enfim os diques. Supõe-se também que depois de tão longa compressão a democracia não devia limitar-se a reformas políticas, mas devia conseguir logo de início as reformas sociais que se faziam necessárias.

O pequeno número de espartanos de nascimento — não eram mais de setecentos, contando-se todas as classes — e o enfraquecimento dos caracteres, seguido de uma longa opressão, foram a causa de que o sinal das mudanças não partisse das classes inferiores. Partiu de um rei. Ágis tentou levar a cabo essa inevitável revolução por meios legais, o que aumentou para ele as dificuldades da empresa. Apresentou ao senado, isto é, aos próprios ricos, dois projetos de lei visando a abolição das dívidas e a divisão das terras. Não nos devemos surpreender ao ver que o senado não rejeitou essas proposições; Ágis, talvez, deve ter tomado medidas para que fossem aceitas. Mas as leis, uma vez votadas, deviam ser postas em execução; ora, reformas dessa natureza são sempre de tal modo difíceis que os mais ousados fracassam. Ágis, amarrado pela resistência dos éforos, viu-se constrangido a sair da legalidade: depôs esses magistrados, e nomeou outros por sua própria autoridade; armou depois seus correligionários, e estabeleceu, durante um ano, um regime de terror. Durante esse tempo pôde pôr em prática as leis sobre as dívidas, e fazer queimar todos os títulos de crédito na praça pública. Mas não teve tempo para dividir as terras. Não se sabe se Ágis hesitou a esse respeito, ou se sua própria obra o deixou assustado, ou se a oligarquia espalhou contra ele hábeis acusações, porque o povo se afastou dele, e deixou-o cair. Os éforos degolaram-no, e o governo aristocrático foi restabelecido.

Cleômenes retomou os projetos de Ágis, mas com mais tato e menos escrúpulos. Começou por massacrar os éforos, suprimiu ousadamente essa magistratura, odiosa aos reis e ao partido popular, e proscreveu os ricos. Depois desse golpe de Estado, fez a revolução, decretou a divisão das terras, e deu direito de cidade a quatro mil lacônios. É digno de nota que nem Ágis, nem Cleômenes confessavam que estavam fazendo uma revolução, mas ambos, valendo-se do nome do velho legislador Licurgo, pretendiam conduzir Esparta a seus antigos costumes. É fora de dúvida que a constituição de Cleômenes distanciava-se muito de Licurgo. O rei era, na verdade, senhor absoluto; nenhuma autoridade lhe fazia contrapeso; reinava à moda dos tiranos que havia na maior parte das cidades gregas, e o povo de Esparta, satisfeito pela conquista das terras, parecia importar-se muito pouco com liberdades políticas. Essa situação não durou muito. Cleômenes quis estender o regime democrático a todo o Peloponeso, onde Arato, precisamente nessa época, trabalhava para estabelecer um regime de liberdade e de sábia aristocracia. Em todas as cidades o partido popular agitou-se em nome de Cleômenes, esperando obter, como em Esparta, abolição das dívidas e divisão das terras. Foi essa insurreição imprevista das classes inferiores que obrigou Arato a mudar todos os planos; julgou poder contar com a Macedônia, cujo rei, Antígono Doson, adotava então por política combater em toda parte os tiranos e o partido popular, e o chamou ao Peloponeso. Antígono e os aqueus venceram Cleômenes em Selásia. A democracia espartana foi ainda uma vez vencida, e os macedônios restabeleceram o antigo governo (222 anos antes de Jesus Cristo).

Mas a oligarquia já não podia manter-se. Houve muitas perturbações; em um ano, três éforos, favoráveis ao partido popular, massacraram dois colegas; no ano seguinte, os cinco éforos pertenciam ao partido oligárquico; o povo tomou armas, e degolou-os a todos. A oligarquia não queria reis; o povo queria; nomeou-se um, escolhido fora da família real, o que nunca se viu em Esparta. Esse rei, chamado Licurgo, foi por duas vezes derrubado do trono: a primeira vez pelo povo, porque recusava dividir as terras; a segunda vez pela aristocracia, porque desconfiavam de que as queria dividir. Não se sabe como acabou; mas depois dele Esparta tem um tirano, Macânidas, prova certa de que o partido popular retomara o poder.

Filópemen, que, à frente da estirpe dos aqueus, por toda parte declarava guerra aos tiranos democratas, venceu e matou a Macânidas. A democracia espartana adotou logo outro tirano, Nábis. Este deu direitos de cidadania a todos os homens livres, elevando os lacônios à mesma categoria dos espartanos; chegou até a libertar os ilotas. Seguindo o costume dos tiranos das cidades gregas, fez-se chefe dos pobres contra os ricos; “proscreveu ou condenou à morte aqueles que por sua riqueza se elevavam acima dos demais(24).”

Essa nova Esparta democrática não deixou de ter grandeza; Nábis deu à Lacônia uma ordem que não se via há muito tempo; submeteu a Esparta a Messênia, parte da Arcádia e a Élida. Apoderou-se de Argos. Formou a marinha, o que estava muito longe das antigas tradições da aristocracia espartana; com sua frota, dominou sobre todas as ilhas que rodeiam o Peloponeso, estendendo sua influência até Creta. Por toda parte reergueu a democracia; senhor de Argos, seu primeiro cuidado foi confiscar os bens dos ricos, abolir as dívidas e dividir as terras. Podemos ver em Políbio quanto a liga dos aqueus odiava esse tirano democrata, instigando Flamínio a lhe fazer guerra em nome de Roma. Dois mil lacônios, sem contar os mercenários, tomaram armas para defender Nábis. Depois de uma derrota, quis fazer a paz; o povo recusou-se, tanto a causa do tirano era a da democracia! Flamínio, vitorioso, tirou-lhe parte de suas forças, mas deixou-o reinar na Lacônia, ou porque a impossibilidade de restabelecer o antigo governo fosse por demais evidente, ou porque Roma estava interessada em que alguns tiranos fizessem contrapeso à liga dos aqueus. Nábis foi assassinado mais tarde por um etólio, mas sua morte não restabeleceu a oligarquia; as mudanças que levara a cabo no estado social mantiveram-se depois de sua morte, e a própria Roma se recusou a restabelecer a antiga situação de Esparta.


LIVRO QUINTO
DESAPARECE O REGIME MUNICIPAL

 


CAPÍTULO I

NOVAS CRENÇAS. A FILOSOFIA MUDA AS NORMAS DA POLÍTICA

 

Vimos em tudo o que precedeu como se constituiu o regime municipal entre os antigos. A princípio uma religião muito antiga fundara a família, depois a cidade; estabelecera em primeiro lugar o direito doméstico e o governo da gens; depois as leis civis e o governo municipal. O Estado estava estreitamente ligado à religião; dela nascera, e com ela se confundia. É por isso que, na cidade primitiva, todas as instituições políticas haviam sido instituições religiosas; as festas eram cerimônias do culto; as leis, fórmulas sagradas; os reis e magistrados, sacerdotes. É por isso ainda que a liberdade individual era desconhecida, e o homem era incapaz de libertar a própria consciência da onipotência da cidade. É por isso, enfim, que o Estado mantivera-se dentro dos limites da cidade, e nunca puderam ultrapassar a linha traçada em sua origem pelos deuses nacionais. Cada cidade tinha, não somente independência política, mas também um culto e um código. A religião, o direito, o governo, tudo era municipal. A cidade era a única força viva; nada lhe era superior ou inferior; nem a unidade nacional, nem a liberdade individual.

Resta-nos dizer de que modo esse regime desapareceu, isto é, como, mudando-se o princípio da associação humana, o governo, a religião e o direito se despojaram desse caráter municipal que tiveram na antiguidade.

A ruína do regime político que a Grécia e a Itália haviam criado pode ser atribuída a duas causas principais. Uma pertence à ordem dos fatos morais e intelectuais, outra à ordem dos fatos materiais; a primeira é transformação das crenças, a segunda é a conquista romana. Esses dois grandes fatos são contemporâneos; desenvolveram-se e concluíram-se juntos, durante a série de cinco séculos que precede a era cristã.

A religião primitiva, cujos símbolos eram a pedra imóvel do lar e o túmulo dos antepassados, religião que havia constituído a família antiga, organizando depois a cidade, alterou-se com o tempo, e envelheceu. O espírito humano cresceu em forças, e adotou novas crenças. Começou-se a ter idéia da natureza imaterial; a noção da alma humana tornou-se mais precisa, e quase ao mesmo tempo surgiu nos espíritos a idéia de uma inteligência divina.

Que pensar então das divindades das primeiras idades; dos mortos, que viviam nos túmulos; dos deuses lares, que haviam sido homens; dos antepassados sagrados, que deviam continuar a alimentar como se ainda vivessem? Semelhante fé tornou-se impossível. Tais crenças não estavam mais no nível do espírito humano. É bem verdade que esses preconceitos, por mais grosseiros que fossem, não foram facilmente arrancados do espírito do vulgo; reinaram por muito tempo ainda; mas desde o quinto século antes de nossa era os homens que refletiam se foram libertando desses erros. Compreendiam a morte de outra maneira; alguns acreditavam no aniquilamento, outros em uma segunda existência espiritual em um mundo de almas; em todo caso não admitiam mais que o morto vivesse no sepulcro, e se alimentasse com as dádivas que lhes ofereciam. Começou-se também a se ter idéia muito elevada da divindade, para que se continuasse a acreditar que os mortos pudessem ser deuses. Pelo contrário, imaginavam a alma humana indo procurar nos Campos Elísios sua recompensa, ou a pena de suas faltas; e, por notável progresso, não se divinizavam mais entre os homens senão aqueles que o reconhecimento ou a lisonja queria colocar acima da humanidade.

A idéia da divindade transformou-se pouco a pouco, pelo efeito natural do poder maior do espírito. Essa idéia, que o homem a princípio aplicara à força invisível que sentia em si próprio, ele a aplicou aos poderes incomparavelmente maiores que via na natureza, à espera de que se elevasse até a concepção de outro ser, que estivesse fora e acima da natureza. Então os deuses lares e os heróis perderam a adoração dos seres racionais.

Quanto ao lar, que não parece ter sentido senão enquanto se ligava ao culto dos mortos, perdeu também seu prestígio. Continuou-se a ter na casa um lar doméstico, ao qual saudavam, adoravam, ofereciam libações; mas não passava de um culto de hábito, a que nenhuma fé dava vida.

O lar das cidades, ou o pritaneu, foi arrastado insensivelmente para o descrédito em que caíra o lar doméstico. Não se sabia mais o que significava, esquecidos de que o fogo sempre aceso do pritaneu representava a vida invisível dos antepassados, dos fundadores, dos heróis nacionais. Continuava-se a alimentar esse fogo, a cantar velhos hinos, cerimônias vãs, das quais não ousavam desembaraçar-se, mas cujo sentido ninguém mais compreendia.

Até as divindades da natureza, que se haviam associado aos lares, mudaram de caráter. Depois de haver começado por serem divindades domésticas, depois de se tornarem divindades da cidade, transformaram-se ainda uma vez. Os homens acabaram por perceber que os seres diferentes que chamavam de Júpiter, podiam bem ser um mesmo e único ser; e assim aconteceu com outros deuses. O espírito desembaraçou-se de uma multidão de divindades, e sentiu necessidade de reduzir-lhes o número. Compreendeu-se então que os deuses não pertenciam mais a uma família ou cidade, mas que todos pertenciam ao gênero humano, e velavam pelo universo. Os poetas iam de cidade em cidade ensinando aos homens, em lugar dos velhos hinos das cidades, novos cantos nos quais não se falava nem de deuses lares, nem de divindades políadas, e onde se liam as lendas dos grandes deuses da terra e do céu; e o povo grego esquecia os velhos hinos domésticos ou nacionais por essa poesia nova, que não era filha da religião, mas da arte e da livre imaginação. Ao mesmo tempo, alguns grandes santuários, como os de Delfos e de Delos, atraíam os homens, fazendo que com estes se esquecessem dos cultos locais. Os mistérios e a doutrina que continham habituavam-nos a desprezar a religião vazia e insignificante da cidade.

Assim, lenta e obscuramente, foi sendo feita uma revolução intelectual. Os próprios sacerdotes não lhe opunham resistência, porque enquanto os sacrifícios continuavam a ser oferecidos nos dias determinados, parecia-lhes que a antiga religião estava salva; as idéias podiam mudar, a fé podia morrer, contanto que os ritos permanecessem intactos. Aconteceu então que, sem que as práticas fossem modificadas, as crenças se transformaram, e a religião doméstica e municipal perdeu todo o domínio sobre as almas.

Depois apareceu a filosofia, que derrubou todas as regras da velha política. Era impossível tocar nas opiniões dos homens sem tocar também nos princípios fundamentais do governo. Pitágoras, tendo uma concepção vaga do Ser supremo, desprezou os cultos locais, e isso foi o bastante para que rejeitasse os velhos moldes de governo, e tentasse fundar uma nova sociedade.

Anaxágoras concebeu o Deus-Inteligência, que reina sobre todos os homens e sobre todas as criaturas. Afastando-se das antigas crenças, afastou-se também da antiga política. Como não acreditava nos deuses do pritaneu, deixava de cumprir todos os deveres de um cidadão; fugia das assembléias, e não queria ser magistrado. Sua doutrina representava um perigo para a cidade; os atenienses condenaram-no à morte.

Vieram depois os sofistas, e tiveram mais influência que esses dois grandes espíritos. Eram homens ardentes no combate dos velhos erros. Na luta que travaram contra tudo o que se ligava ao passado, não pouparam nem as instituições da cidade, nem os preconceitos da religião. Examinaram e discutiram ousadamente as leis que ainda regiam o Estado e a família. Iam de cidade em cidade, pregando novos princípios, ensinando não precisamente a indiferença entre o justo e o injusto, mas uma nova justiça, menos acanhada e menos exclusiva que a antiga, mais humana, mais racional, e livre das fórmulas das idades anteriores. Foi uma empresa atrevida, que levantou uma tempestade de ódios e de rancores. Acusaram-nos de não ter nem religião, nem moral, nem patriotismo. A verdade é que sobre todas essas coisas não tinham doutrina bem definida, e que julgavam fazer muito combatendo os preconceitos. Eles removiam, como diz Platão, o que até então era irremovível. Colocavam a regra do sentimento religioso e da política na consciência humana, e não nos costumes dos antepassados ou na tradição imutável. Ensinavam aos gregos que para governar um Estado não bastava mais invocar velhos costumes e leis sagradas, mas era necessário persuadir os homens, e agir sobre vontades livres. Substituíam o conhecimento dos costumes antigos pela arte de raciocinar e de falar, a dialética e a retórica. Seus adversários ligavam-se à tradição, enquanto eles se ligavam à eloqüência e ao espírito.

Uma vez despertada assim a reflexão, o homem não quis mais crer sem conhecer suas crenças, nem quis deixar-se governar sem discutir suas instituições. Duvidou da justiça de suas velhas leis sociais, e surgiram outros princípios. Platão põe na boca de um sofista estas belas palavras: “Vós todos que aqui estais, eu vos considero parentes uns dos outros. A natureza, apesar da lei, vos fez concidadãos. Mas a lei, esse tirano do homem, violenta a natureza em muitas ocasiões.” — Opor assim a natureza à lei e ao costume, era atacar na própria base a política antiga. Em vão os atenienses exilaram Pitágoras e queimaram seus escritos; o golpe estava dado; o resultado do ensino dos sofistas foi imenso. A autoridade das instituições desaparecia com a autoridade dos deuses nacionais, e o hábito do livre exame estabelecia-se nas casas e na praça pública.

Sócrates, reprovando o abuso que os sofistas faziam do direito de duvidar, pertencia contudo à sua escola. Como eles, rejeitava o império da tradição, e acreditava que as regras de conduta estavam gravadas na consciência humana. Não se diferenciava deles senão em que estudava essa consciência religiosamente, e com desejo firme de nela encontrar a obrigação de ser justo e de fazer o bem. Colocava a verdade acima do costume, a justiça acima das leis. Distinguia a moral da religião; antes dele não se concebia o dever senão como um decreto dos deuses antigos; Sócrates demonstrou que o princípio do dever está na consciência do homem. Em tudo isso, quer quisesse ou não, ele fazia guerra ao culto das cidades. Em vão tomava o cuidado de assistir a todas as festas, e de tomar parte em todos os sacrifícios; suas crenças e palavras desmentiam-lhe a conduta. Sócrates fundava uma religião nova, que era contrária à religião da cidade. Acusaram-no, com verdade, “de não adorar os deuses que o Estado adorava.” Condenaram-no à morte por haver atacado os costumes e as crenças dos antepassados, ou, como se dizia, por haver corrompido a geração presente. A impopularidade de Sócrates e o ódio violento de seus concidadãos se explicam, se pensarmos nos hábitos religiosos dessa sociedade ateniense, onde havia tantos sacerdotes, e onde eles eram tão poderosos. Mas a revolução que os sofistas haviam iniciado, e que Sócrates continuara com mais moderação, não foi interrompida pela morte de um ancião. A sociedade grega libertou-se dia a dia cada vez mais do domínio das velhas crenças e das velhas instituições.

Depois dele, os filósofos discutiram com toda a liberdade os princípios e regras da associação humana. Platão, Críton, Antístenes, Espeusipo, Aristóteles, Teofrasto, e muitos outros, escreveram tratados sobre a política. Buscou-se, examinou-se; os grandes problemas da organização do Estado, da autoridade e da obediência, das obrigações e do direito, apresentaram-se a todos os espíritos.

Sem dúvida, o pensamento não se pôde libertar facilmente dos laços estabelecidos pelo costume. Platão sofreu ainda, em certos pontos, o império das velhas idéias. O Estado que ele imagina é ainda a cidade antiga, acanhada, e que não deve conter mais de 5.000 membros. O governo é ainda regulado de acordo com os antigos princípios, a liberdade é desconhecida; o fim proposto pelo legislador é menos o aperfeiçoamento do homem do que a segurança e grandeza da sociedade. A própria família é quase sufocada, para que não faça concorrência à cidade. Somente o Estado é proprietário; somente ele é livre; somente ele tem vontade; somente ele tem religião e crenças, e todos os que não pensarem como ele devem morrer. Todavia, no meio de tudo isso, surgem idéias novas. Platão proclama, como Sócrates e os sofistas, que a regra da moral e da política está em nós mesmas, que a tradição nada representa, que é à razão que devemos consultar, e que as leis não são justas senão enquanto estão conformes à natureza humana.

Essas idéias são ainda mais precisas em Aristóteles. “A lei — diz ele — é a razão.” — Aristóteles ensina que se deve procurar, não o que é conforme ao costume dos antepassados, mas o que é bom em si. E acrescenta que à medida que o tempo marcha é necessário mudar as instituições, pondo de lado o respeito pelos antepassados: “Nossos primeiros pais — diz ele — quer tenham nascido do seio da terra, quer tenham sobrevivido a algum dilúvio, assemelhavam-se, segundo tudo faz acreditar, ao que há de mais vulgar e de mais ignorante entre os homens de hoje. Seria absurdo evidente querer amarrar-se à opinião deles.” — Aristóteles, como todos os filósofos, menosprezava absolutamente a origem religiosa da sociedade humana; não fala dos pritaneus e ignora que os cultos locais tenham sido a base do Estado. — ”O Estado — diz ele — não é nada mais que uma associação de seres iguais, à procura de uma existência fácil e feliz.“ — Desse modo a filosofia rejeita os velhos princípios das sociedades, e procura novas bases sobre as quais possa apoiar as leis sociais e a idéia de pátria(1).

A escola cínica vai ainda mais longe: ela nega a pátria. Diógenes vangloriava-se de não ter direitos civis em nenhum lugar, e Crates dizia que sua pátria era o desprezo da opinião alheia. Os cínicos acrescentavam esta verdade, então muito nova, de que o homem é cidadão do universo, e de que a pátria não são os estreitos limites de uma cidade. Consideravam o patriotismo municipal como um preconceito, e suprimiam do número dos sentimentos o amor da cidade.

Por fastio, ou por desprezo, os filósofos afastavam-se cada vez mais dos negócios públicos. Sócrates ainda cumprira os deveres de cidadão; Platão tentara trabalhar para o Estado reformando-o. Aristóteles, mais indiferente, limitou-se ao papel de observador, e fez do Estado um objeto de estudos científicos. Os epicuristas deixaram de lado os negócios públicos. — “Não se intrometam — dizia Epicuro — a não ser se constrangidos por algum poder superior.” — Os cínicos nem queriam ser cidadãos.

Os estóicos retornaram à política. Zenão, Cleanto e Crísipo escreveram numerosos tratados sobre o governo dos estados. Mas seus princípios estavam muito afastados da política municipal. Eis em que termos um antigo nos informa a respeito das doutrinas contidas em seus escritos: “Zenão, em seu tratado sobre o governo, propõe-se demonstrar-nos que não somos habitantes de tal demo ou de tal cidade, separados uns dos outros por um direito particular e leis exclusivas, mas que devemos ver em todos os homens concidadãos, como se todos pertencêssemos à mesma cidade, ao mesmo demo(2).” — Por aí se vê o caminho percorrido pelas idéias, desde Sócrates até Zenão. Sócrates julgava-se ainda obrigado a adorar, como podia, os deuses do Estado. Platão ainda não concebia outro governo senão o da cidade. Zenão passa por cima desses limites restritos da associação humana. Despreza as divisões que a religião antiga havia estabelecido. Como concebe o Deus do universo, tem também a idéia de um Estado que compreenderia toda a humanidade(3).

Mais eis um princípio ainda mais novo. O estoicismo, alargando a associação humana, liberta o indivíduo. Como rejeita a religião da cidade, rejeita também a servidão. Não quer mais que a pessoa humana se sacrifique ao Estado. Distingue e separa nitidamente o que deve permanecer livre no homem, e liberta pelo menos a consciência. Diz ao homem que deve fechar-se em si mesmo, que deve encontrar em si o dever, a virtude, a recompensa. Não lhe proíbe ocupar-se dos negócios públicos, antes convida-o a isso, advertindo-o, porém, de que seu principal trabalho deve ter por objeto o progresso individual, e que, seja qual for o governo, sua consciência deve continuar independente. Grande princípio, que a cidade antiga sempre desprezou, mas que devia um dia tornar-se uma das regras mais sagradas da política.

Começa-se então a compreender que há outros deveres além dos deveres para com o Estado, outras virtudes além das virtudes cívicas. A alma se prende a outros objetos além da pátria. A cidade antiga havia sido tão poderosa e tirânica que o homem fizera dela a razão de todo o seu trabalho e de todas as suas virtudes; ela havia sido a regra do belo e do bem, e não havia heroísmo senão para ela. Mas eis que Zenão ensina ao homem que ele tem uma dignidade, não de cidadão, mas de homem; que além de seus deveres para com a lei tem outros para consigo mesmo, e que o supremo merecimento não é viver ou morrer pelo Estado, mas ser virtuoso, e agradar à divindade. Virtudes um tanto egoístas, e que fizeram decair a independência nacional e a liberdade, mas pelas quais o indivíduo adquiriu importância. As virtudes públicas foram desaparecendo, mas as virtudes pessoais tomaram maior evidência, e começaram a surgir entre os homens. A princípio elas tiveram que lutar contra a corrupção ou contra o despotismo. Mas pouco a pouco se enraizaram na humanidade, e com o tempo transformaram-se em um poder com o qual todo governo teve de contar, e tornou-se necessário que as regras da política fossem modificadas para dar-lhes lugar livre.

Assim se transformaram pouco a pouco as crenças; a religião municipal, fundamento da cidade, extinguiu-se. O regime municipal, tal como os antigos o imaginaram, teve também de cair. Insensivelmente, os homens se libertavam das regras rigorosas e das formas acanhadas de governo. Idéias mais elevadas conclamavam os homens a formar sociedades maiores. A tendência então era a unidade, aspiração geral dos dois séculos que precederam a era cristã. É verdade que os frutos gerados por essas revoluções da inteligência são de amadurecimento em extremo vagaroso. Mas veremos, ao estudar a conquista romana, que os acontecimentos caminhavam no mesmo sentido das idéias, que tendiam, como elas, à ruína do antigo regime municipal, preparando novas modalidades de governo.

CAPÍTULO II

A CONQUISTA ROMANA

 

Parece à primeira vista surpreendente que entre as mil cidades da Grécia e da Itália tenha-se encontrado apenas uma capaz de submeter todas as demais. Esse grande acontecimento é contudo explicável pelas causas ordinárias que determinam a marcha dos negócios humanos. A sabedoria de Roma consistiu, como toda sabedoria, em se aproveitar das circunstâncias favoráveis que surgiam.

Podem-se distinguir na obra da conquista romana dois períodos. Um, de acordo com o tempo em que o velho espírito municipal tinha ainda bastante força; foi então que Roma teve de superar maiores obstáculos. O segundo pertence ao tempo em que o espírito municipal já se achava muito enfraquecido; a conquista então tornou-se fácil, e foi realizada rapidamente.

1.° Algumas palavras sobre as origens e a população de Roma

As origens de Roma e a composição de seu povo são dignas de nota. Elas explicam o caráter particular de sua política, e o papel excepcional que lhe foi confiado, desde o começo, entre as outras cidades.

A raça romana era estranhamente heterogênea. Sua base era latina, e originária de Alba; mas os próprios albanos, de acordo com tradições que nenhuma crítica nos autoriza a rejeitar, compunham-se de duas populações associadas e distintas: uma era a raça aborígene, verdadeiros latinos; outra era de origem estrangeira, e se dizia originária de Tróia, com Enéias, o sacerdote fundador; era pouco numerosa, como parece, mas era considerável pelo culto e as instituições que trouxera consigo(1).

Esses albanos, união de duas raças, fundaram Roma em um lugar onde já se levantava outra cidade, Pallantium, fundada por gregos. Ora, a população de Pallantium subsistiu na cidade nova, conservando os ritos do culto grego(2). Havia também, no local onde surgiu mais tarde o Capitólio, uma cidade de nome Satúrnia, que se dizia haver sido fundada por gregos(3).

Assim em Roma todas as raças se associam e se mesclam: há latinos, troianos, gregos; logo haverá também sabinos e etruscos. Vede as diversas colinas: o Palatino é a cidade latina, depois de ter sido a cidade de Evandro; o Capitolino, depois de ter sido a morada dos companheiros de Hércules, torna-se morada dos sabinos de Tácio. O Quirinal recebe o nome dos quirites sabinos ou do deus sabino Quirino. O Célio parece ter sido habitado desde o princípio pelos etruscos(4). Roma não parecia uma única cidade; parecia uma confederação de várias cidades, das quais cada uma ligava-se, pela origem, a outra confederação. Roma era o centro onde latinos, etruscos, sabélios e gregos se encontravam.

Seu primeiro rei foi latino; o segundo, de acordo com a tradição, foi sabino; o quinto era, como se diz, filho de grego; o sexto foi etrusco.

Sua língua era um composto dos elementos mais diversos, dominando o latim; mas as raízes sabelianas eram numerosas, e nela se encontravam mais radicais gregos que em qualquer outro dos dialetos da Itália central. Quanto a seu próprio nome, não se sabia a que língua pertencia. De acordo com uns, Roma era palavra troiana; segundo outros, era grega; há razões para julgá-la latina, mas alguns antigos julgavam-na etrusca.

Os nomes das famílias romanas atestam também grande diversidade de origem. Nos tempos de Augusto havia ainda cerca de cinqüenta famílias que, remontando a série de seus ancestrais, chegavam aos companheiros de Enéias(5). Outras diziam-se descendentes dos arcádios de Evandro, e, desde tempos imemoriais, os homens dessas famílias ostentavam no calçado, como sinal distintivo, um pequeno crescente de prata(6). As famílias Potícia e Pinária descendiam dos chamados companheiros de Hércules, e essa descendência era provada pelo culto hereditário desse deus(7). Os Túlios, os Quintos, os Servílios tinham vindo de Alba depois da conquista dessa cidade. Muitas famílias juntaram seus nomes ao sobrenome que lembrava sua origem estrangeira; assim havia os Sulpícios Camerinos, os Comínios Aruncos, os Sicínios Sabinos, os Cláudios Regilenses, os Aquílios Tuscos; a família Náucia era troiana; os Aurélios eram sabinos; os Cecílios vinham de Preneste; os Otávios eram originários de Velitras.

Dessa mistura original de povos tão diferentes resultavam os laços que Roma mantinha com todos os povos que conhecia. Podia dizer-se latina com os latinos, sabina com os satainos, etrusca com os etruscos e grega com os gregos.

Seu culto nacional era também um conjunto de vários cultos, infinitamente diversos, de acordo com os povos de que provinha. Tinha os cultos gregos de Evandro e de Hércules; gloriava-se de possuir o paládio troiano. Seus penates estavam na cidade latina de Lavínio. Adotou desde a origem o culto sabino do deus Conso. Outro deus sabino, Quirino, implantou-se tão fortemente em Roma, que ela o associou a Rômulo, seu fundador. Tinha também deuses etruscos, suas festas, seu augurato, e até suas insígnias sacerdotais.

Em uma época em que ninguém tinha o direito de assistir às festas religiosas de uma nação, se não se pertencesse a essa nação por nascimento, o romano tinha essa vantagem incomparável de poder tomar parte nas férias latinas, nas festas sabinas, nas festas etruscas e nos jogos olímpicos(8). Ora, a religião era um vínculo poderoso. Quando duas cidades tinham um culto comum, elas se diziam parentes, deviam considerar-se aliadas e ajudarem-se mutuamente; não se conhecia, nessa antiguidade, outra união que a estabelecida pela religião. Por isso Roma conservava com grande cuidado tudo o que pudesse servir de testemunha desse precioso parentesco com as outras nações. Aos latinos, Roma apresentava suas tradições sobre Rômulo; aos sabinos, sua lenda de Tarpéia e de Tácio; aos gregos alegava os velhos hinos que possuía em honra da mãe de Evandro, hinos que não compreendia mais, mas que ainda persistia em cantar. Guardava também com a maior atenção a lembrança de Enéias, porque, se por Evandro Roma podia dizer-se parenta dos peloponesianos, por Enéias ela o era de mais de trinta cidades espalhadas pela Itália, Sicília, Grécia, Trácia e Ásia Menor, cidades essas que tiveram Enéias como fundador, ou eram colônias de cidades fundadas por ele, todas tendo, por conseqüência, culto comum com Roma. Pode-se ver nas guerras que fez na Sicília, contra Cartago, e na Grécia, contra Filipe, que partido Roma soube tirar desse antigo parentesco.

A população romana, portanto, era uma mistura de várias raças, seu culto uma união de vários cultos, seu lar nacional uma associação de vários lares. Roma era quase a única cidade que a religião municipal não isolava das demais. Estava ligada a toda a Itália, a toda a Grécia. Não havia quase nenhum povo que não pudesse admitir em seu lar.

2.° Primeiros progressos de Roma (753-350 antes de Cristo)

Durante os séculos em que a religião municipal esteve em vigor por toda parte, Roma regulou por ela toda sua política.

Diz-se que o primeiro ato da nova cidade foi raptar algumas mulheres sabinas, lenda que parece bastante inverossímil, se se pensa na santidade do casamento entre os antigos. Mas vimos acima que a religião municipal proibia casamentos entre pessoas de cidades diferentes, a menos que essas duas cidades não tivessem um laço de origem ou um culto comum. Esses primeiros romanos tinham direito de matrimônio com Alba, de onde eram originários, o que não acontecia com os outros vizinhos, os sabinos. O que Rômulo quis conquistar logo de início não eram algumas mulheres, mas o direito de casamento, isto é, o direito de contrair relações regulares com os sabinos. Para isso, era necessário estabelecer entre as duas cidades um vínculo de caráter religioso; adotou, portanto, o culto do deus sabino Conso, celebrando sua festa. A tradição acrescenta que durante esse culto ele raptou as mulheres; se tivesse agido dessa maneira os casamentos não poderiam ter sido celebrados de acordo com a religião, porque o primeiro ato, e o mais necessário do casamento era a traditio in manum, isto é, a entrega da filha pelo pai; Rômulo não alcançaria sua finalidade. Mas a presença dos sabinos e de suas famílias na cerimônia religiosa, e sua participação no sacrifício estabeleciam entre os dois povos um laço tal que o connubium não poderia ser recusado. Não havia necessidade de rapto material; o chefe dos romanos soubera conquistar o direito de casamento. Por isso o historiador Dionísio, que consultava os textos e hinos antigos, afirma que as sabinas se casaram de acordo com os ritos mais solenes, o que é confirmado por Plutarco e Cícero(9). É digno de nota que o primeiro esforço dos romanos tenha tido por resultado derrubar as barreiras que a religião municipal levantava entre eles e o povo vizinho. Não nos chegou nenhuma lenda análoga a respeito da Etrúria, mas parece bem certo que Roma tinha com esse país as mesmas relações que com o Lácio e a Sabina. Roma, portanto, teve a habilidade de se unir pelo culto e pelo sangue a tudo o que a rodeava. Esforçava-se por ter o connubium com todas as cidades, o que prova que conhecia bem a importância desse vínculo, é que não queria que as outras cidades, suas aliadas, o tivessem entre si(10).

Roma entrou depois na longa série de suas guerras. A primeira foi contra os sabinos de Tácio; terminou por uma aliança religiosa e política entre os dois pequenos povos(11). Em seguida lutou contra Alba; os historiadores dizem que Roma ousou atacar essa cidade, embora fosse uma de suas colônias. Talvez essa mesma fosse a razão pela qual Roma julgou necessário à sua grandeza destruí-la. Toda metrópole, com efeito, exercia sobre as colônias uma supremacia religiosa; ora, a religião tinha então tanta força, que, enquanto Alba existisse, Roma não podia ser mais que uma cidade dependente, e seus destinos estavam para sempre embargados.

Destruída Alba, Roma não se contentou em não ser mais colônia, e pretendeu elevar-se à categoria de metrópole, herdando os direitos e a supremacia religiosa que Alba havia exercido até então sobre as trinta colônias do Lácio. Roma sustentou longas guerras para obter a presidência do sacrifício das férias latinas. Era este um meio de adquirir o único gênero de superioridade e domínio que então se concebiam.

Levantou um templo a Diana; obrigou os latinos a nele oferecer sacrifícios, chamando até mesmo os sabinos para seu recinto(12). Desse modo acostumou os dois povos a participar com ela, sob sua presidência, das festas, das orações, das carnes sagradas das vítimas, reunindo-os sob sua supremacia religiosa.

Roma é a única cidade que soube aumentar a população por meio da guerra. Sua política era desconhecida a todo o resto do mundo grego-itálico; Roma unia a si tudo o que vencia. Trouxe para dentro de seus muros os habitantes das cidades vencidas, transformando-os pouco a pouco em romanos. Ao mesmo tempo enviava colonos ao país conquistado, e dessa maneira Roma se difundia por toda parte, porque seus colonos, formando cidades distintas sob o ponto de vista político, conservava com a metrópole a comunidade religiosa; ora, isso era o bastante para que eles se vissem constrangidos a subordinar sua política à de Roma, a obedecer-lhe, e ajudá-la em todas as suas guerras.

Um dos traços marcantes da política de Roma é que adotava todos os cultos das cidades vizinhas. Esforçava-se tanto para conquistar os deuses como as cidades. Apoderou-se de uma Juno de Veios, de um Júpiter de Prenesta, de uma Minerva de Falisca, de uma Juno de Lanúvio, de uma Vênus dos samnitas, e de muitos outros deuses que não conhecemos(13). “Porque era costume em Roma — diz um antigo(14) — dar entrada às religiões das cidades vencidas, ora repartindo-as entre suas gentes, ora dando-lhes lugar em sua religião nacional.”

Montesquieu louva os romanos, como refinados políticos, por não impor seus deuses aos povos vencidos. Mas isto seria absolutamente contrário às suas idéias e às de todos os antigos. Roma conquistava os deuses vencidos, e não abria mão dos seus. Guardava para si seus protetores, e até trabalhava para aumentar seu número. Esforçava-se para possuir mais cultos e deuses tutelares que nenhuma outra cidade.

Como, aliás, esses cultos e deuses eram, na maior parte, tomados aos vencidos, Roma estava, por seu intermédio, em comunhão religiosa com todos os povos. Os laços de origem, a conquista do connubium, a da conquista da presidência das férias latinas, a dos deuses vencidos, o direito que pretendia ter de sacrificar em Olímpia e em Delfos, eram outros tantos meios pelos quais Roma preparava seu domínio. Como todas as cidades, Roma tinha sua religião municipal, fonte de seu patriotismo; mas era a única cidade que usou dessa religião para seu engrandecimento. Enquanto que, pela religião, as outras cidades estavam isoladas, Roma tinha a habilidade ou a boa sorte de usá-la para atrair e dominar tudo.

3.° De que modo Roma conquistou o império (350-140 antes de Cristo)

Enquanto Roma crescia assim lentamente, pelos meios que a religião e as idéias da época punham à sua disposição, uma série de transformações sociais e políticas desenrolava-se em todas as cidades e na própria Roma, modificando ao mesmo tempo o governo dos homens e sua maneira de pensar. Já descrevemos acima essa revolução; o que devemos notar aqui é que ela coincide com o grande desenvolvimento do poderio romano. Esses dois fatos, que se produziram ao mesmo tempo, não deixaram de ter certa influência mútua. As conquistas de Roma não teriam sido tão fáceis, se o velho espírito municipal não estivesse então extinto por toda parte, e podemos crer também que o regime municipal não teria caído tão depressa se a conquista romana não lhe tivesse dado o último golpe.

Em meio às mudanças que surgiam nas instituições, nos costumes, nas crenças, no direito, o próprio patriotismo mudara de natureza, e é uma das coisas que mais contribuíram para o grande progresso de Roma. Dissemos acima que significava esse sentimento na primeira idade das cidades. Fazia parte da religião; amava-se a pátria porque se amavam os deuses protetores, porque nela estavam o pritaneu, o fogo sagrado, as festas, as orações, os hinos, e porque fora dela não havia deuses nem culto. Esse patriotismo era um patriotismo de fé e de piedade. Mas quando a casta sacerdotal viu-se privada do domínio, essa espécie de patriotismo desapareceu juntamente com as velhas crenças. O amor da cidade não acabou, mas tomou nova forma.

Não se amava mais a pátria por sua religião e seus deuses, mas somente por suas leis, por suas instituições, pelos direitos e segurança que proporcionava a seus membros. Vede, na oração fúnebre que Tucídides põe na boca de Périeles, quais são as razões que tornam Atenas digna de amor: essa cidade “quer que todos sejam iguais diante da lei; dá aos homens a liberdade, e abre a todos o caminho das honras; mantém a ordem pública, sustenta a autoridade dos magistrados, protege os fracos, oferece a todos espetáculos e festas que constituem a educação da alma.” — E o orador termina dizendo: “Eis por que nossos guerreiros morreram heroicamente para que não lhes tirassem a pátria; eis por que os que sobrevivem estão prontos a sofrer e a se sacrificarem por ela.” — O homem, portanto, ainda tem deveres para com a cidade, mas esses deveres não derivam mais dos mesmos sentimentos de outrora. Ele ainda dá o sangue e a vida, mas não mais para defender a divindade nacional e o lar de seus pais, mas para defender as instituições de que usufrui, e as vantagens que a cidade lhe proporciona.

Ora, esse novo patriotismo não teve exatamente os mesmos efeitos que o das antigas idades. Como o coração não se prendia mais ao pritaneu, aos deuses protetores, ao solo sagrado, mas apenas às instituições e às leis, e essas, aliás, no estado de instabilidade em que todas as cidades então se encontravam, mudavam freqüentemente, o patriotismo tornou-se um sentimento variável e inconsistente, que dependia das circunstâncias, e que estava sujeito às mesmas flutuações do governo. A pátria era amada apenas pelo regime político que prevalecia momentaneamente; quem não gostasse de suas leis não tinha mais razões para defendê-la.

Destarte o patriotismo municipal foi-se enfraquecendo, até desaparecer. A opinião de cada homem lhe era mais sagrada que sua pátria, e o triunfo de sua facção tornou-se-lhe mais caro que a grandeza ou a glória de sua cidade. Cada um passou a preferir à cidade natal, se nela não encontrava as instituições de que gostava, outra cidade, onde essas instituições estivessem em vigor. Começou-se então a emigrar com mais freqüência, e o exílio passou a ser menos temido. Que importava ser excluído do pritaneu, ou ser privado da água lustral? Já não se pensava mais nos deuses protetores, e todos se acostumavam facilmente a passar sem a pátria.

Daí a armarem-se contra ela não havia muita distância. Houve quem fizesse aliança com cidades inimigas para fazer triunfar o próprio partido na cidade natal. De dois argivos, um desejava um governo aristocrático, e gostava mais de Esparta que de Argos; outro preferia a democracia, e por isso preferia Atenas. Nem um, nem outro dava tanta importância à independência da própria cidade, ou sentia repugnância em se dizerem súditos de outra cidade, contanto que esta sustentasse sua facção em Argos. Vê-se claramente em Tucídides e em Xenofonte que foi esta disposição de espírito que gerou e fez durar a guerra do Peloponeso. Em Platéias, os ricos eram do partido de Tebas e de Lacedemônia, os democratas eram do partido de Atenas. Na Córcira, a facção popular era por Atenas e a aristocracia por Esparta(15). Atenas tinha aliados em todas as cidades do Peloponeso, e Esparta tinha-os em todas as cidades jônicas. Tucídides e Xenofonte são concordes em afirmar que não havia uma só cidade na qual o partido popular não fosse favorável aos atenienses, e a aristocracia aos espartanos(16). Essa guerra representa um esforço geral dos gregos para estabelecer por toda parte uma mesma constituição, com a hegemonia de uma cidade; mas uns queriam a aristocracia sob a proteção de Esparta, outros a democracia com o apoio de Atenas. O mesmo aconteceu no tempo de Filipe: o partido aristocrático, em todas as cidades, votou pelo domínio da Macedônia. Nos tempos de Filópemen, os papéis se inverteram, mas os sentimentos continuaram os mesmos; o partido popular aceitou o império da Macedônia, e todos os adeptos da aristocracia uniam-se à liga dos aqueus. Destarte os votos e afeição dos homens não tinham mais por objeto a cidade. Havia poucos gregos que não estivessem prontos a sacrificar a independência municipal para ter a constituição que preferiam.

Quanto aos homens honestos e escrupulosos, as dissensões perpétuas de que eram testemunhas, tornaram-nos desgostosos do regime municipal, Não podiam amar uma forma de sociedade na qual era necessário combater todos os dias, onde o pobre e o rico estavam sempre em guerra, onde viam alternarem-se indefinidamente violências populares e vinganças aristocráticas. Queriam fugir de um regime que, depois de haver produzido uma verdadeira grandeza, não causava senão sofrimentos e ódios. Começava-se a sentir a necessidade de abandonar o sistema municipal, e chegar a outra forma de governo, diversa da da cidade. Muitos pensaram, pelo menos, em estabelecer acima das cidades uma espécie de poder soberano que velasse pela manutenção da ordem, e que forçasse as pequenas sociedades turbulentas a viver em paz. É assim que Fócio, bom cidadão, aconselhava a seus compatriotas que aceitassem a autoridade de Filipe, prometendo-lhes por esse preço concórdia e segurança.

Na Itália as coisas não se passavam de outro modo. As cidades do Lácio, da Sabina, da Etrúria eram perturbadas pelas mesmas revoluções e lutas, enquanto desaparecia o amor à cidade. Como na Grécia, cada qual se unia a uma cidade estrangeira para fazer prevalecer suas opiniões ou interesses na própria cidade.

Essa disposição de espírito foi a sorte de Roma. Roma apoiou por toda a parte a aristocracia, e por toda a parte a aristocracia foi sua aliada. Citemos alguns exemplos. A gens Cláudia abandonou a Sabina depois de discórdias internas, e se transportou para Roma, porque as instituições romanas lhe agradavam mais que a de seu país. Pela mesma época, muitas famílias latinas emigraram de Roma, porque não gostavam do regime democrático do Lácio, e Roma acabava de restabelecer o domínio do patriciado(17). Em Árdea, a aristocracia e a plebe estavam em luta; a plebe chamou em sua ajuda os volscos, e a aristocracia entregou a cidade aos romanos(18). A Etrúria estava cheia de dissensões; Veios derrubara seu governo aristocrático; os romanos a atacaram, e as outras cidades etruscas, onde ainda dominava a aristocracia sacerdotal, recusaram socorro aos veienses. A lenda acrescenta que nessa guerra os romanos raptaram um arúspice veiense, e o obrigaram a revelar oráculos que lhes assegurassem a vitória. Essa lenda não deixa por acaso entrever que os sacerdotes etruscos é que abriram a cidade aos romanos?

Mais tarde, quando Cápua se revoltou contra Roma, notou-se que os cavaleiros, isto é, o corpo aristocrático, não tomaram parte nessa insurreição(19). Em 313, as cidades de Ausônia, Sora, Minturnas e Véscia foram entregues aos romanos pelo partido aristocrático(20). Quando o governo popular se estabeleceu entre os etruscos, estes se coligaram contra Roma; uma única cidade, Arrécio, recusou-se a ingressar nessa coalizão, porque a aristocracia ainda prevalecia em Arrécio(21). Quando Aníbal estava na Itália, todas as cidades se agitaram; mas não se tratava de independência; em cada cidade a aristocracia estava do lado de Roma, e a plebe do lado dos cartagineses(22).

A maneira pela qual Roma era governada pode explicar essa preferência constante da aristocracia pelo seu regime. A série de revoluções desenrolou-se ali, como em todas as outras cidades, mas mais lentamente. Em 509, quando as cidades latinas já tinham tiranos, uma reação patrícia foi bem sucedida em Roma. Depois a democracia levantou-se, mas com o tempo, com muita moderação e prudência. O governo romano, portanto, foi por mais tempo aristocrático do que qualquer outro, e por muito tempo continuou a ser a esperança do partido aristocrático.

É verdade que a democracia acabou por vencê-lo em Roma; mas mesmo então o modo de agir, e o que poderíamos chamar de artifícios do governo continuaram aristocráticos. Nos comícios por centúrias os votos estavam repartidos de acordo com a riqueza. Nos comícios tribais acontecia quase a mesma coisa; de direito, não se admitia nenhuma distinção de riqueza; de fato, a classe pobre, limitada em quatro tribos urbanas, não tinha senão quatro sufrágios a opor aos trinta e um votos da classe dos proprietários. Aliás, comumente, nada era mais calmo que essas reuniões; ninguém falava, a não ser o presidente, ou o que dele recebia a palavra; não se ouviam oradores; discutia-se pouco; tudo se reduzia, freqüentemente, em votar pelo sim ou pelo não, e na contagem dos votos; essa última operação demandava muito tempo e calma. A isso devemos acrescentar ainda que o senado não se renovava todos os anos, como nas cidades democráticas da Grécia. Legalmente, era composto em cada novo lustro pelos censores; na realidade, as listas se assemelhavam muito de um lustro para outro, e os nomes riscados constituíam exceção, de sorte que o senado era um corpo vitalício, que mais ou menos se recrutava a si mesmo, e onde se pode notar que os filhos sucediam ordinariamente aos pais. Tratava-se verdadeiramente de um corpo oligárquico.

Os costumes eram ainda mais aristocráticos que as instituições. Os senadores tinham lugares reservados nos teatros. Somente os ricos podiam servir na cavalaria. Os postos do exército, em grande parte, eram reservados aos jovens das grandes famílias; Cipião tinha apenas dezesseis anos, e já comandava um esquadrão(23).

O domínio da classe rica manteve-se em Roma por mais tempo que em nenhuma outra cidade, e isso por duas razões: a primeira eram as grandes conquistas levadas a efeito, cujos lucros cabiam à classe rica; todas as terras tomadas aos vencidos tornaram-se propriedade dessa classe; ela apoderou-se do comércio dos países conquistados, acrescentando ainda a isso os enormes lucros provenientes da cobrança dos impostos e da administração das províncias. Essas famílias, enriquecendo-se assim em cada geração, tornaram-se demasiadamente opulentas, e cada uma delas representava um poder à parte contra o povo. A outra causa era que o romano, mesmo o mais pobre, sentia respeito inato pela riqueza. Quando a verdadeira clientela desapareceu, ela foi como que ressuscitada sob a forma de homenagem às grandes fortunas, e estabeleceu-se o costume de os proletários irem todas as manhãs a saudar os ricos, e pedir-lhes o alimento do dia.

Não que a luta entre ricos e pobres não tenha existido em Roma, como em todas as outras cidades. Mas esta só começou no tempo dos Gracos, isto é, depois que a conquista estava quase no fim. Aliás, essa luta nunca teve em Roma o caráter de violência que tinha por toda parte. O baixo povo de Roma não tinha grandes desejos de riqueza; ajudou os Gracos sem muito interesse; recusando-se a crer que esses reformadores trabalhavam para ele, abandonou-os no momento decisivo. As leis agrárias, tantas vezes apresentadas aos ricos como verdadeira ameaça, deixaram sempre o povo indiferente, agitando-o apenas na superfície. Vê-se bem que o povo não tinha grandes desejos de possuir terras; aliás, se lhe ofereceram a partilha das terras públicas, isto é, do domínio do estado, pelo menos não pensou em despojar os ricos de suas propriedades. Em parte por respeito inveterado, em parte pelo hábito de nada fazer, o povo gostava de viver ao lado e como que à sombra dos ricos.

Essa classe teve a sabedoria de admitir em seu meio as famílias mais consideráveis das cidades vencidas ou aliadas. Tudo o que era rico na Itália chegou pouco a pouco a formar a classe rica de Roma. Esse corpo cresceu sempre em importância, e apoderou-se do Estado. Exerceu sozinho as magistraturas, porque eram muito dispendiosas; compôs sozinho o senado, porque exigia-se grande patrimônio para se ser senador. Assim viu-se acontecer esse fato estranho: a despeito das leis democráticas, formou-se uma nobreza, e o povo, que era todo-poderoso, teve que submeter-se a ela, sem nunca fazer-lhe verdadeira oposição.

Roma era, portanto, no terceiro e no segundo século antes de nossa era, a cidade mais aristocraticamente governada que houve na Itália e na Grécia. Notemos por fim que, se nos negócios interiores o senado era obrigado a agradar à multidão, no que dizia respeito à política exterior ele era mestre absoluto. Era ele que recebia os embaixadores, que concluía as alianças, que distribuía as províncias e legiões, que ratificava as ordens dos generais, que determinava as condições impostas aos vencidos; todas essas coisas que, aliás, em toda parte eram atribuições da assembléia popular. Os estrangeiros, em suas relações com Roma, não tinham nada a tratar com o povo; não ouviam falar senão do senado, que os mantinha na convicção de que o povo não tinha poder algum. Esta foi a opinião que um grego manifestou a Flamínio: “Em seu país — dizia ele — a riqueza governa, e tudo o mais se lhe submete(24).”

Resultou daí que, em todas as cidades, a aristocracia voltava os olhos para Roma, contava com ela, adotou-a por protetora, aliou-se a seu destino. E isso parecia tanto mais permitido quanto Roma não era para ninguém uma cidade estrangeira: sabinos, latinos, etruscos viam nela uma cidade sabina, uma cidade latina, uma cidade etrusca, e os gregos julgavam encontrar nelas os deuses da Grécia.

Desde que Roma se manifestou à Grécia (199 antes de Cristo) a aristocracia aliou-se a ela. Quase ninguém então pensava que teriam que escolher entre a independência e a submissão; para a maior parte dos homens a questão não existia senão entre a aristocracia e o partido popular. Em todas as cidades, uns eram por Filipe, outros por Antíoco., outros por Perseu, outros por Roma. Podemos ver em Políbio e em Tito Lívio que se em 198 Argos abre suas portas aos macedônios, é porque o povo está no poder; e que, no ano seguinte, é o partido dos ricos que entrega Opunto aos romanos; que entre os arcananos a aristocracia faz um tratado de aliança com Roma, mas que no ano seguinte esse tratado é rompido, porque nesse espaço de tempo a democracia reconquistara o poder; que Tebas conserva-se aliada de Filipe enquanto o partido popular é mais forte, e aproxima-se de Roma enquanto a aristocracia se mantém poderosa; que em Atenas, em Demetríade, na Fócia, a plebe é hostil a Roma; que Nábis, o tirano democrata, lhe declara guerra; que a estirpe dos aqueus, enquanto é governada pela aristocracia, lhe é favorável, que homens como Políbio e Filópemen desejavam a independência nacional, mas preferiram o domínio de Roma à democracia; que na própria liga dos aqueus houve um momento em que o partido popular se levantou, e que a partir desse momento a liga torna-se inimiga de Roma; que Dios e Critolau são ao mesmo tempo chefes da facção popular e generais da liga contra os romanos; e que eles combatem valentemente em Escarféia e em Leucópetra, talvez menos pela independência da Grécia que pelo triunfo da democracia.

Tais fatos provam suficientemente como Roma, sem fazer grandes esforços, conseguiu o poder absoluto. O espírito municipal desaparecia pouco a pouco. O amor pela independência tornava-se um sentimento muito raro, e todos se devotavam inteiramente aos interesses e às paixões dos partidos. A cidade, insensivelmente, passava a ser esquecida. As barreiras que outrora haviam separado as cidades, fazendo delas outros tantos mundos distintos, cujo horizonte limitava os anseios e pensamento de cada um, caíam uma após outra. Não se distinguia mais, para toda a Itália e para toda a Grécia, mais que dois grupos de homens: de uma parte, a classe aristocrática; de outra, o partido popular; uma desejava o domínio de Roma, outra o rejeitava. A aristocracia venceu, e Roma conquistou o império.

4.° Roma destrói por toda parte o regime municipal

As instituições da cidade antiga haviam sido enfraquecidas e como que esgotadas por uma série de revoluções. O domínio de Roma teve como primeiro resultado sua completa destruição, fazendo desaparecer o que ainda subsistia. É o que se pode ver observando-se a situação em que caíam os povos à medida que se foram submetendo a Roma.

Em primeiro lugar, devemos afastar da mente todo o modo de ser da política moderna, e não imaginar os povos entrando um após outro no Estado romano, como em nossos dias as províncias conquistadas são anexadas a um reino que, acolhendo esses novos membros, alarga seus limites. O Estado romano — civitas romana — não crescia pela conquista; sempre se constituía apenas pelas famílias que figuravam na cerimônia religiosa do censo. O território romano — ager romanus — não se estendia mais que o Estado; continuava fechado dentro dos limites imutáveis que os reis lhe haviam traçado, e que a cerimônia das Ambarvais santificava todos os anos. Duas coisas apenas cresciam em cada conquista: o domínio de Roma — imperium romanum — e o território pertencente ao Estado romano — ager publicus.

Enquanto durou a república, ninguém imaginou que os romanos e os outros povos pudessem formar uma só nação. Roma bem podia acolher, individualmente, alguns vencidos, dentro de seus muros, transformando-os com o tempo em romanos; mas não podia assimilar toda uma população estrangeira à sua população, todo um território ao seu território. Isso não era devido à política particular de Roma, mas a um princípio que era constante na antiguidade, princípio de que Roma mais do que outra cidade, muito voluntariamente se afastaria, mas do qual não se podia libertar inteiramente. Portanto, quando um povo era vencido, não entrava no Estado romano — in civitate — mas apenas no domínio de Roma — in imperio. Ele não se unia a Roma, como hoje as províncias se unem à capital; entre os diversos povos e ela, Roma não conhecia senão duas espécies de vínculo: a submissão ou a aliança (dedititii, socii).

Pareceria depois disso que as instituições municipais deveriam subsistir entre os vencidos, e que o mundo deveria ser um vasto ajuntamento de cidades distintas entre si, tendo por cabeça uma cidade soberana. Tudo passava-se diferentemente. A conquista romana tinha por efeito operar no interior de cada cidade uma verdadeira transformação.

De uma parte estavam os súditos, dedititii; estes eram os que, tendo pronunciado a fórmula de deditio, haviam entregue ao povo romano “suas pessoas, suas muralhas, suas terras, suas águas, suas casas, seus templos, seus deuses.” — Eles renunciavam, portanto, não apenas a seu governo municipal, mas ainda a tudo o que dele derivava entre os antigos, isto é, a sua religião, a seu direito privado. A partir desse momento esses homens não formavam mais entre si um corpo político; não tinham mais nada de uma sociedade regular. Sua urbe podia continuar de pé, mas sua cidade já havia desaparecido. Se continuavam a viver juntas, faziam-no sem leis, sem instituições, sem magistrados. A autoridade arbitrária de um praefectus, enviado por Roma, mantinha entre eles a ordem material(25).

Por outra parte eram aliados, foederati ou socii. Eram menos maltratados. No dia em que entraram para o domínio de Roma, haviam estipulado que conservariam o regime municipal e continuariam organizados como cidades. Continuavam, portanto, em cada cidade a ter constituição própria, magistraturas, senado, pritaneu, leis, juízes. A cidade era considerada independente, e parecia não ter outras relações com Roma que as de um aliado com outro aliado. Todavia, nos termos do tratado que havia sido redigido no momento da conquista, Roma inserira esta fórmula: Majestatem populi romani comiter conservato(26). — Estas palavras estabeleciam a dependência da cidade aliada com relação à cidade soberana, e como os termos eram muito vagos, resultava de aí que a medida dessa dependência sempre estava sujeita à vontade do mais forte. Essas cidades, que se chamavam livres, recebiam ordens de Roma, obedeciam aos procônsules, e pagavam impostos aos publicanos; seus magistrados prestavam contas ao governador da província, que recebia também a apelação de seus juízes(27). Ora, a natureza do regime municipal era tal entre os antigos, que era necessária uma independência completa ou não podia existir. Entre a continuação das instituições citadinas e a subordinação a um poder estrangeiro, havia uma contradição que talvez não apareça claramente aos olhos dos modernos, mas que devia impressionar todos os homens da época. A liberdade municipal e o império de Roma eram coisas inconciliáveis; a primeira não passava de aparência, de uma mentira, um passatempo bom para entreter os homens. Cada uma daquelas cidades enviava, quase todos os anos, uma deputação a Roma, e seus negócios mais íntimos e mais minuciosos eram regulados pelo senado. Elas tinham ainda seus magistrados municipais, arcontes, estrategos, livremente eleitos; mas o arconte não tinha outra atribuição que inscrever seu nome sobre os registros públicos para marcar o ano, e o estratego, outrora chefe do exército e do Estado, apenas cuidava das vias públicas e da inspecção dos mercados(28).

As instituições municipais, portanto, desapareciam tanto entre os povos chamados aliados e como entre os chamados súditos, com a única diferença de que os primeiros conservavam-lhe ainda as formas exteriores. Para dizer a verdade, a cidade, tal como a antiguidade a havia concebido, não se via mais em nenhuma parte, a não ser dentro dos muros de Roma(29).

Além do mais, Roma, destruindo por toda parte o regime da cidade, não o substituía por coisa nenhuma. Os povos, aos quais privava de suas instituições, Roma não dava em troca as instituições romanas. Nem mesmo pensava em criar novas instituições para uso das cidades vencidas. Jamais criou uma constituição para os povos de seu império, e não soube estabelecer regras fixas para governá-los. A própria autoridade que exercia sobre eles nada tinha de regular. Como não faziam parte de seu Estado, de sua cidade, Roma não exercia sobre eles nenhuma ação legal. Para ela seus súditos eram estrangeiros; por isso, com relação a eles, Roma não exercia senão um poder irregular e ilimitado, que o antigo direito municipal conferia ao cidadão com relação ao estrangeiro ou ao inimigo. Foi sobre esse princípio que se baseou por muito tempo a administração romana; eis como ela procedia.

Roma enviava um de seus cidadãos a um país; fazia desse país província desse homem, isto é, seu encargo, seu cuidado e negócio pessoal; este era o sentido da palavra província na linguagem antiga. Ao mesmo tempo, conferia a esse cidadão o imperium; isso significava que Roma desfazia-se em seu favor, por ter determinado, da soberania que tinha sobre o país. Desde então esse cidadão representava em sua pessoa todos os direitos da república, e, por essa razão, tornava-se senhor absoluto do país. Fixava a importância dos impostos, exercia o poder militar, administrava a justiça. Suas relações com os súditos ou aliados não eram reguladas por nenhuma constituição. Quando tomava assento no tribunal julgava de acordo com a própria vontade; nenhuma lei podia ser-lhe imposta, nem a das províncias, porque era romano, nem a de Roma, porque julgava provincianos. Para que houvesse leis entre ele e seus administrados seria necessário que ele próprio as fizesse, porque somente ele tinha autoridade para se obrigar a si mesmo. Assim o imperium de que estava revestido, incluía o poder legislativo. Daí resulta que os governadores tiveram o direito e contraíram o hábito de publicar, ao entrar na província, um código de leis que chamavam de edito, ao qual obrigavam-se moralmente a obedecer. Mas como os governadores eram substituídos todos os anos, esses códigos também mudavam todos os anos, porque a lei não procedia senão da vontade do homem momentaneamente revestido do imperium. Esse princípio era tão rigorosamente aplicado que, quando um julgamento havia sido pronunciado pelo governador, mas não havia sido inteiramente executado no momento de sua partida da província, a chegada do sucessor anulava de pleno direito esse julgamento, e o processo devia ser recomeçado(30).

Tal era a onipotência do governo. O governo era a lei. Quanto a invocar a justiça romana contra suas violências e seus crimes, os provincianos não o podiam fazer senão por intermédio de um cidadão romano que lhes servisse de patrono(31), porque por si próprios eles não tinham o direito de alegar a lei da cidade, nem de apelar para seus tribunais. Eram estrangeiros; a linguagem jurídica e oficial chamava-os de peregrini; tudo o que a lei dizia do hostis continuava a se aplicar a eles.

A situação legal dos habitantes do império aparecia claramente nos escritos dos jurisconsultos romanos. Por aí vemos que os povos são considerados como não tendo mais suas leis próprias, sem que por isso tivessem as leis romanas. Para eles, portanto, o direito não existe de maneira nenhuma. Aos olhos do jurisconsulto romano o provinciano não era nem marido, nem pai, isto é, a lei não lhe reconhecia nem poder marital, nem autoridade paterna. Para ele não existe propriedade; há até dupla impossibilidade para que isso aconteça: impossibilidade causada por sua condição pessoal, porque não é cidadão romano; impossibilidade causada pela condição de sua terra, que não é terra romana, e a lei não admite direito de propriedade completo senão dentro dos limites do ager romanus(32). Por isso os jurisconsultos ensinam que as terras das províncias nunca são propriedade particular, e que os homens só podem ter ali a posse e o usufruto(33). Ora, o que eles dizem, no segundo século de nossa era, do solo das províncias, era igualmente verdade em relação ao solo da Itália antes do dia em que a Itália havia conquistado o direito de cidade romana, como veremos adiante.

Prova-se, portanto, que os povos, à medida que entravam no império romano, perdiam sua religião municipal, seu governo, seu direito privado. Podemos muito bem acreditar que Roma moderasse na prática o que seu domínio tinha de destrutivo. Assim vemos claramente que se a lei romana não reconhecia ao súdito a autoridade paterna, contudo deixava que essa autoridade subsistisse nos costumes. Se não se permitia a tal homem dizer-se proprietário do solo, deixava-se-lhe ainda a posse do mesmo; ele cultivava a terra, vendia-a, legava-a. Nunca se dizia que essa terra fosse sua, mas se dizia que era como sua, pro suo. Não era sua propriedade, dominium, mas fazia parte de seu patrimônio, in bonis(34). Roma imaginava assim em proveito do súdito uma multidão de rodeios e artifícios de linguagem. Certamente o gênio romano, se suas tradições municipais o impediam de fazer leis para os vencidos, não podia contudo suportar que a sociedade fosse dissolvida. Em princípio punham-na fora da lei; de fato viviam como se tivessem uma lei. Mas, salvo isso, e salvo a tolerância do vencedor, deixavam todas as instituições do vencido esquecidas, e faziam desaparecer todas as suas leis. O imperium romanum apresentou, sobretudo sob o regime republicano e senatorial, este singular espetáculo: apenas uma cidade ficava de pé, conservando suas instituições e direito; todo o resto, isto é, oitenta milhões de almas, ou não tinha mais nenhuma espécie de leis, ou, pelo menos, leis que fossem reconhecidas pela cidade soberana. O mundo então não era precisamente um caos; mas a força, a arbitrariedade, a convenção, na falta de leis e de princípios, sustentavam sozinhos a sociedade.

Foi esse o efeito da conquista romana sobre os povos que sucessivamente caíram sob seu domínio. Da cidade nada ficou: em primeiro lugar, a religião, depois o governo, e, enfim, o direito privado; todas as instituições municipais, há muito tempo abaladas, foram enfim desenraizadas e aniquiladas. Mas nenhuma sociedade regular, nenhum sistema de governo substituiu imediatamente o que desaparecia. Houve uma pausa entre o momento em que os homens viram o regime municipal dissolver-se, e aquele em que viram nascer outro modo de sociedade. A nação não sucedeu imediatamente à cidade, porque o imperium romanum não se assemelhava de nenhum modo a uma nação. Era uma multidão confusa, onde não havia verdadeira ordem senão em um ponto central, e onde todo o resto gozava apenas de uma ordem fictícia e transitória, e isso somente a preço de obediência. Os povos vencidos não conseguiram constituir-se em corpo organizado senão conquistando, por sua vez, os direitos e instituições que Roma queria conservar para si; para isso era-lhes necessário entrar na cidade romana, ter nela um lugar, insistir para consegui-lo, transformá-la também, a fim de fazer deles e de Roma um mesmo corpo. Foi um trabalho longo e difícil.

5.° Os povos vencidos entram sucessivamente a fazer parte da cidade romana

Acabamos de ver como a condição de súdito de Roma era deplorável, e como a condição do cidadão devia ser invejada. Não é só a vaidade que sofria; havia interesses mais reais e queridos. Quem não era cidadão romano não era considerado marido ou pai; não podia ser legalmente proprietário ou herdeiro. Tal era o valor do título de cidadão romano, que sem ele ficava-se fora do direito, e com ele passava-se a fazer parte da sociedade regular. Aconteceu, pois, que esse título tornou-se objeto dos mais vivos desejos dos homens. O latino, o italiano, o grego, mais tarde o espanhol e o gaulês desejaram ser cidadãos romanos, único meio de se ter direitos e de valer alguma coisa. Todos, um após outro, quase pela ordem em que haviam entrado para o império romano, trabalharam a fim de entrar na cidade romana, e, o que conseguiram depois de longos esforços.

Essa lenta introdução dos povos no Estado romano é o último ato da longa história da transformação social dos antigos. Para observar esse grande acontecimento em todas as suas fases sucessivas, é necessário observar seu início no quarto século antes de nossa era.

O Lácio havia sido submetido; dos quarenta pequenos povos que o habitavam, Roma havia exterminado a metade, despojando alguns de suas terras, e deixando aos demais o título de aliados. Em 340 se aperceberam de que essa aliança só lhes trazia desvantagens, pois deviam obedecer em tudo, e estavam condenados a prodigar, cada ano, sangue e dinheiro para único proveito de Roma. Essas nações, portanto, se uniram; seu chefe, Ânio, formulou assim suas reclamações no senado de Roma: “Dêem-nos igualdade; que as vossas leis sejam as nossas; que não formemos convosco senão um único Estado, una civitas; que não tenhamos senão um nome, e que todos nos chamem igualmente de romanos(35).” — Ânio formulava assim, desde o ano 340, os votos de todos os povos do império, votos que não deviam ser completamente realizados senão depois de cinco séculos e meio. Então esse pensamento era muito novo, inesperado; os romanos consideraram-no monstruoso, criminoso; era, com efeito, contrário à velha religião e aos velhos direitos das cidades. O cônsul Mânlio respondeu que, se semelhante proposição fosse aceita, ele, cônsul, mataria com suas próprias mãos o primeiro latino que viesse tomar assento no senado; depois, voltando-se para o altar, tomou a divindade por testemunha, dizendo: “Ouviste, Júpiter, as palavras ímpias da boca desse homem. Poderás tolerar, ó deus, que um estrangeiro venha sentar-se em teu templo sagrado, como senador, como cônsul?” — Mânlio exprimiu assim o velho sentimento de repulsa que separava o cidadão do estrangeiro. Ele era o porta-voz da antiga ordem religiosa, que prescrevia que o estrangeiro fosse detestado pelos homens, porque era amaldiçoado pelos deuses da cidade. Parecia-lhe impossível que um latino fosse senador, porque o local de reunião do senado era um templo, e os deuses romanos não podiam suportar em seu santuário a presença de estrangeiros(36).

Veio a guerra; os latinos fizeram a deditio, isto é, entregaram aos romanos suas cidades, seus cultos, suas leis, suas terras. Sua posição era crítica. Um cônsul diz no senado que, se não queriam que Roma ficasse rodeada por imenso deserto, era necessário regular a sorte dos latinos com alguma clemência. Tito Lívio não explica claramente o que se fez; mas parece que deram aos latinos o direito de cidade romana, mas sem compreender na ordem política, o direito de sufrágio, nem na ordem civil o direito de casamento; pode-se notar além disso que esses novos cidadãos não eram contados pelo censo. Vê-se bem que o senado enganava os latinos, dando-lhes o nome de cidadãos romanos; esse título encobria verdadeira sujeição, porque os homens que o levavam tinham obrigações de cidadão sem ter os respectivos direitos. Isso é tão verdade que diversas cidades latinas se revoltaram para que lhes retirassem esse pretenso direito de cidadania.

Cem anos se passaram, e, sem que Tito Lívio nos advirta, reconhecemos que Roma mudou de política. A condição dos latinos, tendo direito de cidade sem sufrágio e sem connubium, não existe mais. Roma tirou-lhes o título de cidadãos, ou antes, fez desaparecer essa mentira, e decidiu-se a dar às diversas cidades seu governo municipal, suas leis, suas magistraturas.

Mas, por um rasgo de grande habilidade, Roma abria uma porta que, por mais estreita que fosse, permitiu-lhes entrar para a sociedade romana, ao conceder que todo latino que tivesse exercido a magistratura em sua cidade natal fosse cidadão romano ao término do mandato(37). Desta vez o dom de direito de cidade era completo e sem reservas: sufrágios, magistraturas, inscrição no censo, casamento, direito privado, tudo nele estava incluído. Roma resignava-se a partilhar com o estrangeiro sua religião, seu governo, suas leis; somente que seus favores eram individuais, e endereçavam-se não a cidades inteiras, mas a alguns homens de algumas delas. Roma não admitia em seu seio senão o que havia de melhor, de mais rico, de mais considerado no Lácio.

Esse direito de cidade tornou-se então precioso, em primeiro lugar porque era completo, e depois porque era um privilégio. Por ele podia-se figurar nos comícios da cidade mais poderosa da Itália; podia-se ser cônsul e comandar legiões. Tinha-se também com que satisfazer às ambições mais modestas; graças a ele podia-se contrair matrimônio com uma família romana; podia-se morar em Roma, e ser nela proprietário; podia-se negociar em Roma, que já se tornava o primeiro lugar no comércio do mundo. Podia-se entrar nas companhias dos publicanos, isto é, participar dos enormes benefícios provenientes do recebimento dos impostos ou da especulação sobre as terras do ager publicus. Onde quer que se morasse, estava-se muito bem protegido; escapava-se à autoridade dos magistrados municipais, ficava-se protegido contra os caprichos dos próprios magistrados romanos. Com ser cidadão de Roma ganhavam-se honras, riqueza, segurança.

Os latinos, portanto, mostraram-se muito interessados em conseguir esse título, e usaram de todos os meios para conquistá-lo. No dia em que Roma quis mostrar-se um pouco severa, descobriu que 12.000 latinos o haviam conseguido por fraude(38).

Ordinariamente Roma fechava os olhos, pensando que desse modo crescia sua população, reparando assim as perdas da guerra. Mas as cidades latinas sofriam; seus cidadãos mais ricos tornavam-se cidadãos romanos, e o Lácio se empobrecia. O imposto, de que os mais ricos estavam isentos, como cidadãos romanos, tornava-se cada vez mais pesado, e o contingente de soldados que deviam fornecer a Roma cada ano tornava-se mais difícil de completar. Quanto maior era o número dos que conseguiam o direito de cidade, mais dura era a condição dos que o não tinham. Tempos houve em que as cidades latinas pediram que esse direito de cidade deixasse de ser privilégio.

As cidades italianas que, submetidas há dois séculos, estavam quase na mesma condição que as cidades latinas, e viam assim seus mais ricos habitantes abandoná-las para se tornarem romanos, reclamaram para si o direito de cidadania. A sorte dos súditos ou dos aliados tornara-se bem menos suportável nessa época, pois a democracia romana agitava então a grande questão das leis agrárias. Ora, o princípio de todas essas leis era que nem o súdito, nem o aliado podia ser proprietário do solo, salvo ato formal da cidade, e que a maior parte das terras italianas pertencia à república; um partido exigia que essas terras, ocupadas quase em sua totalidade por italianos, fossem retomadas pelo Estado, e divididas entre os povos de Roma. Os italianos estavam, portanto, ameaçados de ruína geral; sentiam vivamente a necessidade de ter direitos civis, e não podiam consegui-los senão tornando-se cidadãos romanos.

A guerra que se seguiu chamou-se guerra social; com efeito, eram os aliados de Roma que tomavam armas para deixar de ser aliados, e tornar-se romanos. Roma, vitoriosa, foi todavia forçada a conceder o que lhe pediam, e os italianos receberam o direito de cidadania. Assimilados desde então aos romanos, puderam votar no fórum; na vida privada, eram dirigidos pelas leis romanas; reconheceram-lhes os direitos sobre o solo, e a terra italiana, assim como a terra romana, começou a poder ser propriedade também dos latinos. Estabeleceu-se então o jus italicum, que era o direito, não da pessoa italiana, pois o italiano tornara-se romano, mas do solo itálico, que se tornou suscetível de propriedade como o era o ager romanus(39).

A partir desse tempo a Itália inteira formou um único Estado. Restava ainda fazer entrar na unidade romana as províncias.

Deve-se fazer distinção entre as províncias do Ocidente e a Grécia. A Ocidente estavam a Gália e a Espanha, que, antes da conquista, não haviam conhecido o verdadeiro regime municipal. Roma aplicou-se a criar esse regime entre os povos, seja porque não julgava possível governá-los de outra maneira, seja porque, para assimilá-los pouco a pouco às populações italianas, era necessário fazê-las passar pelo mesmo caminho seguido por essas populações. Por essa razão os imperadores, que suprimiam toda a vida política em Roma, conservavam cuidadosamente as formas da liberdade municipal nas províncias. Assim se formaram cidades na Gália; cada uma delas teve seu senado, seu corpo aristocrático, suas magistraturas eletivas; cada uma teve até seu culto local, seu Genius, sua divindade políada, à imagem do que havia na antiga Grécia e na antiga Itália. Ora, esse regime municipal assim estabelecido, não impedia que os homens conseguissem a cidadania romana, pelo contrário, preparava-os para isso. Uma jerarquia habilmente combinada entre essas cidades marcava os graus pelos quais elas deviam aproximar-se insensivelmente de Roma, para enfim assimilarem-se a ela. Distinguiam-se: 1.° os aliados, que tinham governo e leis próprias; 2.° as colônias, que gozavam do direito civil dos romanos, sem gozar dos direitos políticos; 3.° as cidades de direito itálico, isto é, aquelas a quem o favor de Roma havia concedido o direito de propriedade completa sobre suas terras, como se essas terras estivessem na Itália; 4.° as cidades de direito latino, isto é, aquelas cujos habitantes podiam, segundo uso outrora estabelecido no Lácio, tornar-se cidadãos romanos, depois de haver exercido uma magistratura municipal. Essas distinções eram tão profundas, que entre pessoas de duas categorias diferentes não havia casamento possível nem religião alguma legal. Mas os imperadores cuidaram para que as cidades pudessem levantar-se, com o tempo, gradativamente, da condição de súditas à de aliadas ao direito itálico, e do direito itálico ao direito latino. Quando uma cidade conseguia isso, suas principais famílias tornavam-se romanas uma após outra.

A Grécia entrou assim, pouco a pouco, no Estado romano. Cada cidade conservou primeiramente as formas e o mecanismo do regime municipal. No momento da conquista a Grécia mostrara-se desejosa de conservar sua autonomia; o que lhe foi concedido, talvez por mais tempo do que desejara. Ao cabo de poucas gerações ela quis tornar-se romana; a vaidade, a ambição, o interesse trabalhavam para isso.

Os gregos não sentiam por Roma esse ódio que se sente ordinariamente por um soberano estrangeiro; eles a admiravam, sentiam por ela veneração; espontaneamente devotavam-lhe um culto, levantavam-lhe templos, como a um deus. Cada cidade esquecia-se da própria divindade políada, e adorava em seu lugar à deusa Roma e ao deus César; dedicavam-lhe as mais belas festas e os primeiros magistrados não tinham função mais alta que a de celebrar com grande pompa os jogos augustos(40). Os homens acostumaram-se assim a levantar os olhos acima de suas cidades; viam em Roma a cidade por excelência, a verdadeira pátria, o pritaneu de todos os povos. A cidade em que moravam parecia-lhes pequena; seus interesses não ocupavam mais seus pensamentos; as honras que ela proporcionava não satisfaziam mais às suas ambições. Nada tinha valor se não se era cidadão romano. É verdade que, sob os imperadores, esse título não conferia mais direitos políticos, mas oferecia vantagens mais sólidas, porque o homem que dele se revestia conquistava ao mesmo tempo plenos direitos de propriedade, o direito de contrair matrimônio, a autoridade paterna e todo o direito privado de Roma. As leis que cada um encontrava em sua cidade eram leis variáveis, e sem fundamento, que não tinham senão um valor de tolerância; o romano desprezava-as e o próprio grego dava-lhes pouco valor. Para se ter leis fixas, reconhecidas por todos, e verdadeiramente santas, era necessário ter leis romanas.

Não se pode dizer que toda a Grécia, ou uma de suas cidades tenha formalmente pedido esse direito tão desejado, mas os homens trabalharam individualmente a fim de consegui-lo, e Roma, de muito boa vontade, o concedia. Uns o alcançaram por graça do imperador; outros compraram-no; concederam-no também a quem dava três filhos à sociedade, ou aos que serviam nos corpos do exército; às vezes, para obtê-lo, bastava construir um navio destinado ao comércio, com determinada tonelagem, ou ter levado trigo a Roma. Um meio fácil e pronto para conseguir esse direito era vender-se como escravo a um cidadão romano, porque a libertação nas formas legais levava ao direito de cidadania(41).

O homem que possuía o título de cidadão romano não fazia mais parte, nem civil, nem politicamente, de sua cidade natal. Podia continuar a morar nela, mas era considerado estrangeiro; não estava mais sujeito às leis da cidade, não obedecia mais a seus magistrados, não suportava mais seus impostos(42). Era a conseqüência do antigo princípio que não permitia que um mesmo homem pertencesse ao mesmo tempo a duas cidades(43). Aconteceu, naturalmente, que depois de algumas gerações houve em cada cidade grega tão grande número de homens, ordinariamente os mais ricos, que não reconheciam nem o governo, nem o direito dessa cidade. O regime municipal morreu assim lentamente, e como de morte natural. Dia veio em que a cidade não significava mais nada; as leis locais não se aplicavam a mais ninguém, e os juízes municipais não sabiam mais em quem aplicar as leis.

Enfim, quando oito ou dez gerações andaram suspirando pelo direito de cidadania romana, e tudo o que tinha algum valor o havia conseguido, apareceu um decreto imperial que o concedeu a todos os homens livres, sem distinção,

O que é estranho aqui é que não se pode precisar com certeza nem a data desse decreto, nem o nome do príncipe que o promulgou; atribuem-no, com alguma verossimilhança, a Caracala, isto é, a um príncipe que nunca teve grande visão, e, por isso, só lhe atribuem como simples medida de caráter fiscal. Talvez, na história dos decretos, não se encontre outro mais importante que esse: ele suprimia a distinção que existia desde a conquista romana entre o povo dominador e os povos vencidos; fazia até desaparecer a distinção muito mais antiga, que a religião e o direito haviam traçado entre as cidades. Contudo os historiadores desse tempo não o anotaram, e o conhecemos apenas por dois textos muito vagos dos jurisconsultos, e uma breve indicação de Díon Cássio(44). Se esse decreto não impressionou aos contemporâneos e não foi notado pelos que então escreviam a história, é porque a mudança de que ele era a expressão legal já terminara há muito tempo. A desigualdade entre cidadãos e súditos diminuíra de geração para geração, e aos poucos desaparecera. O decreto pôde passar desapercebido, sob o véu de uma medida fiscal; ele proclamava e fazia passar para o domínio do direito o que já era um fato consumado.

O título de cidadão começou então a cair em desuso, ou, se ainda era empregado, o era para designar a condição de homem livre, oposta à do escravo. A partir desse tempo tudo o que fazia parte do império romano, desde a Espanha até o Eufrates, formava verdadeiramente um só povo, um só Estado. A distinção das cidades havia desaparecido; a das nações não aparecia senão muito vagamente. Todos os habitantes desse imenso império eram igualmente romanos. O gaulês abandonou o nome de gaulês, e tomou apressadamente o de romano; assim fez o espanhol, assim fez o habitante da Trácia e o da Síria. Não havia mais senão um só nome, uma só pátria, um só governo, um só direito.

Por aí vemos como a cidade romana se desenvolveu de idade em idade. A princípio não abrangia senão patrícios e clientes; depois, a classe dos plebeus; depois latinos e italianos; enfim, vieram os da província. A conquista não fora suficiente para operar essa grande mudança. Fazia-se necessária a lenta transformação das idéias, as concessões prudentes, mas não interrompidas dos imperadores, e o interesse e solicitude individuais. Então todas as cidades, pouco a pouco, foram desaparecendo, e a cidade romana, a última a ficar de pé, também se transformou a ponto de se tornar a reunião de uma dúzia de povos grandes sob um único senhor. Assim caiu o regime municipal.

Não cabe a nosso tema dizer por qual sistema de governo esse regime foi substituído, nem procurar saber se essa mudança foi a princípio mais vantajosa que funesta aos diversos povos. Devemos parar no momento em que as velhas formas da sociedade que a antiguidade havia estabelecido desapareceram para sempre.

CAPÍTULO III

O CRISTIANISMO MUDA AS CONDIÇÕES DE GOVERNO

 

A vitória do cristianismo marca o fim da sociedade antiga. Com a nova religião acaba essa transformação social que vimos começar seis ou sete séculos antes.

Para saber como os princípios e as regras essenciais foram então mudadas, basta que nos lembremos de que a antiga sociedade havia sido constituída por uma nova religião, cujo principal dogma era o de que cada deus protegia exclusivamente uma família ou uma cidade, e não existia senão para ela. Essa religião havia gerado o direito: as relações entre os homens, a propriedade, a herança, o processo, tudo foi regulado, não pelos princípios de eqüidade natural, mas pelos dogmas dessa religião em vista das necessidades de seu culto. Fora ela também que havia estabelecido um governo entre os homens: o do pai. na família, o do rei ou do magistrado na cidade. Tudo viera da religião, isto é, da opinião que o homem fazia da divindade. Religião, direito, governo confundiam-se; não eram mais que uma só coisa sob três aspectos diferentes.

Procuramos pôr à luz esse regime social dos antigos, no qual a religião era senhora absoluta na vida particular e na vida pública; onde o Estado era uma comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula santa; onde o patriotismo era a piedade, o exílio uma excomunhão; onde a liberdade individual era desconhecida, onde o homem estava sujeito ao Estado por sua alma, por seu corpo, por seus bens; onde o ódio era obrigatório contra o estrangeiro, onde a noção do direito e do dever, da justiça e do afeto paravam nos limites da cidade; onde a associação humana era necessariamente limitada dentro de certa circunferência ao redor do pritaneu, e onde não se via a possibilidade de fundar sociedades maiores. Tais foram os traços característicos das cidades gregas e italianas durante o primeiro período de sua história.

Mas, pouco a pouco, como vimos, a sociedade se modificou. O direito e o governo se transformaram, ao mesmo tempo que a religião. Já nos cinco séculos que precedem o cristianismo, a aliança não era mais tão íntima entre a religião, de uma parte, e o direito e a política de outra. Os esforços das classes oprimidas, a decadência da casta sacerdotal, o trabalho dos filósofos, o progresso do pensamento haviam abalado os velhos princípios da associação humana. Fizeram-se incessantes esforços para libertar o homem do império da antiga religião, à qual o homem não podia mais crer; o direito e a política, como a moral, haviam-se pouco a pouco desembaraçado de seus laços.

Devemos notar apenas que essa espécie de divórcio provinha do desgaste da antiga religião; se o direito e a política começavam a ser algo independentes, é porque os homens deixavam de crer; se a sociedade não era mais governada pela religião, é porque sobretudo a religião não tinha mais forças. Ora, dia veio em que o sentimento religioso retomou vida e vigor, e em que, sob a forma cristã, a crença reconquistou o império sobre a alma. Não iria, no entanto, reaparecer a antiga confusão do governo e do sacerdócio, da fé e da lei?

Com o cristianismo, não somente o sentimento religioso foi reavivado, mas tomou ainda uma expressão mais alta e menos material. Enquanto outrora se haviam feito deuses da alma humana ou das grandes forças físicas, começou-se então a conceber Deus como verdadeiramente estranho, por sua essência, à natureza humana de uma parte, e ao mundo de outra. O divino foi decididamente colocado fora da natureza visível e acima dela. Enquanto que outrora cada homem fizera seu deus, tendo tantos deuses quantas as famílias e as cidades, Deus apareceu então como ser único, imenso, universal, animando sozinho os mundos, satisfazendo sozinho à necessidade de oração que há no homem. Enquanto outrora a religião, entre os povos da Grécia e da Itália, nada mais era que um conjunto de práticas, uma série de ritos que se repetiam sem ter nenhum sentido, uma seqüência de fórmulas que muitas vezes já não se compreendiam mais, porque a língua envelhecera, uma tradição que se transmitia de idade em idade, e não recebia seu caráter sagrado senão de sua antiguidade, em vez disso a religião foi um conjunto de dogmas e um grande objetivo proposto à fé. A religião deixou de ser exterior, e limitou-se sobretudo ao pensamento humano. Não foi mais material, tornou-se espírito. O cristianismo mudou a natureza e a forma da adoração: o homem não deu mais a Deus alimento e bebida; a oração não foi mais uma fórmula de encantamento; foi um ato de fé e um pedido humilde. A alma manteve outras relações com a divindade; a crença dos deuses foi substituída pelo amor de Deus.

O cristianismo trazia ainda outras novidades. Não era a religião doméstica de uma família, a religião nacional de uma cidade ou de uma raça. Ele não pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o início, chamara a si a humanidade inteira. Jesus Cristo dizia a seus discípulos: “Ide e ensinai a todos os povos.”

Esse princípio era tão extraordinário e tão inesperado que os primeiros discípulos tiveram um momento de hesitação; pode-se ver nos Atos dos Apóstolos que muitos deles se recusaram a princípio a propagar a nova doutrina fora do povo no qual nascera. Seus discípulos pensavam, como os antigos judeus, que o Deus dos judeus não queria ser adorado por estrangeiros; como os romanos e os gregos dos tempos anteriores, eles acreditavam que cada raça tinha seu deus, que propagar o nome e o culto desse deus era o mesmo que privar-se de um bem próprio e de um protetor especial, e que tal propaganda era ao mesmo tempo contrária ao interesse e ao dever. Mas Pedro replicou a seus discípulos: “Deus não faz diferenças entre os gentios e nós.” — São Paulo gostava de repetir esse grande princípio em todas as ocasiões e sob todas as formas: “Deus — diz ele — abre aos gentios as portas da fé. Não será ele Deus senão dos judeus? Não, certamente, pois o é também dos gentios... Os gentios são chamados à mesma herança que os judeus.”

Havia em tudo isso algo de muito novo, porque em toda parte, desde os primeiros tempos da humanidade, concebera-se a divindade como ligada especialmente a uma raça. Os judeus haviam acreditado no Deus dos judeus, os atenienses em Palas ateniense, os romanos em Júpiter Capitolino. O direito de praticar o culto era privilégio. O estrangeiro havia sido rejeitado pelos templos; o que não era judeu não podia entrar no templo dos judeus; o lacedemônio não tivera o direito de invocar Palas ateniense. É justo dizer que nos cinco séculos que precederam o cristianismo todo o homem que pensava já se insurgia contra essas regras muito restritas. A filosofia havia ensinado tantas vezes, desde Anaxágoras, que o Deus do universo recebia indistintamente as homenagens de todos os homens. A religião de Elêusis admitira iniciados de todas as cidades. Os cultos de Cibele, de Serápis, e de alguns outros haviam aceitado indiferentemente adoradores de todas as nações. Os judeus haviam começado a admitir o estrangeiro em sua religião; os gregos e os romanos admitiram-nos em suas cidades. O cristianismo, surgindo depois de todos esses progressos do pensamento e das instituições, apresentou à adoração de todos os homens um Deus único, um Deus universal, um Deus que era de todos, que não tinha mais povo escolhido, e que não distinguia nem raças, nem famílias, nem estados.

Para esse Deus não havia mais estrangeiros. O estrangeiro não profanava mais o templo, não maculava mais o sacrifício apenas com sua presença. O templo foi aberto para todos os que crêem em Deus. O sacerdócio deixou de ser hereditário, porque a religião não era mais um patrimônio. O culto não foi mais mantido em segredo; os ritos, as orações, os dogmas não se mantiveram mais escondidos; pelo contrário, passou a existir um ensinamento religioso, que não somente se dá, mas que se oferece, que se leva aos lugares mais afastados, que vai em busca dos mais indiferentes. O espírito de propaganda substituiu a lei de exclusão.

Isso teve grandes conseqüências, tanto para as relações entre os povos como para o governo dos Estados.

Entre os povos, a religião não mandava mais o ódio; não obrigou mais o cidadão a detestar o estrangeiro; pelo contrário, pertencia à sua essência ensinar que ele tinha para com o estrangeiro, para com o inimigo, deveres de justiça, e até de benevolência. As barreiras entre os povos e as raças ficaram assim diminuídas; desapareceu o pomoerium — “Jesus Cristo — diz o apóstolo — derrubou a muralha da separação e da inimizade.” — “Os membros são muitos — diz ele ainda — mas todos fazem um só corpo. Não há nem gentio, nem judeu; nem circuncidados, nem incircuncisos; nem bárbaro, nem cita. Todo o gênero humano está disposto na unidade.” — Passou-se até a ensinar aos povos que todos descendiam de um mesmo pai comum. Com a unidade de Deus, a unidade da raça humana apareceu aos espíritos; e desde então passou a ser necessidade da religião proibir o homem de odiar os outros homens.

Quanto ao governo do Estado, pode-se dizer que o cristianismo transformou-o em sua essência, precisamente porque não cuidou disso. Nas velhas idades, religião e Estado eram uma só coisa; cada povo adorava a seu Deus, e cada deus governava o seu povo; o mesmo código regulava as relações entre os homens e os deveres para com os deuses da cidade. A religião dominava o Estado, e indicava-lhe os chefes pela voz da sorte ou dos auspícios; o Estado, por sua vez, intervinha no domínio da consciência, e punia toda infração aos ritos e ao culto da cidade. Em lugar disso Jesus Cristo ensina que seu império não é deste mundo. Separa a religião do governo. Como a religião não é mais terrestre, imiscui-se nas coisas da terra o menos possível. Jesus Cristo acrescenta: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” — É a primeira vez que se distingue tão nitidamente Deus do Estado. Porque César, nessa época era ainda o sumo pontífice, o chefe e órgão principal da religião romana; era o guarda e o intérprete das crenças; mantinha em suas mãos o culto e o dogma. Sua pessoa era sagrada e divina; porque constituía precisamente uma das características da política dos imperadores, desejosos de reconquistar os atributos da antiga realeza, não esquecer esse caráter divino que a antiguidade atribuíra aos reis-pontífices e aos sacerdotes-fundadores. Mas eis que Jesus Cristo quebra essa aliança que o paganismo e o império queriam renovar, proclamando que a religião não é mais o Estado, e que obedecer a César não é o mesmo que obedecer a Deus.

O cristianismo acaba com os cultos locais, extingue os pritaneus, destrói definitivamente as divindades políadas. Faz mais ainda: não toma para si o império que esses cultos haviam exercido sobre a sociedade civil. Professa, que religião e Estado nada têm em comum; separa o que toda a antiguidade havia confundido. Podemos aliás notar que durante três séculos a nova religião viveu completamente fora da ação do Estado; soube passar sem sua proteção, e até lutou contra ele. Esses três séculos estabeleceram um abismo entre o domínio do governo e o domínio da religião. E como a lembrança dessa época gloriosa não podia ser esquecida, aconteceu que essa distinção tornou-se verdade vulgar e incontestável, que os esforços de uma parte do clero não foi capaz de desarraigar.

Esse princípio foi fecundo em grandes resultados. De uma parte, a política viu-se definitivamente livre das regras acanhadas que a antiga religião lhe havia traçado. Os homens puderam ser governados sem ter que se sujeitar a costumes sagrados, sem pedir a opinião dos auspícios e dos oráculos, sem conformar todos os atos às crenças e necessidades do culto. A política foi mais livre em seus métodos; nenhuma outra autoridade, com exceção da lei moral, a constrangia. Por outra parte, se o Estado dominou mais em certas coisas, sua ação também foi mais limitada. Toda uma metade do homem lhe escapava. O cristianismo ensinava que o homem não pertencia mais à sociedade senão em parte, que não está ligado a ela senão por seu corpo e por seus interesses materiais; que, sujeito a um tirano, deve submeter-se; que, cidadão de uma república, deve dar sua vida por ela; mas que, quanto à alma, o homem é livre, e não tem obrigações senão para com Deus.

O estoicismo já havia marcado essa separação, restituindo o homem a si mesmo, e criando a liberdade interior. Mas, do que não era nada mais que o esforço da energia de uma seita corajosa, o cristianismo fez a regra universal e inabalável das gerações seguintes; do que não era senão consolo de alguns, fez o bem comum da humanidade.

Se nos lembrarmos agora do que ficou dito acima sobre a onipotência do Estado entre os antigos, se pensarmos a qual ponto a cidade, em nome de seu caráter sagrado, e da religião que lhe era inerente, exercia império absoluto, veremos que esse princípio novo foi a fonte de onde brotou a liberdade do indivíduo. Uma vez que a alma se sentiu livre, o mais difícil estava feito, e a liberdade tornou-se possível na ordem social.

Os sentimentos e os costumes então se transformaram, assim como a política. A idéia que se fazia acerca dos deveres do cidadão se enfraquecera. O dever por excelência não consistia mais em dar o tempo, as forças e a vida ao Estado. A política e a guerra já não são tudo para o homem; todas as virtudes não estão mais compreendidas no patriotismo, porque a alma não tinha mais pátria. O homem sentiu que tinha outras obrigações além das de viver e morrer pela cidade. O cristianismo distinguiu as virtudes particulares das virtudes públicas. Diminuindo estas, elevou aquelas; colocando Deus, a família, a pessoa humana acima da pátria, e o próximo abaixo do concidadão.

Também o direito mudou de natureza. Em todas as nações antigas o direito estava sujeito à religião, recebendo dela todas as suas regras. Entre os persas e os hindus, entre os judeus, entre os gregos, os italianos e os gauleses, a lei estava contida nos livros sagrados ou na tradição religiosa. Por isso cada religião criara o direito à sua imagem. O cristianismo é a primeira religião que não pretendeu que o direito derivasse dela, ocupando-se dos deveres dos homens, e não de suas relações de interesse. O cristianismo não regulou nem o direito de propriedade, nem a ordem das sucessões, nem as obrigações, nem os processos. Colocou-se fora do direito, como fora de tudo o que fosse puramente terrestre. O direito, portanto, tornou-se independente; pôde procurar suas regras na natureza, na consciência humana, na idéia poderosa de justiça que está em nós. Pôde desenvolver-se com toda a liberdade, reformar-se, melhorar-se sem nenhum obstáculo, seguir o progresso da moral, dobrar-se aos interesses e necessidades sociais de cada geração.

A feliz influência da nova idéia é bem visível na história do direito romano. Durante os poucos séculos que precederam o triunfo do cristianismo, o direito romano já procurava libertar-se da religião, e aproximar-se da eqüidade e da natureza; mas procedia apenas por sutilezas e artifícios, que enervavam e enfraqueciam sua autoridade moral. A obra de regeneração do direito, anunciada pela filosofia estóica, continuada pelos nobres esforços dos jurisconsultos romanos, esboçadas pelos artifícios e sutilezas do pretor, não pôde obter êxito completo senão com a ajuda da independência que a nova religião dava ao direito. Podemos ver, à medida que o cristianismo conquistava a sociedade, os códigos romanos admitirem novas regras, não mais por subterfúgios, mas abertamente, e sem hesitação. Destruídos os penates domésticos, extintos os fogos sagrados, a antiga constituição da família desapareceu para sempre, e com ela as regras que dela derivavam. O pai perdeu a autoridade absoluta que seu sacerdócio lhe outorgara outrora, conservando apenas as que a natureza lhe confere para as necessidades da criança. A mulher, que o velho culto colocava em posição inferior ao marido, tornou-se moralmente sua igual. O direito de propriedade foi mudado em sua essência; os limites sagrados dos campos desapareceram; a propriedade não derivou mais da religião, mas do trabalho; a aquisição tornou-se mais fácil, e as formalidades do antigo direito foram definitivamente esquecidas.

Assim, apenas porque a família não possuía mais sua religião doméstica, sua constituição e seu direito foram modificados, do mesmo modo que, só porque o Estado não tinha mais sua religião oficial, as regras do governo dos homens foram modificadas para sempre.

Nosso estudo deve parar nesse limite que separa a política antiga da política moderna. Contamos a história de uma crença. Essa crença se estabelece, e a sociedade humana se constitui. Ela se modifica, e a sociedade humana atravessa uma série de revoluções. Ela desaparece, e a sociedade humana muda de aspecto. Esta foi a lei dos tempos antigos.

FIM


Notas

Livro I - Cap. I

(1) Sub terra censebant reliquam vitam agi mortuorum. Cícero, Tusc., I, 16. Essa crença era tão forte, acrescenta Cícero, que mesmo quando se estabeleceu o costume de queimar os corpos, continuou-se a acreditar que os mortos viviam debaixo da terra. — Cf. Eurípides, Alceste, 163; Hécuba, passim.

(2) Virgílio, En. III, 67; Ovídio, Fast, V, 451; Plínio, Ep.. VII, 27. — A descrição de Virgílio refere-se ao uso dos cenotáfios; admitia-se que quando não se podia encontrar o corpo de um parente, se realizasse uma cerimônia que reproduzisse exatamente todos os ritos da sepultura, acreditando-se com isso encerrar a alma do morto no túmulo, mesmo na falta do corpo. Eurípides, Helena, 1061, 1240. Escoliastes ad Píndar., IV, 234. Virgílio, VI, 505; XII, 214.

(3) Ilíada, XXIII, 221. Eurípides, Alceste, 479. Pausânias, II, 7, 2. Catulo, C. 10. Sérvio, ad Aeneid., II, 640; III, 68; XI, 97. Ovídio, Fast., IV, 852; Metam., X, 62. Juvenal, VII, 207. Marcial, I, 89; V, 35; IX, 30.

(4) Eurípides, Alceste, 637, 638; Orestes, 1416-1418. Virgílio, En., VI, 221; XI. 191-196. O antigo costume de oferecer dádivas aos mortos é atestado, quanto a Atenas, por Tucídides, II, 34. A lei de Sólon proibia enterrar mais de três vestidos com o morto (Plutarco, Sólon, 21). Luciano fala ainda deste costume: “Quantos vestidos e adornos não são enterrados com os mortos, como se eles fossem usá-los debaixo da terra!” — Ainda nos funerais de César, em época de grande superstição, observou-se o antigo costume, levando-se à fogueira os munera, roupas, armas, jóias (Suetônio, César, 34); Cf. Tácito, Ann., III, 3.

(5) Eurípides, Ifigênia em Táurida, 163. Virgílio, En., V, 76-80; VI, 225.

(6) Ilíada, XXI, 27-28; XXIII, 165-176. Virgílio, En., X, 519-20; XI, 80-84; 197. — Idêntico costume existia na Gália, César. B. G., V, 17.

(7) Eurípides, Hécuba, 40-41; 107-113; 637-638.

(8) Píndaro, Pitiq., IV, 284, ed. Heyne; ver o Escoliastes.

(9) Cícero, Tusculunas, I, 16. Eurípides. Tróia, 1085. Heródoto, V, 92. Virgílio, VI, 371, 379. Horácio, Odes, I, 23. Ovídio, Fast., V, 483. Plínio, Epist. VII, 27. Suetônio, Calíg., 59. Sérvio, ad. Aen., III, 63.

(10) Ilíada, XXII, 358; Odisséia, XI. 73.

(11) Plauto, Mostellaria, III, 2.

(12) Suetônio, Calígula, 59.

(13) Vide, na Ilíada, XXII, 338-344, Heitor pedindo ao vencedor que não o deixe insepulto: “Rogo-te por teus joelhos, por tua vida, por teus pais, não dês meu corpo aos cães junto aos navios dos gregos; aceita o ouro que meu pai te há de oferecer em abundância, e manda-lhe meu corpo, a fim de que troianos e troianas me prestem as honras devidas na fogueira.” — No mesmo sentido, em Sófocles, Antígone enfrenta a morte “para que seu irmão não fique insepulto” (Sóf., Antígone, 467). — O mesmo sentimento é expresso por Virgílio, IX, 213; Horácio, Odes, 1, 18, v. 24-36; Ovídio, Heróides, X, 119-123; Tristes, III, 3, 45. — Igualmente, nas maldições, o que se podia desejar de mais horrível para um inimigo era morrer e ficar insepulto (Virgílio, Eneida, IV, 620).

(14) Xenofonte, Helênicas, I, 7.

(15) Ésquilo, Os sete contra Tebas, 1013. Sófocles, Antígone, 198. Eurípides, Fen., 1627-1632. — Cf. Lísias, Epitáf., 7-9. Todas as cidades antigas acrescentavam ao suplício dos grandes criminosos a privação da sepultura.

(16) Isso em latim chama-se inferias ferre, parentare, ferre solemnia. — Cícero, De legibus, II, 21. Lucrécio, III, 52. Virgílio, Eneida, VI, 380; IX, 214. Ovid., Amor., I, 13, 3. — Essas dádivas, às quais os mortos tinham direito, chamavam-se Manium jura. — Cf. Cícero, De legib., II, 21. Cícero aludia a isso em Pro Flacco, 38, e na primeira Filípica, 6. — Esses costumes eram ainda observados nos tempos de Tácito (Hist., II, 95); Tertuliano ataca-os como se estivessem ainda em pleno vigor em seu tempo (De ressurr. carnis, I; De testim. animae, 4),

(17) Virgílio. En.. III, 301-303; V. 77-81. Ovídio, Fast., II, 535-542.

(18) Eurípídes, Ifigênia em Táurida, 157-163.

(19) Eurípides, Hécuba, 536; Electra, 505 e seguintes.

(20) Ésquilo, Coéforas, 162.

(21) Ésquilo, Coéforas, 432-484. — Nos Persas, Ésquilo atribui a Atossa as idéias dos gregos: “Trago a meu esposo estes manjares, para satisfação dos mortos: leite, mel dourado e o fruto da vinha; chamemos a alma de Dario, e derramemos estas bebidas, que a terra há de tragar, e que penetrarão até os deuses lá debaixo.” (Persas, 610- 620). — Quando as vítimas eram oferecidas às divindades do céu, a carne era comida pelos ofertantes; mas quando eram oferecidas aos mortos, a carne era queimada por completo (Pausânias, II, 10).

(22) Luciano, Caron, 22. Ovídio, Fastos, II, 566.

(23) Luciano, Caron, 22: “Cavam valas junto aos túmulos e ali cozinham alimentos para os mortos.”

(24) Festo, v. Culina.

(25) Plutarco, Aristides, 21.

(26) Luciano, De luctu,9.

Livro I - Cap. II

(1) Plutarco, Sólon, 21.

(2) Aristóteles, citado por Plutarco, Quest. rom., 52; grecq., 5. Ésquilo, Coéf., 475.

(3) Eurípides, Fenic., 1321. Odisséia., X, 526. Ésquilo, Coéf., 475: “Ó bem-aventurados, que habitais debaixo da terra, ouvi minha invocação; vinde em socorro de vossos filhos, e dai-lhes a vitória.” — É em virtude dessa idéia que Virgílio chama ao pai morto de Sancte parens, divinus parens: Virg., En., V, 30; V, 47. Plutarco, Quest. rom., 14. Cornélio Nepos, Fragm., XII.

(4) Cícero, De legibus, II, 22.

(5) Santo Agostinho, Cidade de Deus, VIII, 26, IX, 11.

(6) Eurípides, Alceste, 1015.

(7) Cícero, De leg., II, 9. — Varrão, em Santo Agostinho, Cidade de Deus, VIII, 26.

(8) Virgílio, En., IV, 34.

(9) Eurípides, Troianas, 96; Electra, 505-510. Virgílio, En.. VI, 177; III, 63, 305; V. 48. — O gramático Nônio Marcelo diz que os antigos chamavam ao sepulcro de templo; e, com efeito, Virgílio emprega o vocábulo templum para designar o túmulo ou cenotáfio que Dido constrói para seu esposo (Eneida, IV, 457). — Plutarco, Quest. rom., 14. Continua a chamar-se ara a pedra levantada sobre o túmulo (Suetônio, Nero, 50). — Essa palavra é usada nas inscrições fúnebres; Orelli, n.°s 4521, 4522, 4826.

(10) Varrão, De lingua lat., V, 74.

(11) Leis de Manu, I, 95; III, 82, 122, 127, 146, 189, 274.

(12) Esse culto tributado aos mortos exprimia-se em grego pelas palavras enaghízo, enaghismós. Pólux, VIII, 91; Heródoto, I, 167, Aristides, 21; Catão, 15; Pausânias, IX, 13, 3. A palavra enaghízo empregava-se para os sacrifícios oferecidos aos mortos; thyo, para os que se ofereciam aos deuses do céu; essa diferença é bem acentuada por Pausânias, II, 10, 1, e pelo escoliastes de Eurípides, Feníc., 281. Cf. Plutarco, Quest. rom., 34.

(13) Vide em Heródoto, I, 167, a história das almas dos fócios, que assustaram a toda uma região, até que lhes celebraram o aniversário da morte, e vários heróis semelhantes em Heródoto e Pausânias, VI, 6, 7. Do mesmo modo, em Ésquilo, Clitemnestra, advertida de que os manes de Agamenon estão irritados contra ela, apressa-se em mandar alimentos a seu túmulo. Vide também a lenda romana narrada por Ovídio, Fastos, II, 549-556: “Esqueceram-se, um dia, do dever das parentalia, e as almas saíram dos túmulos, e viram-nas correr, gritando pelas ruas da cidade e pelos campos do Lácio, até que ofereceram sacrifícios em seus túmulos.” — Cf. a história que nos conta ainda Plínio, o Jovem, VII, 27.

(14) Ovídio, Fast., II, 518. Virgílio, En., VI 379. — Comparar com o grego hiláskomai (Pausânias, VI, 6, 8). — Tito Lívio, 1, 20.

(15) Eurípides, Alceste, 1004 (1016). — “Acredita-se que, se não dermos nenhuma atenção a esses mortos, e negligenciarmos seu culto, eles nos castigam, e que, pelo contrário, nos protegem se os tornarmos propícios mediante nossas ofertas.” — Porfírio, De abstin., II, 37. Vide Horácio, Odes, II, 23; Platão, Leis, IX, p. 926-927.

(16) Ésquilo, Coéforas, 122-145.

(17) É possível que o sentido primitivo de héros tenha sido o de homem morto. A linguagem das inscrições, que é a do vulgo, e que é ao mesmo tempo a em que o antigo sentido das palavras se conserva por mais tempo, usa às vezes héros com o mesmo significado de defunto, Boeckh, Corp. ínscr., n.°s 1629, 1723, 1781, 1782, 1784, 1786, 1789, 3398; F. Lebas, Monum. de Moréia, p. 205. Vide Teógnis, ed. Welcker, v. 513, e Pausânias, VI, 6, 9. — Os tebanos usavam uma antiga expressão para significar morrer: héroa ghénes-thai (Aristóteles, Fragmentos, ed. Heitz, t. IV, p. 260; Cf. Plutarco, Proverb. quibus Alex. usi sunt. c. 47). — Os gregos também davam à alma do morto o nome de dáimon. — Eurípides, Alceste, 1140 e Escoliastes. Ésquilo, Persas, 620. Pausânias, VI, 6.

(18) Tito Lívio, III, 58. Virgílio, VI, 119; X, 534; III, 303. Orelli, n.°s 4440, 4441, 4447, 4459, etc. Tito Lívio, III, 19.

(19) Apuléio, De deo Socratis. Sérvio, ad Aeneid., III, 63.

(20) Censorinus, De die natali, 3.

(21) Cícero, Timeu, 11. — Dionísio de Halicarnasso traduz lar familiaris por Kat’ okían héros (Antiq. rom., IV, 2).

Livro I - Cap. III

(1) Os gregos chamavam a esse altar de nomes diversos: bõmos, eschára, hestía; esse último acabou por prevalecer no uso, e foi a palavra pela qual passaram a designar a deusa Vesta. Os latinos chamavam o mesmo altar de vesta, ara ou focus. Nonius Marcellus, ed. Quicherat, p. 53.

(2) Hinos homér., XXIX. Hinos órfic., LXXXIV. Hesíodo, Opera, 679. Ésquilo, Agam., 1056. Eurípides, Hercul. fur., 503, 599. Tucídides, I, 136. Aristófanes, Plut., 795. Catão, De re rust., 143. Cícero, Pro domo, 40. Tibulo, I, 1, 4. Horácio, Épod., II, 43. Ovídio, A. A., I, 637. Virgílio, En., II, 512.

(3) Virgílio, VII, 71. Festo, v. Felicis. Plutarco. Numa, 9.

(4) Eurípides, Herc. fur., 715. Catão, De re rust., 143. Ovídio, Fast., III, 698.

(5) Macróbio, Saturn., I, 12.

(6) Plutarco, Numa, 9; Festo, ed. Müller, p. 106.

(7) Ovídio, A. A., I, 637. Plauto, Captiv., II, 39-40. Mercator V, 1, 5. Tibulo, I, 3, 34. Horácio, Odes, II, 23, 1-4, Catão, De re rust., 143. Plauto, Aululária, prólogo.

(8) Hinos órfic., 84.

(9) Virgílio, En., II, 523. Horácio, Epit., I, 5. Ovídío, Trist., IV, 8, 22.

(10) Eurípides, Alceste, 162-168.

(11) Plauto, Aululárla, prólogo.

(12) Eustato, in Odyss., p. 1756 e 1756 e 1814. O Zeus a quem se refere muitas vezes é um deus doméstico, o lar.

(13) Iseu, De Cironis hered., 16.

(14) Ésquilo, Agam., 851-853.

(15) Catão, De re rust., 2. Eurípides, Hercul. fur., 523.

(16) Virgílio, En., I. 704.

(17) Virgílio, Geórg., IV, 383-385.

(18) Ovídío, Fast., VI, 315.

(19) Plutarco, Quest. rom. 64; id., Simposíaca, VII, 4, 7; Id., ibid., VII, 4, 4. Ovídio, Fastos, VI, 300; VI, 630; II, 634. Cf. Plauto, Aululária, II, 7, 16; Horácio, Odes, III, 23; Sát., II, 3, 166; Juvenal, XII, 87-90; Plutarco, De fort. Rom., 10. — Compare-se com o Hino Homérico XXIX, 8. Plutarco, Fragmentos, Com. sobre Hesíodo, 44. Sérvio, na Eneida, I, 730.

(20) Horácio, Sat., II, 6, 66. Ovídio, Fastos, II, 631-683. — Juvenal, XII, 83-90. Petrônío, Sátir., c. 60.

(21) Idêntica prescrição na religião romana: Varrão, em Nônio, p. 479, ed. Quicherat, p. 557.

(22) Porfírio, De abstin., II, p. 106; Plutarco, De frigido, 8.

(23) Hinos hom., 29; Ibid., 3, v. 33. Platão, Cratila, 18. Hesíquio, Diodoro, VI, 2. Aristófanes, Aves, 865.

(24) Pausânias, V, 14.

(25) Cícero, De nat. deor., II, 27. Ovídio, Fast., VI, 304.

(26) Ovídio, Fast., VI, 291.

(27) Hesíodo, Opera, 678-680. Plutarco, Com. sobre Hesíodo., frag. 48.

(28) Tibulo, II, 2. Horácio, Odes, IV, 11, 6. Ovídio, Trlst., III, 13: V. 5. Os gregos davam a seus deuses domésticos ou heróis o epíteto de ephéstioi ou estiúchoi.

(29) Plauto, Aulul., II, 7, 16. Columela, XI, 1, 19. Cícero, Pro domo, 41; Pro Quintio, 27, 28.

(30) Sérvio, In Aen., III, 134.

(31) Virgílio, En., II, 297; IX, 257-258; V, 744.

(32) Eurípides, Oreste, 1420-1422.

(33) Sérvio, In Aen., V. 64; VI, 152. Vide Platão, Mlnos, p. 315.

Livro I - Cap. IV

(1) A lei de Sólon proibia que se acompanhasse chorando o enterro de pessoa que não fosse parente (Plutarco, Sólon, 21). Igualmente não autorizava às mulheres acompanhar o morto senão até o grau de primas (Demóstenes, In Macartatum, 62-63). Cf. Cícero, De legibus, II, 26, Varrão L. L., VI, 13, Gaio. II, 5, 6.

(2) Lei de Sólon, em Plutarco, Sólon, 21. Cícero, De legib., II, 26.

(3) Pólux, III, 10.

(4) Assim lemos em Iseu, De Meneclis hered., 46: “Se Menecles não tem filhos, os sacrifícios domésticos não serão celebrados em sua honra, e ninguém levará a oferta anual a seu túmulo.” — Outras passagens do mesmo orador mostram que é sempre o filho que deve levar as bebidas ao túmulo: De Apollod. hered., 30.

(5) Pelo menos no princípio, porque depois também as cidades tiveram seus heróis tópicos e nacionais, como veremos adiante. Veremos também que a adoção criava um parentesco factício, e dava o direito de honrar uma série de antepassados.

(6) Luciano, De luctu.

(7) Leis de Manu, III, 138; III, 274.

(8) É o que a língua grega chama de noiéin tá nomizómena (Ésquines, in Timarch., 40; Dinarca, In Aristog., 18). Cf. Plutarco, Catão, 15. Note-se como Dinarca repreende Aristógiton por não oferecer o sacrifício anual a seu pai, morto em Eretréia. Dinarca, In Aristog., 18.

(9) O antigo uso dos túmulos de família é atestado da maneira mais formal: Demóstenes, In Eubulidem, 28. — A lei de Sólon proibia enterrar nos túmulos de família pessoas estranhas (Cíc., De leg., II, 26). Demóstenes, In Macartatum, 79, descreve o túmulo onde repousam todos os que descendem de Buselos; chama-se o monumento dos busélidas; é um grande recinto fechado, de acordo com antiga regra. — O túmulo dos laquíadas é mencionado por Marcelino, biógrafo de Tucídides, e por Plutarco, Címon, 4. — Há uma antiga anedota que prova quanto se considerava necessário que cada morto fosse enterrado no túmulo de família; conta-se que os lacedemônios, prestes a combaterem contra os messênios, ataram no braço direito marcas particulares, contendo o nome de cada um, e o do pai, a fim de que, em caso de morte, o corpo pudesse ser reconhecido e transportado para o túmulo paterno; essa característica dos costumes antigos nos foi conservada por Justino, III, 5. Ésquilo alude ao mesmo costume quando diz, falando de guerreiros que vão morrer, que eles serão transportados para o túmulo dos pais (Sete contra Tebas, v. 914). — Os romanos também tinham túmulos de família. Cícero, De offic., I, 17. Como na Grécia, era proibido enterrar estranhos no túmulo de família; Cícero, De legib., II, 22. Vide Ovídio, Tristes, IV, 3, 45; Veléio, II, 119; Suetônio, Nero, 50; Tibério, 1; Cícero, Tuscul., I, 7; Digesto, XI, 7; XLVII, 12, 5.

(10) Eurípides, Helena, 1163-1168.

(11) Entre os etruscos e os romanos havia o costume de cada família religiosa guardar imagens dos antepassados agrupadas em torno do átrio. Seriam essas imagens simples retratos de família, ou ídolos?

(12) Do mesmo modo, nos Vedas, Agni é ainda invocado como deus doméstico.

(13) Iseu, De Cironis haereditate, 15-18.

(14) Esse recinto chamava-se hérkos.

(15) Cícero, De nat. Deor., II, 27. Sérvio, in Aen., III, 12.

(16) Cícero, De arusp. resp., 17.

(17) Varrão, De ling. lat., VII, 88.

(18) Hesíodo, Opera, 701. Macróbio, Sat., I, 16. Cíc., De legib., II, 11.

(19) Rig-Veda, tr. Langlois, t. I, p. 113. As leis de Manu mencionam freqüentemente os ritos particulares de cada família: VIII, 3; IX, 7.

(20) Sófocles, Antíg., 199; Ibid., 659. Confrontar com Aristófanes, Vespas, 388; Ésquilo, Pers., 404; Sófocles, Electra, 411; Platão, Leis, V, p. 729; Di generis, Ovídio, Fast, II, 631.

(21) Os Vedas chamam de fogo sagrado a causa da posteridade masculina. Vide o Mitakchara, trad. Orianne, p. 139.

Livro II - Cap. I

(1) É evidente que aqui falamos do direito mais antigo. Veremos mais adiante que essas velhas leis foram modificadas.

(2) Heródoto, V. 73; I, 176. Plutarco, Rômulo, 9.

Livro II - Cap. II

(1) Dicearca, citado por Estêvão de Bizâncio.

(2) Tyein ghámon, sacrum nuptiale.

(3) Pólux, III, 3, 38.

(4) Pólux. III. 38,

(5) Heródoto, VI, 130. Iseu, De Philoctem, hered., 14. Demóstenes dá algumas palavras da fórmula, In Stephanum, II, 18. Essa parte do casamento chamava-se écdosis, traditio, Pólux, III, 35. Demóstenes, Pro Phormione, 32.

(6) Pólux, III, 41.

(7) Plutarco, Quest. grecq., 27.

(8) Plutarco, Quest. rom. 29. Photius, Lex., p. 52.

(9) Ilíada, XVIII, 492. Hesíodo, Scutum, 275. Eurípides, Ifig. in Aulis, 732; Fenícias, 344, Helena, 722-725. Pólux, III, 41. Luciano, Aétion, 5.

(10) Ilíada, XVIII, 495. Hesíodo, Scutum, 280. Aristófanes, Aves, 1720; Pag. 1332. Pólux, III, 37; IV, 80. Photius Blblioth., c. 230.

(11) Plutarco, Licurgo, 15. Dionísio de Halicarnasso, II, 30.

(12) Ignem undamque jugalem (Valer. Flaccus, Argonaut., VIII, 245).

(13) Plutarco, Sólon, 20; Praec. conjug., I. Idêntico costume entre os macedônios: Quinto Cúrcio, VIII, 16.

(14) Platão, Leis, VIII, p. 841. Plutarco, Teseu, 10; Amatorius, 4.

(15) Sobre as formas singulares da traditio e da sponsio em direito romano, vide o texto curioso de Sérvio Sulpício, em Aulo Gélio, IV, 4 — C. Plauto, Aululária, II, 2, 41-49; II, 3, 4; Trinummus, V, 4. Cícero, ad Atticum, I, 3.

(16) Ovídio, Fastos, II, 558-561.

(17). Plutarco, Romulus, 15.

(18) Varrão, De líng. Lat., V, 61. Plutarco, Quest. rom., 1. Sérvio, ad Aeneida, IV, 167.

(19) Plutarco. Quest. rom., 29; Romulus, 15. Macróbio, Saturn., I, 15. Festo, v. rapi.

(20) Plínio, Hist. Nat., XVIII, 3, 10. Dionísio de Halicarnasso, II, 25. Tácito, Ann., IV, 16; XI, 26-27. Juvenal, X, 329-336. Sérvio, ad. Aen., IV, 103; ad Georg., I, 31. Gaio, I, 110-112. Ulpiano, IX, Digesto, XXIII, 2, 1. — Também entre os etruscos o casamento era celebrado com um sacrifício (Varrão, De re rust., II, 4). — Idênticos costumes entre os antigos hindus (Leis de Manu, III, 27-30, 172; VIII. 227; IX, 194. Mitakchara, trad. Orianne, p. 166, 167, 236).

(21) Falaremos mais adiante de outras formas de casamento que foram usadas entre os romanos, e nas quais não intervém a religião. Por agora basta dizer que o casamento sagrado nos parece o mais antigo, porque corresponde às mais antigas crenças, e não desapareceu senão depois que estas se enfraqueceram.

(22) Digesto, XXIII, 2. Código de Just., IX, 32, 4. Dionísio de Halic., n, 25.

(23) Pelo menos a princípio. Dionísio de Halicarnasso, II, 25, diz expressamente que nada podia dissolver tal casamento. — A faculdade do divórcio parece ter-se introduzido muito cedo no direito ático.

(24) Festo, v. Diffarreatio. Pólux, III, c. 3. Lê-se em uma inscrição: Sacerdos confarreationum et diffarreationum. Orelli, n.° 2648.

(25) Plutarco, Quest. rom., 50.

Livro II - Cap. III

(1) Bhagavad-Gita, I, 40.

(2) Iseu, De Apollod. hered., 30; Demóstenes, In Macart., 75.

(3) Cícero, De legib., II. 19. Dionísio, IX, 22.

(4) Iseu, VII, De Apollod. her., 30. Cf. Estobeu, Serm. LXVII, 25

(5) Dionísio de Halicarnasso, IX, 22.

(6) Cícero, De legibus, III, 2.

(7) Plutarco, Lycurg., 15; Apoteg. dos Lacedemônios; Cf. Vida de Lisandro, 30.

(8) Pólux, III, 48.

(9) Iseu, VI, De Philoct. her., 47. Demóstenes, In Macartatum, 51

(10) Menandro, Fragm. 185. Demóstenes, In Neaeram, 122. Luciano, Timon, 17. Ésquilo, Agamemnon, 1207. Alcifron, I, 16.

(11) Leis de Manu, IX, 81.

(12) Heródoto, V, 39; VI, 61.

(13) Aulo Gélio, IV, 3. Valério Máximo, II, 1, 4. Dionísio, II, 25.

(14) Plutarco, Sólon, 20. — É assim que devemos compreender o que Xenofonte e Plutarco dizem de Esparta; Xen., Resp. Laced. I; Plutarco, Licurgo, 15. — Cf. Leis de Manu, IX, 121.

(15) Leis de Manu, IX, 69, 146. O mesmo acontecia entre os hebreus, Deuteronômio, 25.

(16) Ésquilo, Coéf., 264 (262). — Também em Eurípídes (Fenic., 16). Laio pede a Apolo que lhe dê filhos varões.

(17) Aristófanes, Aves, 922. Demóstenes, in Baeot. de dote, 28. Macróbio, Sat., I, 17. Leis de Manu, II, 30.

(18) Platão, Teeteta. LIsías, em Harpocrácio, v. Amphidrômia.

(19) Macróbio, Sat., I, 17.

Livro II - Cap. IV

(1) Leis de Manu, IX, 10.

(2) Iseu, De Menecl. hered., 10-46. O mesmo orador, no discurso em defesa da herança de Astifilos, c. 7, mostra um homem que antes de morrer adotou um filho a fim de que este o honrasse depois da morte, e continuasse sua descendência.

(3) Leis de Manu, IX, 168, 174. Dattaca-Sandrica, tr. Orianne. p. 260.

(4)Vide também Iseu. De Meneclis hered., 11-14.

(5) Cícero, Pro domo, 13, 14. Comparar o que diz Aulo Gélio com relação à ad-rogação. que era a adoção de um homo sui juris (Aulo Gélio, V, 19).

(6) Iseu, De Apollod. her., 1. Cícero, Pro domo, 13. Tácito, Hist., I, 15.

(7) Valério Máximo, VII, 7. Cícero, Pro domo, 13.

(8) Cícero. Pro domo.

(9) Tito Lívio, XLV, 40.

(10) Iseu, De Philoct. her., 45: De Aristarchi her., 11. Demóstenes, in Leocharem, 68. Antiphon, Fragm. 15. Harpocrácio, ed. Bekker. p. 140. — Comparar com Leis de Manu, IX, 142.

(11) Sérvio, ad Aen., II, 156.

(12) Aulo Gélio, XV, 27. Comparar com o que os gregos chamavam de apokéryxis. Platão, Leis, XI, p. 928. — Cf. Luciano, XXIX, o filho deserdado. Pólux, IV, 93. Hesíquio, v. Apokeryetós.

Livro II - Cap. V

(1) Platão, Leis, V, p. 729.

(2) Plutarco, De frat. amore, 7.

(3) Digesto, liv. 50, tít. 14, § 196.

(4) Leis de Manu, V. 60; Mitakchara, tr. Orianne, p. 213.

(5) Gaio, I, 156. Id., III, 10. Ulpiano, XXVI. Institutas de Justiniano, III, 2.

Livro II - Cap. VI

(1) Alguns historiadores são da opinião de que em Roma a propriedade a princípio fora pública, e só se tornara particular sob o governo de Numa. Esse erro vem de uma falsa interpretação de três textos, de Plutarco (Numa, 16), de Cícero (República, II, 14) e de Dionísio (II, 74). Esses três autores, com efeito, dizem que Numa distribuiu certas terras aos cidadãos; mas indicam com muita clareza que essa divisão só dizia respeito às terras que as últimas conquistas de seu predecessor acrescentaram ao primitivo território romano. — Quanto ao ager Romanus, isto é, ao território que rodeava Roma a uma distância de cinco milhas (Estrabão, V, 3, 2), já era propriedade particular desde a origem da cidade. Vide Dionísio, II, 7; Varrão, De re rustica, I, 10; Nônio Marcelo, ed. Quicherat, p. 61.

(2) Assim, em Creta cada um dava para os banquetes comuns a décima parte das colheitas (Ateneu, IV, 22). Do mesmo modo em Esparta, cada um devia fornecer de seu patrimônio uma quantidade determinada de farinha, vinho e de frutos para as despesas da mesa comum (Aristóteles, Polít., II, 7, ed. Didot, p. 515; Plutarco, Licurgo, 12; Dicearca, em Ateneu, IV, 10).

(3) Vide Plutarco, De primo frigido, 21; Macróbio, I, 23; Ovídio, Fast., VI, 299.

(4) Sófocles, Trachin., 606.

(5) Na época em que esse antigo culto foi quase suplantado pela religião mais brilhante de Zeus, em que se associou Zeus à divindade do lar, o novo deus tomou para si o epíteto de erkéios. Não é menos verdade que originariamente o verdadeiro protetor do recinto era o deus doméstico. Dionísio de Halicarnasso o atesta (I, 67), quando diz que os deuses erkéioi são os mesmos que os penates. Isso, aliás, se torna mais claro se compararmos uma passagem de Pausânias (IV, 17) com uma passagem de Eurípides (Tróia, 17) e uma de Virgílio (En., II, 514); essas três passagens dizem respeito ao mesmo fato, e mostram que o Zeus erkéios não é outro que o lar doméstico.

(6) Festo, v. Ambitus. Varrão, L. L, V, 22. Sérvio, ad Aen., II, 469.

(7) Diodoro, V, 68. Essa mesma crença é referida por Eustato, que afirma que a casa se originou do lar (Eust., ad Odyss., XIV, v. 158; XVII, V. 156).

(8) Cícero, Pro domo, 41.

(9) Ovídio, Fastos, V, 141.

(10) Tal era, pelo menos, a regra antiga, pois acreditava-se que o banquete fúnebre servia de alimento aos mortos. Vide Eurípides, Troianas, 381 (389).

(11) Cícero, De legib., II, 22; II, 26. Gaio, Instit., II, 6. Digesto, liv. XLVII, tít. 12. Devemos notar que o escravo e o cliente, como veremos mais adiante, faziam parte da família, e eram enterrados no túmulo comum. — A guerra que prescrevia que cada homem fosse enterrado no túmulo de família só admitia exceção no caso em que a própria cidade celebrasse funerais públicos.

(12) Licurgo, Contra Leocrato, 25. Em Roma, para que uma sepultura fosse mudada de lugar, era necessário autorização dos pontífices. Plínio, Cartas, X, 73.

(13) Cícero, De legib., II, 24. Digesto, liv. XVIII, tít. I, 6.

(14) Lei de Sólon, citada por Gaio, no Digesto, X, 1, 13. Plutarco, Aristides, 1; Címon, 19. Marcelino, Vida de Tucídides, § 17.

(15) Demóstenes, in Calliclem, 13, 14, descreve também o túmulo aos busélidas, “colina bastante extensa e fechada, segundo antigo costume, onde repousam em comum todos os descendentes de Buselos” (Dem., in Macart., 79).

(16) Siculo Flaco, edit. Goez, p. 4, 5. Vide Fragm. terminalia, edit. Goez, p. 147. Pompônio, no Digesto, liv. XLVII, tít. 12, 5. Paulo, no Digesto VIII, 1, 14. Digesto, XIX, 1, 53; XI, 7, 2, § 9; XI, 7, 43 e 46.

(17) Idêntica tradição entre os etruscos. Fragm. intitulado: Idem Vegoiae Arrunti, ed. Lachmann, p. 350.

(18) Tíbulo, I, 1, 23. Cícero, De legib., II, 11.

(19) Cícero, De legibus, I, 21.

(20) Catão, De re rust., 141. Script. rei agrar., edit. Goez, p. 308. Dionísio de Halicarnasso, II, 74. Ovídio, Fast., II, 639. Estrabão, V, 3.

(21) Siculo Flaco, De oonditione agrorum, edit. Lachmann, p. 141; edit., Goez, p. 5.

(22) Leis de Manu, VII, 245. Vrihaspati, citado por Sicé, Législat. hindoue, p. 159.

(23) Varrão, L. L., V. 74.

(24) Pólux, IX, 9. Hesíquio, hóros. Platão, Leis, VIII, p. 842. Plutarco e Dionísio traduzem terminus por hóros. Aliás, a palavra térmon existia também na língua grega (Eurípides, Electra, 96).

(25) Ovídio, Fastos, II, 677.

(26) Festo, v. Terminus, ed. Müller, p. 363.

(27) Script. rei agrar., edit. Goez, p. 258; ed. Lachamann, p. 351.

(28) Platão, Leis, VIII, p. 842.

(29) Aristóteles, Política, II, 6, 10 (ed. Didot, p. 512). Heráclida do Ponto, Fragm. hist. graec., ed. Didot, t. II. p. 211. Plutarco, Instituta laconica, 22.

(30) Aristóteles, Política, II, 4, 4.

(31) Aristóteles, Política, II, 3, 7. Essa lei do velho legislador não visava a igualdade de fortunas, porque Aristóteles acrescenta: “embora as propriedades fossem desiguais”. — Visava unicamente a manutenção da propriedade na família. — Também em Tebas o número de propriedades era imutável. Aristóteles, Pol. II, 9, 7.

(32) O homem que havia alienado seu patrimônio era condenado à atimía. Ésquines, In Timarchum, 30; Diógenes Laércio, Sólon, I, 55. Essa lei, que certamente não era mais observada nos tempos de Ésquines, subsistia apenas na forma, como vestígio da antiga regra (Bekker, Anecdota, p. 199 e 310).

(33) Aristóteles, Polít., VI, 2, 5.

(34) Mltakchara, trad. Orianne, p. 50. Easa regra desapareceu pouco a pouco, quando o bramanismo passou a dominar.

(35) Fragmento de Teofrasto, citado por Estobeu, Serm. 42.

(36) Essa regra desapareceu na idade democrática das cidades.

(37) Uma lei dos helenos proibia hipotecar a terra: Aristóteles, Polit., VII, 2. A hipoteca era desconhecida no antigo direito ateniense antes de Sólon apóia-se em uma palavra mal compreendida de Plutarco. O vocábulo hóros, que significa mais tarde um limite hipotecário, significava nos tempos de Sólon o limite sagrado que assinalava o direito de propriedade. Vide mais adiante, liv. IV, c. 6. A hipoteca não apareceu senão mais tarde no direito ático, e somente sob a forma de venda e sob condição de resgate.

(38) No artigo da lei das Doze Tábuas, que trata do devedor insolvente, lemos Si volet suo vivito: pois o devedor, quase escravizado, conserva ainda algo de próprio; sua propriedade, quando a tem, não lhe é confiscada. Os contratos conhecidos em direito romano sob os nomes de mancipação com fidúcia, e de pignus eram, antes da ação serviana, meios indiretos de assegurar ao credor o pagamento da dívida; eles provam indiretamente que a expropriação por dívidas não existia. Mais tarde, quando se suprimiu a servidão corporal, foi necessário encontrar um meio para se ter direitos sobre os bens do devedor. Isso não era fácil; mas a distinção que se fazia entre a propriedade e a posse ofereceu um recurso. O credor obteve do pretor o direito de vender, não a propriedade, dominium, mas os bens do devedor, bona. Somente então, por uma expropriação disfarçada, o devedor perdia o gozo de sua propriedade.

Livro II - Cap. VII

(1) Cícero, De legibus, II, 19-20. Tal era a importância dos sacra, que o jurisconsulto Gaio escreveu a respeito uma curiosa Passagem (Gaio. II, 55). — Festo, v. Everriator (Ed. Müller, p. 77)

(2) Iseu, VI, 81. Platão chama o herdeiro de diádochos theõn (Leis, V. pg. 740)

(3) Leis de Manu, IX, 186.

(4) Digesto, liv. XXXVIII, tít. 16, 14.

(5) Institutas, III, 1, 3; III, 9, 7; III, 19, 2,

(1) Em Iseu, In Xenoenctum, 4, vemos um pai que deixa um filho, duas filhas, e outro filho emancipado; o primeiro filho herda sozinho. Em Lidas, Pro Mantitheo, 10, vemos dois irmãos que dividem entre si o patrimônio, e que se contentam em dotar as irmãs. O dote, aliás, nos costumes de Atenas, não era senão uma parte muito reduzida da fortuna paterna. Demóstenes, In Baeotum, de dote, 22-24, mostra também que as filhas não herdam. Enfim, Aristófanes, Aves, 1653-1654, indica claramente que uma filha não herda, se tem irmãos.

(2) Gaio, III, 1-2; Institutas de Justiniano, II, 19, 2.

(3) É o que M. Gide nos mostra muito bem em seu Étude sur la condition de la femme, p. 114.

(4) Gaio, I, 192.

(5) Institutas, III, 1, 15; III, 2, 3.

(6) Cícero, De rep., III, 7.

(7) Cícero, In Verr., II, 1, 42; Id., 43. Cf. Tito Lívio, Epitom., XLI; Gaio, II, 226 e 274; Santo Agostinho, De civit. Dei, III, 21.

(8) Demóstenes, In Eubulidem, 20. Plutarco, Temístocles, 32. Cornélio Nepos, Címon., I. Devemos notar que a lei não permitia casamento com irmão uterino, nem com irmão emancipado. Só era permitido o casamento com irmão consangüíneo. porque somente este era herdeiro do pai.

(9) Iseu, De Pyrrhi hereditate, 68.

(10) Essa disposição do antigo direito ático não estava mais em pleno vigor no século quarto. Encontramos, contudo, vestígios visíveis dessa disposição no discurso de Iseu, De Cironis hereditate. O objeto do processo é este: morrendo Círon, que deixou apenas uma filha, o irmão de Círon reclamava para si a herança. Iseu dafendeu a filha. Não possuímos o discurso do adversário, que sustentava, evidentemente, em nome dos velhos princípios, que a filha não tinha nenhum direito; mas o autor da hypotésis, colocada como introdução ao discurso de Iseu, adverte-nos de que esse habilíssimo advogado defendia então uma causa Ingrata; sua tese, afirma ele, está conforme à eqüidade natural, mas é contrária à lei.

(11) Iseu, De Pyrrhi hered., 64, 72-75; Iseu, De Aristarchi hered., 5; Demóstenes, In Leocharem, 10. A filha única chamava-se epícleros, palavra mal traduzida por herdeira; o significado primitivo e essencial dessa palavra é aquela que está ao lado da herança, que é recebida com a herança. Em direito rigoroso a filha não é herdeira; de fato, o herdeiro toma a herança syn auté, como diz a lei citada no discurso de Demóstenes, In Macartatum, 51. Cf. Iseu, III, 42: De Aristarchi hered., 13. — A condição de epícleros não era particular ao direito ateniense; encontramo-la em Esparta (Heródoto, VI, 57; Aristóteles, Política, II, 6, 11), e em Thurii (Diodoro, XII, 18).

(12) Iseu, De Pyrrhi hered., 64; De Aristarchi hered., 19.

(13) Demóstenes, In Eubulidem, 41; In Onetorem, I, argumento.

(14) Todas essas obrigações pouco a pouco se abrandaram. De fato, nos tempos de Iseu e de Demóstenes, o parente mais próximo podia deixar de se casar com a epiclera, contanto que renunciasse à sucessão, e dotasse sua parenta (Demóst., In Macart., 54; Iseu, De Cleonymi hered., 39).

(15) Leis de Manu, IX, 127, 136. Vasishta, XVII, 16.

(16) Iseu, De Cironis hereditate, 1, 15, 16, 21, 24, 25, 27.

(17) Não o chamavam de neto; davam-lhe o nome partícular de thygatridoús.

(18) Iseu, De Cironis her., 31; De Arist. her., 12. Demóstenes, In Stephanum, II, 20.

(1) Leis de Manu, IX, 186-187.

(2) Demóstenes, In Macart., 51; In Leocharem. Iseu, VII, 20.

(3) Institutas, III, 2, 4.

(4) Ibid., III, 3.

(1) Iseu, De Aristarchi hered., 45 e 11; De Astyph. hered., 33.

(2) Harpocrácio, v. Hóti oi poietói, Demóstenes, In Leocharem, 66-68

(1) Plutarco, Sólon, 21.

(2) Iseu, De Pyrrhi. hered., 68. Demóstenes, In Stephanum, II, 14.

(3) Plutarco, Agis. 5.

(4) Aristóteles, Polít., II, 3, 4.

(5) Platão, Leis, XI.

(6) Se não tivéssemos da lei de Sólon senão as palavras diáthesthai hópos àn ethéle, suporíamos que o testamento era permitido em todos os casos possíveis; mas a lei acrescenta: àn me pãides õsi.

(7) Ulpiano, XX, 2. Gaio, I, 102, 119. Aulo Gélio, XV, 27. testamento calatis comitiis foi sem nenhuma dúvida o que se usou primeiro; nos tempos de Cícero já não era mais conhecido (De orat., I. 53).

(1) Leis de Manu, IX, 105-107, 126. Essa antiga regra foi modificada à medida que se enfraquecia a religião primitiva. No código de Manu já se encontram artigos que autorizam e até recomendam a divisão da herança.

(2) Aristóteles, Polit., II, 9, 7; II, 3, 7; II, 4, 4.

(3) Presbéia, Demóstenes, Pro Phorm., 34. Na época de Demóstenes a presbéia não era mais que uma palavra sem sentido, e havia muito tempo que a sucessão se dividia em porções iguais entre os irmãos.

(4) Demóstenes, In Boeotum, de nomine.

(5) A antiga língua latina conservou vestígio dessa indivisão que, por mais apagado que seja, merece contudo ser assinalado. Chamava-se sors a um lote de terra, domínio de uma família; sors patrimonium significat, diz Festo; a palavra consortes era, portanto, usada para designar os que possuíam um lote de terra em comum, e viviam no mesmo domínio; ora, a língua antiga designava com essa palavra os irmãos, ou mesmo parentes de grau muito afastado, testemunho de um tempo em que o patrimônio e a família eram indivisíveis (Festo, v. Sors, Cícero, In Verrem, II, 3, 23. Tito Lívio, XLI, 27. Veléío, I, 10. Lucrécio, III, 772; VI, 1280).

Livro II - Cap. VIII

(1) Plauto, Mercator, V, 1, 5. O sentido primitivo da palavra lar é o de senhor, príncipe, mestre. Cf. Lar Porsenna, Lar Tolumnius.

(2) Festo, ed. Müller, p. 125.

(3) Leis de Manu, V, 147, 148.

(4) Demóstenes, In Onetorem, I, 7; In Boeotum, de dote, 7; In Eubulidem, 40. Iseu, De Meneclis hered., 2, 3. Demóstenes, In Stephanum, II, 18.

(5) Em caso de divórcio, a mulher voltava para a casa paterna. Demóstenes, In Eubul., 41.

(6) Demóstenes, In Stephanum, II, 20; In Phaenippum, 27; In Macartatum, 75. Iseu, De Pyrrhi hered., 50. — Cf. Odisséia, XXI, 350, 353.

(7) Gaio, I, 145-147, 190; IV, 118; Ulpiano, XI, 1 e 27.

(8) Demóstenes, In Aphobum, I, 5; Pro Phormione, 8.

(9) Cícero, Topic., 14. Tácito, Ann., IV, 16. Aulo Gélio, XVIII, 6. Veremos mais adiante que em certa época, e por razões que mais tarde explicaremos, imaginaram-se novas formas de casamento, que produziam os mesmos efeitos jurídicos do casamento religioso.

(10) Quando Gaio disse do poder paternal: Jus proprium est civium Romanorum, devemos entender que nos tempos de Galo o direito romano não reconhecia esse poder senão para o cidadão romano; isso não quer dizer que não tenha existido anteriormente em outros lugares, ou que não tenha sido reconhecido pelo direito das outras cidades. Isso será esclarecido pelo que diremos acerca da situação legal dos súditos sob o domínio de Roma. No direito ateniense anterior a Sólon o pai podia vender os filhos (Plutarco, Sólon, 13 e 23).

(11) Aulo Gélio, V, 12: Lactâncio, Instit., IV, 3. Varrão, De ling. lat., V, 66. Cícero, De nat. Deor., II, 26. A mesma palavra é aplicada ao deus Tibre nas orações: Tiberine Pater, te, Sancte, precor (Tito Lívio, II, 10). Virgílio chama a Vulcano de Pater Lemnius, o deus de Lemnos.

(12) Ulpiano, no Digesto, I, 6, 4.

(1) Heródoto, I, 59. Plutarco, Alcibíades, 23; Agesilau, 3.

(2) Demóstenes, In Eubul., 40, 43. Gaio, I, 155. Ulpiano, VIII, 8 Institutas, I, 9. DIgesto, liv. I, tít. 1, 11.

(3) Gaio, II, 98. Todas essas regras do direito primitivo foram modificadas pelo direito pretoriano. — Do mesmo modo, em Atenas, nos tempos de Iseu e de Demóstenes, o dote era restituído em caso de dissolução do casamento. Neste capítulo, nosso intuito é falar apenas do direito mais antigo.

(4) Cícero, De legib.. I, 20. Gaio, II, 87. Digesto, liv. XVIII, tít. 1, 2.

(5) Plutarco, Sólon, 13. Dionísio de Halic., II, 26. Gaio, I, 117, 132, VI, 79. Ulpiano, X, 1. Tito Lívio, XLI, 8. Festo, v. Deminutus.

(6) Gaio, I, 140.

(7) Ulpiano, Fragm. X, 1.

(8) Quando o filho cometia um crime, o pai podia livrar-se de sua responsabilidade entregando-o, a título de indenização, à pessoa lesada. Gaio, I, 140. O pai nesse caso perdia seu poder sobre o filho. Vide Cícero, Pro Caecina, 34; De Oratore, I, 40.

(9) Plutarco, Publicola, 8.

(10) Gaio, II, 96; IV, 77, 78

(11) Tempo houve em que essa jurisdição foi modificada pelos costumes; o pai consultava a família inteira, e a erigia em tribunal por ele presidido. Tácito, Ann. XIII, 32; Digesto, lív, XXIII, tít. 4, 5. Platão, Leis, IX.

(12) Títo Lívio, XXXIX, 18.

(13) Catão, em Aulo Gélio, X, 23; Valério Máximo, IV, 1, 3-6. — Do mesmo modo a lei ateniense permitia ao marido matar a mulher adúltera (Eschol. ad Horat., Sat., II, 7, 62), e ao pai vender como escrava a filha desonrada (Plutarco, Sólon, 23).

Livro II - Cap. IX

(1) Pseudo Plutarco. ed. Dubner, V, 167. Eustato, in Odyss., VII, 247.

(2) Plutarco, Quest. rom., 51. Macróbio, Sat. III, 4.

(3) Eurípides, Hercul. fur., 705.

(4) Heródoto, I, 35. Virgílio, En., II, 719. Plutarco, Teseu, 12.

(5) Heródoto, Ibidem; Ésquilo, Coéf., 96; a cerimônia é descrita por Apolônio de Rodes, IV, 704-707,

(6) Iseu, De Philloct. heredit., 47; Demóstenes, In Macartatum, 51. A religião dos tempos posteriores proibia ainda ao nóthos oficiar como sacerdote. Vide Ross, Inscr. gr., III, 52.

(7) Leis de Manu, III, 175,

(8) Demóstenes, In Neaer., 86. É verdade que, se essa moral primitiva condenava o adultério, não reprovava o incesto; a religião autorizava-o. As proibições relativas ao casamento eram contrárias às nossas; era louvável casar-se com a irmã (Cornelíus Nepos, proemíum; id., Vida de Cimon, c. 1; Minúcio Félix, Otávio, 30). mas era proibido, em princípio, casar-se com mulher de outra cidade.

(9) Catão, De re rustica, 143. Macróbio, I, 15. Comparar com o que diz Dionísio de Halicarnasso, II, 22.

(10) Xenofonte, Gov. de Laced., IX, 5.

(11) Plutarco, Quest. rom., 50. Cf. Dionísio de Halicarnasso, II, 22.

(12) Por isso muitos se enganam quando falam da triste sujeição da mulher romana in manu mariti. A palavra manus implica a idéia, não de força brutal, mas de autoridade, e se aplica tanto à autoridade do pai sobre a filha, como à do irmão sobre a irmã, como à do marido sobre a mulher. Tito Lívio, XXXIV, 2. A mulher casada de acordo com os ritos era senhora da casa: Macróbio, I, 15, In fine. Dionísio de Halicarnasso, II, 25, define claramente a situação da mulher: “Obedecendo em tudo ao marido, ela era a senhora da casa, como ele.”

(13) Dionísio de Halicarnasso, II. 20. 22.

(14) Cícero, De legib., II, 1; Pro domo, 41.

(15) Daí a santidade do domicilio, que os antigos sempre consideraram inviolável; Demóstenes, In Androt., 52; In Evergum, 60. Digesto, De in jus voc., II. 4,

(16) Haverá necessidade de advertir que neste capítulo tentamos apenas a antiga moral dos povos, que depois se tornaram os gregos e os romanos? Haverá necessidade de acrescentar que essa moral com o tempo se modificou, sobretudo entre os gregos? Já na Odisséia encontraremos novos e diferentes costumes; a continuação deste livro o mostrará.

Livro II - Cap. X

(1) Demóstenes, In Neaer., 71. Vide Plutarco, Temist., 1, Ésquines, De falsa legat., 147. Boeckh, Corp. inscr., n.° 385. Ross, Demi Attici. 24. A gens entre os gregos muitas vezes é chamada de pátra: Píndaro passim.

(2) Harpocrácio, v. Ghennétai, Hesíquio, idem.

(3) Plutarco, Temíst., I, Ésquines, De falsa legat., 147.

(4) Cícero, De arusp. resp., 15. Dionísio de Halicarnasso, XI, 14. Festo, v. Propudi, ed. Müller, p. 238.

(5) Tito Lívio, V, 46; XXII, 18. Valério Máximo, I, 1, 11. Políbio, III, 94. Plínio, XXXIV, 13. Macróbio, III, 5.

(6) Cícero, Pro domo, 13.

(7) Demóstenes, In Macart., 79; In Eubul., 28.

(8) Suetônio, Tibérío, I. Veléio, II, 119.

(9) Gaio, III, 17. Digesto, III, 3, 1.

(10) Tito Lívio, V, 32. Dionísio de Halicarnasso, Fragm., XIII, 5. Apiano, Annib., 28.

(11) Tito Lívio III, 58. Dionísio, XI, 14.

(12) Dionísio de Halicarnasso, II, 7.

(13) Idem, IX, 5.

(14) Boeckh, Corp. Inscr., n.°s 397, 399. Ross, Demi Attici, 24.

(15) Tito Lívio, VI, 20. Suetônio, Tibérío, 1. Ross Demi Attici, 24.

(16) Cícero tentou uma definição da gens: Gentiles sunt qui inter se eodem nomine sunt, qui ab ingenuis oriundi sunt, quorum majorum nemo servitutem servivit (Cic., Tópicos, 6). Essa definição é incompleta; indica apenas alguns sinais exteriores, e não os caracteres essenciais. Cícero, que pertencia à ordem dos plebeus, parece ter tido idéias muito vagas a respeito da gens dos tempos antigos; ele afirma que o rei Sérvio Túlio era seu gentilis (meo regnante gentili, Tusculanas, I, 16), e que certo Verrucino era quase o gentilis de Verres (In Verrem, II, 77).

(1) Demóstenes, In Macart, 79. Pausânias, I, 37. Inscrição dos Aminandridas, citada por Ross, p. 24.

(2) Festo, verbis Coeculus, Calpurnii, Cloelia.

(3) Tito Lívio, II, 46: Genus Fabium.

(4) Filócoro, nos Fragm. hist. graec., t., I, p. 399. Pólux, VIII, 11.

3.°

(1) Não voltamos atrás sobre o que dissemos acima (Liv. II, cap. V) a respeito da agnação. Já vimos que agnação e gentilidade procediam dos mesmos princípios, e eram parentesco da mesma natureza. A passagem da lei das Doze Tábuas que designa a herança aos gentiles na falta de agnati causou embaraços aos jurisconsultos, e fez pensar que poderia haver uma diferença essencial entre essas duas espécies de parentesco. Mas essa diferença essencial não aparece em nenhum texto. Era-se agnatus como se era gentilis, pela descendência masculina, e por vínculos religiosos. Havia entre os dois parentescos apenas diferença de grau, que se acentuou sobretudo a partir da época em que os ramos de uma mesma gens se separaram. O agnatus era membro do ramo, o gentills o era da gens. Estabeleceu-se então a mesma distinção entre os termos gentilis e agnatus que entre as palavras gens e familia. Familiam dicimus omnium agnatorum, diz Ulpiano, no Digesto, Liv. L, tít. 16, § 195. Quando se era agnado em relação a um homem, era-se com muito mais razão seu gentilis; mas podia-se ser gentilis sem se ser agnado. A lei das Doze Tábuas dava a herança, na falta de agnados, aos que eram apenas gentiles com relação ao defunto, isto é, que pertenciam à sua gens, sem fazer parte de sua família ou de seu ramo. — Veremos mais adiante que entrou na gens um elemento de ordem inferior, a clientela: daí se formou um vínculo de direito entre a gens e o cliente; ora, esse vínculo de direito chamou-se também gentilitas. Por exemplo, em Cícero, De oratore, I, 39, a expressão jus gentilitatis designa a relação entre a gens e os clientes. É assim que a mesma palavra designava duas coisas que não devemos confundir.

(2) É verdade que mais tarde a democracia substituiu o nome do demo pelo do ghénos, o que era uma maneira de imitar e de se apropriar da antiga regra.

(1) Demóstenes, In Stephanum, I, 74. Aristófanes, Plutus, 768. Esses dois escritores indicam claramente uma cerimônia, mas não a descrevem. Os escoliastes de Aristófanes acrescentam alguns detalhes. Vide, em Ésquilo, como Clitemnestra recebe uma nova escrava: “Entra nesta casa, pois Júpiter deseja que participes das abluções da água lustral, com meus outros escravos, junto a meu lar doméstico” (Ésquilo, Agamemnon, 1035-1038).

(2) Aristóteles, Econômicas, I, 5: “É pelos escravos, mais do que pelas pessoas livres, que se devem celebrar os sacrifícios e as festas.“ — Cícero, De legibus, II, 8: Ferias in famulis habento. — Nos dias de festa era proibido fazer o escravo trabalhar (Cíc., De legib., II, 12).

(3) Cícero, De legib., II, 11. — O escravo podia até celebrar o ato religioso em nome do senhor; Catão, De re rustica, 83.

(4) Quanto às obrigações dos libertos em direito romano, vide Digesto, XXXVII, 144, De jure patronatus; XII, 15, De obsequiis parentibus et patronis praestandis; XIII, 1, De operis libertorum — O direito grego, no que diz respeito à alforria e à clientela, transformou-se muito mais depressa que o direito romano. Por isso restam-nos muito poucos esclarecimentos sobre a antiga condição dessa classe de pessoas; ver, contudo, Lísias, em Harpocrácio, na palavra Apostasíon, Crisipo em Ateneu, VI, 93, e uma passagem curiosa de Platão, Leis, XI, p. 915. Disso resulta que o liberto sempre tinha deveres para com o antigo senhor.

(5) Clientela, entre os sabinos (Tito Lívio, II, 18; Dionísio, V, 40); entre os etruscos (Dionísio, IX, 5); entre os gregos (Dionísio, II, 9).

(6) Lei das Doze Tábuas, citada por Sérvio, ad Aen., VI, 609. Cf. Virgílio: Aut fraus innexa clienti. — Sobre os deveres dos patronos, vide Dionísio, II, 10.

(7) Horácio, Epist., II, 1, 104, Cícero, De orat., III, 33.

(8) Catão, em Aulo Gélio, V, 3; XXI, 1.

(9) Aulo Gélio XX, 1.

(10) Essa verdade, em nossa opinião, está bem clara em dois fatos que nos são contados, um por Plutarco, outro por Cícero. C. Herênio, chamado para testemunhar contra Mário, alegou ser contrário às regras antigas que um patrono testemunhasse contra seu cliente; e, como se admirassem aparentemente de que Mário, que já havia sido tribuno, fosse qualificado de cliente, ele acrescentou que efetivamente “Mário e sua família, desde os tempos mais remotos, sempre haviam sido clientes da família dos Herênios”. — Os juízes admiram-se do argumento, mas Mário, que não se importava por se ver reduzido a essa condição, replicou que no dia em que havia sido eleito para uma magistratura libertara-se da clientela, “o que não era bem verdade, acrescenta o historiador, porque nenhuma magistratura libertava da condição de cliente; somente os magistrados curuis tinham esse privilégio” (Plut., Vida de Mário, 5). A clientela, portanto, era, salvo essa única exceção, obrigatória e hereditária; Mário a havia esquecido, o que não aconteceu com os Herênios. — Cícero menciona um processo discutido em seu tempo entre os Cláudios e os Marcelos; os primeiros, a título de chefes da gens Cláudia, pretendiam, em virtude do direito antigo, que os Marcelos fossem seus clientes; estes em vão ocupavam há dois séculos os primeiros postos do Estado: os Cláudios persistiam em sustentar que o vínculo de clientela não podia ter sido destruído. — Esses dois fatos, salvos do esquecimento, permitem-nos julgar o que era a primitiva clientela.

Livro III - Cap. I

(1) Esse modo de geração da fratria está claramente Indicado em curioso fragmento de Dicearca (Fragm. hist. gr., ed. Didot, t. II, p. 238). — As fratrias são assinaladas em Homero como instituições comuns a toda a Grécia: Ilíada, II, 362. Pólux, III, 52. Demóstenes, In Macartatum, 14; Iseu, De Philoct. hered., 10. — Havia fratrias em Tebas (Escoliastes de Píndaro, Isthm., VI, 18); em Corinto (ibid., Olymp., XIII, 127); na Tessália (ibid., Isthm., X, 85); em Neápolis (Estrabão, V, p. 246); em Creta (Boeckh, Corp. Inscr., n.° 2555). Alguns historiadores pensam que os obai de Esparta correspondiam às fratrias de Atenas. — As palavras fratria e cúria eram consideradas sinônimas; Dionísio de Halicarnasso (II, 85), e Díon Cásslo (fragm. 14) traduzem-nas uma pela outra,

(2) Demóstenes, In Macart.,14, e Iseu, De Apollod. hered., mencionam o altar da fratria e o sacrifício que nele celebravam. Cratino (em Ateneu, XI, 3. p. 460) fala do deus que preside à fratria. Cf. Pólux, III, 52.

(3) Ateneu, V, 2; Festo, p. 64.

(4) Cícero, De orat., I, 7; Ovídio, Fast., VI, 305; Dionísio, II, 65.

(5) Dionísio, II, 73. Apesar disso, já se haviam introduzido algumas mudanças. O banquete da cúria não passava de mera formalidade, boa para os sacerdotes. Os membros da cúria dispensavam-no de bom grado, introduzindo-se o costume de substituir a refeição comum por uma distribuição de víveres e de dinheiro: Plauto, Aululária, V, 69 e 137.

(6) Iseu De Apollod. hered., 15-17. descreve um desses banquetes; em outro lugar (De Astyph. hered., 33), fala de um homem que, tendo saído de sua fratria, em virtude de uma adoção, era considerado nela como estranho; em vão se apresentava em todas as refeições sagradas, pois não lhe davam nenhuma parte das carnes sagradas da vítima. Cf. Lísias, Fragm., 10 (ed. Didot, t. II, p. 255): “Se um homem, nascido de pais estrangeiros, se junta a uma fratria, qualquer ateniense poderá processá-lo judicialmente.”

(7) Demóstenes, In Macartatum, 13-15. Iseu, De Philoct. hered, 21-22; De Cironis hered., 18. — Lembremo-nos de que uma adoção regular produzia sempre os mesmos efeitos que a filiação legitima, chegando mesmo a substituí-la.

(8) Essa mesma opinião é o princípio da antiga hospitalidade. Não é nosso propósito descrever essa curiosa instituição. Digamos somente que a religião nela tinha grande parte. O homem que conseguisse chegar ao lar não podia mais ser considerado estrangeiro; tornava-se eféstios (Sófocles, Trachin., 262; Eurípides, Íon, 654; Ésquilo, Eumênidas, 577; Tucídides, I, 137). Aquele que participasse de um banquete sagrado estava sempre em comunhão religiosa com o hóspede; é por isso que Evandro diz aos troianos: Communem vocate Deus (Virgílio, Eneida, VIII, 275). — Aqui vemos um exemplo do que há sempre de sabiamente ilógico na alma humana: a religião doméstica não é feita para estrangeiros; ela o repele por essência, mas, por isso mesmo, o estrangeiro, uma vez admitido, torna-se mais sagrado. Desde que tocou o lar, torna-se absolutamente necessário que deixe de ser estrangeiro, o mesmo princípio que ontem o repelia exige que hoje. e para sempre, ele se torne membro da família.

(9) A respeito do curio, ou magister curiae, vide Dionísio, II 64; Varrão, De ling. lat., V, 83; Festo. p. 126. O fratriarca é mencionado em Demóstenes, In Eubul., 23. A deliberação e o voto são descritos em Dem., In Macart., 82. Várias inscrições contêm decretos promulgados por fratrias; vide Corpus inscr. attic., t. II, ed. Kohler, n.°s 598, 599, 600.

(10) Pólux, VIII, 110.

(11) Ateneu, V, 2; Pólux, III, 67; Demóstenes, In Boeot., de nom., 7. Sobre as quatro antigas tribos de Atenas, e suas relações com as fratrias e os ghéne, vide Pólux, VIII, 109-111, e Harpocrácio, v. Trittys, segundo Aristóteles. A existência de antigas tribos, em número de três ou quatro, é acontecimento vulgar em todas as cidades gregas, dóricas ou jônicas: Ilíada, II, 362 e 668; Odisséia, XIX, 177; Heródoto, IV, 161; V, 68 e 69; vide Otf. Müller, Dorier, t. II, p. 79. Há uma distinção a ser feita entre as tribos religiosas dos primeiros tempos e as tribos simplesmente locais dos tempos posteriores; mais adiante voltaremos ao assunto. Somente as primeiras estão em relação com as fratrias e os ghéne.

(12) Pólux, VIII, 111. Cf. Aristóteles, fragmento citado por Fócio, v. Naukraria.

(13) A organização política e religiosa das três tribos primitivas de Roma deixou poucos vestígios nos documentos. Tudo o que se sabe é que eram compostas de cúrias e de gentes, e que cada uma delas tinha seu tribunus. Seus nomes, Ramnes, Tities, Luceres, foram conservados, assim como algumas cerimônias do culto. Essas tribos, aliás, eram corporações muito consideráveis para que a cidade deixasse de querer enfraquecê-las e tirar-lhes a independência. Também os plebeus trabalharam para fazê-las desaparecer.

Livro III - Cap. II

(1) Sófocles, Antígone, v. 879. Os Vedas exprimem muitas vezes a mesma idéia.

(1) Será necessário lembrar todas as tradições gregas e italianas que faziam da religião de Júpiter uma religião jovem, e relativamente recente? A Grécia e a Itália haviam conservado a lembrança de um tempo em que as sociedades humanas já existiam, e no qual essa religião ainda não estava formada. Ovídio, Fastos, II, 289; Virgílio, Geórg., I, 126; .Ésquilo, Eumênidas; Pausânias, VIII, 8. Parece que entre os hindus os Pitris foram anteriores aos Devas.

(2) Se muitas vezes acontecia que vários nomes representassem uma mesma divindade ou uma mesma concepção de espírito, acontecia igualmente que um mesmo nome escondia muitas vezes divindades muito diferentes: Poséidon Hippios, Poséidon Phytálmios, Poséidon Erechthée, Poséidon Aegéen, Poséidon Heliconiano, eram deuses diversos, que não tinham os mesmos atributos nem os mesmos adoradores.

(3) Eurípides, Hécuba, 345; Medéia, 395. Sófocles, Ajax, 492. Virgílio, VIII, 543. Heródoto, I, 44.

(4) Tito Lívio, IX, 29. Dionísio, II, 69. Assim, a família dos Aurélios dedicava culto doméstico ao sol (Festus, v. Aureliam..., ed. Müller, p. 23).

(5) Heródoto, V, 64, 65; VII, 153; IX, 27. Píndaro, Isthm, VII, 18. Xenofonte, Helên., VI, 8. Platão, Leis, VI, p. 759; Banquete, p. 40. Plutarco, Teseu, 23; Vida dos dez oradores, Licurgo, c. 11. Fílócoro, Fragm. 158, p. 411. Diodoro, V, 58. Pausânias, I, 37; IV, 15; VI, 17; X,1. Apolodoro, III, 13. Justin., XVIII, 5. Harpocrácio, nos vocábulos Eteoboutádai, Eunéidai. — Cícero, De divinatione. I, 41. Estrabão, IX, p. 421; XIV, p. 634. Tácito, Annales, II, 54.

Livro III - Cap. III

(1) Homero, Ilíada, II, 362. Varrão, De ling. lat., V, 89. Em Atenas conservou-se o costume de dividir os soldados por tribos e demos: Heródoto, VI, 111. Iseu, De Meneclis hered., 42; Lísias, Pro Mantitheo, 15.

(2) Dionísio de Halicarnasso, II, 23.

(3) Aulo Gélio, XV, 27.

(4) Pólux, VIII, 111.

(5) Pólux, VIII, 105-106.

(6) Iseu, De Cironis hered., 19; Pro Euphileto, 3. Demóstenes, In Eubulidem, 46. A necessidade de ser inscrito em uma fratria, antes de fazer parte da cidade, deriva da lei citada por Dinarca (Oratores attici, coll. Didot, t. II, p. 462, fr. 82).

(7) Plutarco, Teseu, 24; ibid., 13.

(8) Pausânias, I, 15; I, 31; I, 37; II, 18.

(9) Pausânias, I, 31.

(10) Plutarco, Teseu, 13.

(11) Plutarco, Teseu, 14. Pólux, VI, 105. Estêvão de Bizâncio, v. Echelídai.

(12) Filócoro, citado por Estrabão, IX. p. 609. Tucídides, II, 15. Cf. Pólux, VIII, 111.

(13) Pausânias, I, 38.

(14) Tucídides, II, 15. Plutarco, Teseu, 24. Cf. Pausânias, VIII, 2, 1.

(15) Plutarco e Tucídides afirmam que Teseu destruiu os pritaneus locais e aboliu as magistraturas dos burgos. Todavia, se tentou fazê-lo, é certo que não o conseguiu, porque ainda muito tempo depois encontramos cultos locais, assembléias, reis tribais. Boeckh, Corp. inscr., 82, 85. Demóstenes, In Theocrinem. Pólux, VIII, 111. — Deixamos de lado a lenda de Íon, à qual diversos historiadores modernos parecem haver dado muita importância, apresentando-a como sintoma de uma invasão estrangeira na Ática. Essa invasão não é indicada por nenhum documento. Se a Ática houvesse sido conquistada por esses jônios do Peloponeso, não é provável que os atenienses tivessem conservado tão religiosamente seus nomes de Cecrópidas, Erecteidas, e que, pelo contrário, teriam considerado como injúria o nome de jônios (Heródoto, I, 143). Àqueles que crêem nessa invasão dos jôníos, e que acrescentam que a nobreza dos Eupátridas tem aí sua origem, pode-se ainda responder que a maior parte das grandes famílias de Atenas remontam a época bem anterior àquela em que se coloca a chegada de Íon à Ática. Quer isso dizer que os atenienses não sejam jônios em sua maior parte? Eles certamente pertencem a esse ramo da raça helênica. Estrabão nos diz que nos tempos mais remotos a Ática chamava-se Iônia e Ías. Mas se erra quando se quer fazer do filho de Xutos, do herói legendário de Eurípides, o tronco desses jônios; eles são infinitamente anteriores a Íon, e seu nome é talvez muito mais antigo que o dos helenos. Não há razão para se fazer descender desse Íon todos os Eupátridas, e apresentar essa classe de homens como uma população conquistadora. que oprimiu pela força uma população vencida. Essa opinião não se apoia sobre nenhum testemunho antigo.

(16) Heródoto, IV, 161. Cf. Platão, Leis, V, 738; VI, 771. Assim, quando Licurgo reforma e renova a cidade de Esparta, a primeira coisa que faz é construir um templo; a segunda, dividir os cidadãos em phylai e em óbai: suas leis políticas somente aparecem depois (Plutarco, Licurgo, 6).

Livro III - Cap. IV

(*) Como em português a palavra cidade é empregada em ambos os sentidos (de cidade e de urbe, de cité e de ville). usá-la-emos indis­cri­mina­da­mente.

(1) Tito Lívio, I, 8.

(2) É depois de contar a fundação da cidade sobre o Palatino, depois de falar sobre suas primeiras instituições e progressos, que Tito Lívio acrescenta: Deinde asylum aperit (Tito Lívio, I, 8).

(3) A cidade, urbs, ocupava o Palatino; isso é formalmente afirmado por Dionísio, II, 69; Plutarco, Rômulo, 9; Tito Lívio, I, 7 e 33; Varrão, De ling. lat., VI, 34; Festo v. Quadrata, p. 258; Aulo Gélio, XIII. 14. Tácito, Annales, XII, 24, dá o traçado desse recinto primitivo no qual não se compreendia o Capitolino. — Pelo contrário, o asylum estava situado na encosta do Capitolino; Tito Lívio, I, 8. Estrabão, V, 3, 2; Tácito, História, III, 71; Díonísio, II, 15; era aliás um simples lucus, ou hieròn ásylon, como existia em toda parte, na Itália e na Grécia.

(4) Cícero, De divin., I, 17. Plutarco, Camilo, 32. Plínio, XIV, 2, XVIII, 12.

(5) Dionísio, I, 88.

(6) Plutarco, Rômulo. 11. Díon Cassio, Fragm., 12. Ovídio, Fast. IV, 821. Festo, v. Quadrata.

(7) Plutarco, Rômulo, 11. Festo, ed. Müller, p. 156. Sérvio, ad. Aen, III, 134.

(8) A expressão mundus patet designava esses três dias em que os manes saíam de suas moradas. Varrão, em Macróbio, Saturn., I, 16. Festo, ed. Müler, p. 156.

(9) Ovídio, Fastos, IV, 822. O lar mais tarde foi mudado para outro lugar. Quando as três cidades, do Palatino, do Capitólio e do Quirinal, se uniram em uma só, o lar comum do templo de Vesta foi colocado sobre terreno neutro, entre as três colinas.

(10) Plutarco, Rômulo, 11. Díonísio de Halic., I, 88. Ovídio, Fastos, IV, 825 e seg. Varrão, De ling. lat., V, 143. Festo, ed. Müller, p. 375. — Essas regras eram tão conhecidas e usadas, que Virgílio, descrevendo a fundação de uma cidade, começa por descrever essa prática (Virgílio, Aen., V, 755).

(11) Plutarco, Quest. rom., 27.

(12) Catão, citado por Sérvio, ad Aen., V, 755.

(13) Cícero, De nat. Deorum, III, 40. Gaio, II, 8. Digesto, I, 8, 8; ibid., 11.

(14) Varrão, V, 143. Tito Lívio, I, 44. Aulo Gélio, XIII, 14, dá a definição que encontrou no livro dos áugures.

(15) Plutarco, Rômulo, 12. Plínio, Hist. Nat., XVIII, 66, 247. Cf. Corpus inscript. lat., t. I, p. 340-341.

(16) Catão, em Sérvio, V, 755. Varrão, L. L., V, 143. Festo, v. Rituales, p. 285.

(17) Heródoto, IV, 156; Diodoro, XII, 12; Pausânias, VII, 2; Ateneu, VII, 62.

(18) Idem, V, 42.

(19) Tucídides, V, 16.

(20) idem, III, 24.

(21) Pausânias, IV, 27.

(22) Plutarco, Teseu, 24. Cícero, Pro Sextio, 63, nota que desembarcou em Bríndisi no dia em que a cidade festejava o aniversário de sua fundação.

(23) Illos ire (Ilíada), hierài Athénai (Aristófanes, Cav., 1319), hieràn pólin, diz Teógnis, v. 837, falando de Mégara. Pausânias, I, 26; Hierà tés Athenãs estin e polis.

(24) Neptunia Troja, theódmetoi Athénai. Vide Teógnis, v. 755 (Welcher)

Livro III - Cap. V

(1) Pindaro, Pit., V, 117-132; Olimp., VII, 143-145. Píndaro chama o fundador de “pai das cerimônias sa­gra­das” (Hyporchemes, fr. 1). O costume de instituir um culto para o fundador é atestado por Heródoto, VI, 38; Diodoro de Sicilia, XI, 78. — Plutarco, Aratus, 53, descreve as honras religiosas e os sacrifícios instituídos por Aratus depois de sua morte.

(2) Plutarco, Rômulo, 29. Dionísio, II, 63. Ovídio, Fastos, II. 475-510. Cícero, De rep., II, 10; I, 41. Não há dúvida de que desde esse momento já se compunham hinos em honra do fundador; parece-nos ouvir o eco de um desses velhos cantos em alguns versos de Ênio citados por Cícero.

(3) Heródoto, I, 168. Píndaro, Píticas, IV. Tucídides, V, 11. Estrabão, XIV, 1. Cícero, De nat. Deorum, III, 19. Plutarco, Quest. graec., 28. Pausânias, I, 34; III, 1.

(4) Heródoto, VI, 38. Diodoro, XI, 78. O culto do fundador parece ter existido também entre os sabinos (Santo Agostinho, Cidade de Deus, XVIII, 19).

(5) Não temos que examinar aqui se a lenda de Enéias corresponde a um fato real; basta-nos ver nela uma crença, que nos mostra o que os antigos imaginavam por um fundador de cidade, que idéia faziam do penatiger, e para nós isso é o que importa. Acrescentemos ainda que várias cidades, na Trácia, em Creta, no Épiro, em Citera, em Zacinto, na Sicília, na Itália, acreditavam terem sido fundadas por Enéias, e lhe tributavam culto.

(1) O pritaneu era, antes de mais nada, o edifício que encerrava o lar. Pólux, I. 7. Pausânias, V, 15, 5. Dionísio de Halicarnasso, II, 23, diz que nos pritaneus dos gregos encontrava-se o lar comum das fratrias. Cf. escoliastes de Píndaro, Nemeianas, XI; escoliastes de Tucídides, II, 15. — Havia um pritaneu em cada cidade grega; em Atenas (Tucíd., II, 15; Pausânias, I, 18); em Sicião (Heródoto, V, 67); em Mégara (Pausân., I, 43); em Hermíone (Pausân., II, 35); em Élis (Pausân., V, 15); em Sifnos (Heród., III, 57); entre os aqueus ftiotes (Heród., VII, 197); em Rodes (Políbio, XXIX, 5); em Mantinéia (Pausân., VIII, 9); em Tassos (Ateneu, I, 58); em Mitilene (Ateneu, X, 24); em Cízico (Tito Lívio XLI, 20); em Naucrátis (Ateneu, VI, 32); em Siracusa (Cícero, In Verrem, De signis, 53), e até nas ilhas de Lipári, habitadas pela raça grega (Diodoro, XX. 101). Dionísio de Halicarnasso diz que não se considerava possível fundar uma cidade sem antes estabelecer o lar comum (II, 65). Havia em Esparta uma sacerdotisa que ostentava o título de estía póleos (Boeckh, Corp. inscr.. gr., t. I, p. 610).

(2) Em Roma, o templo de Vesta não era nada msis que o lar sagrado da cidade, Cícero, De legibus, II, 8; ibid., II. 12. Ovídío, Fastos, VI, 291.

(3) Tito Lívío, XXVI, 27. Cícero, Filípicas, XI, 10.

(4) Horácio, Odes, I, 2, 27. Cícero, Pro domo, 53. Cf. Cícero, Pro Fonteio, 20.

(5) Tito Lívio, XXVIII, 11. Festo, p. 106. O fogo não podia ser ateado senão mediante processo antigo e religioso (Festo, ibidem).

(6) Tito Lívio, XXVI, 27.

(7) Plutarco, Numa, 9; Camilo, 20. Dionísio de Halicarnasso, II, 66. Virgílio, Eneida, III, 408. Pausânias, V, 15. Apiano, G. civ., I, 54.

(8) Tito Lívio, III, 17. Plínio H. N., XXI, 3, 8. Ovídio. Fastos, II, 616. Cícero, Pro Sextio, 20. Macróbio, Saturn., III, 4. Sérvio, ad Aen., II, 351.

(9) Plutarco, Arístides, 11. Sófocles, Antígone, 199. Esses deuses muitas vezes são chamados de dáimones enchórioi. Cf., entre os latinos, os dii indigetes (Sérvio, ad Aen., XII, 794; Aulo Gélio, II, 16)

(10) Plutarco, Sólon, 9, alude ao costume dos atenienses de enterrar os mortos voltando-os para o sol poente (Plutarco, Sólon, 10).

(11) Licurgo tinha em Esparta um templo, sacerdotes, festas sagradas e hinos (Heródoto, I, 65; Plutarco, Licurgo, 31; Éforo, em Estrabão, VIII, 5, 5). Teseu era deus em Atenas, que levantou um templo para acolher seus despojos. Aristômenes era honrado por um culto entre os messênios (Pausânias, IV, 32); os eácidas em Egina (Heródoto, V. 80). Pode-se ver em Pausânias o número dos heróis tópicos venerados em cada cidade.

(12) Pausânias, IX, 18.

(13) Heródoto, VII, 117.

(14) Diodoro, IV, 62.

(15) Pausânias, X, 23; Píndaro, Nemeanas, VII. 65 e seg.

(16) Heródoto, V, 47.

(17) Eurípides, Heráclides, 10, 32.

(18) Sófocles, Édipo em Colona, 627.

(19) Idem, ibidem, 1524, 1525.

(20) Idem, ibidem, 621-622. Mostrava-se em Atenas o túmulo onde repousavam os ossos de Édipo, e o herõon onde recebia as honras fúnebres (Pausânias, I, 26; I, 30). Não é necessário dizer que os tebanos tinham outra lenda acerca de Édipo.

(21) Pausânias, I, 43. Lenda semelhante, e o mesmo costume encontra-se na cidade grega de Tarento (Políbio, VIII, 30).

(22) Pausânias, IV, 32; VIII, 9; VIII, 36.

(23) Heródoto, I, 67-68. Pausânias, III, 3,

(24) Esses deuses chamavam-se theoi políeis (Pólux, IX, 40), Polioúchoi (Ésquilo, Sept., 109), polítai (Ésquilo, ibid., 253), astynomoi (Ésquilo, Agam., 88). — Estes deuses exerciam proteção especial sobre a cidade; Vitrúvio, I, 7; Macróbio, III, 9. Virgílio condensa essa mesma idéia (IX, 246). A necessidade para toda cidade nova de escolher para si uma divindade políada é assinalada em Aristófanes, Aves, v. 826. Esses deuses ocupavam o campo, do qual eram senhores: Demóstenes, Pro corona, 141; Plutarco, Aristides, 18; Licurgo, In Leocratem, 26.

(25) Tucídides, I, 134; Pausânias, III, 17.

(26) Ilíada, VI, 88.

(27) Havia uma Athenè poliás em Atenas, e havia também uma Athenè poliás em Tegeu; esta prometera a seus protegidos que sua cidade jamais seria conquistada (Pausânias, VIII, 47).

(28) Títo Lívio, V, 21, 22; VI, 29. — Vide em Díon Cássio, LIV, 4, uma história que mostra Júpiter Capilotino e Júpiter Tonante como deuses diferentes.

(29) Heródoto, V, 72; VI, 81. Esparta tinha uma Atena e uma Hera (Plutarco, Licurgo, 6; Pausânias, III); mas um espartano não tinha o direito de entrar no templo de Atena políada de Atenas, ou da Hera políada de Argos.

(30) Eles só adquiriram esse direito depois da conquista da cidade (Tito Lívio, VIII, 14).

(3l) Não havia cultos comuns a várias cidades senão no caso das confederações; falaremos a respeito em outro lugar.

(32) Ésquilo, Suppl., 858.

(33) Ésquilo, Sete Chefes, v. 69-73, 105, 109, 139, 168-170.

(34) Ilíada, I, 37 e seg.; VI, 93-96.

(35) Ésquilo, Sete Chefes, 76-77, 176-181.

(36) Teógnis, ed. Welcker, v. 759; ed. Boissonade, v. 777.

(37) Sem dúvida, não é necessário advertir de que essas regras antigas foram muito abrandadas com o tempo; há inscrições que mostram estrangeiros oferecendo dádivas às divindades atenienses; mas essas inscrições são de data relativamente recente.

(38) Eurípides, Heráclides, 347.

(39) Heródoto, V, 65; V, 80.

(40) Suetônio, Calígula, 5; Sêneca, De vita beata, 36.

(41) Virgílio, Eneida, I, 68.

(42) Virgílio, Eneida, II, 351.

(43) Ésquilo, Sete Chefes, 217-220: “Etéocles: Quando uma cidade é conquistada, costuma-se dizer que os deuses a abandonaram. — O coro: Queiram os deuses, que aqui estão, jamais abandonar-nos, e que eu não veja Tebas tomada de assalto, e entregue às chamas!”

(44) Macróbio, Saturnales, III, 9. Plínio, Hist. nat., XXVIII, 4,18.

(45) Sobre o poder das fórmulas, epaghoghái ou katadéseis, vide Platão. Leis, XI, p. 933; Eurípides, Suplicantes, 39. Essas fórmulas eram de tal modo antigas, que muitas palavras não eram mais compreendidas, e não pertenciam mais à língua grega. Vide Hesíquio à palavra Efesía. Os antigos acreditavam que podiam obrigar os deuses, e constrangê-los; é esse o pensamento expresso por Virgílio em Eneida, III, 427-440, onde, afirma que o enunciado da prece, preces, as promessas, vota, as ofertas, dona, são as três armas pelas quais pode ser vencida, superare, a má vontade de uma deusa.

(46) Tucídides, II, 74.

(47) Heródoto, V, 83.

(48) idem, V. 99.

(49) Plutarco, Sólon, 9.

(50) Plínio, Hist. nat., XXVIII, 4, 18. Macróbio, Sat, III, 9. Sérvio, ad Aen., II, 351.

Livro III - Cap. VII

(1) Ateneu, V, 2. Pólux, I, 34, menciona os demothoiniai, ou panthoiniai entre as festas religiosas.

(2) Odisséia, III, 5-9; 43-50; 339-341.

(3) Ateneu, X, 49, segundo Panodemo.

(4) Xenofonte, Resp. Athen., 3. Cf. escoliastes de Aristófanes, Nuvens, 386. Plutarco, Péricles, 11, e Isócrates, Areopagítico, 29, mencionam o costume dos estiáseis em Atenas.

(5) Ateneu, V, 2. O mesmo escritor menciona em Argos os demósiais thóinai, e, em Esparta, banquetes distintos dos pheiditia cotidianos (Ateneu, XI, 66), traz uma longa descrição dos banquetes das cidades de Figália e de Naucrátis; menciona os ritos que nelas eram seguidos, as libações, os hinos (IV, 32); fala dos de Tarento (IV, 61); alude ainda a esse costume em X, 25. Píndaro, na XI Nemeiana, descreve os banquetes sagrados dos tenedos. Cf. Diodoro, XI, 72.

(6) Ateneu, V, 2.

(7) Vide o decreto citado por Ateneu, VI, 26.

(8) Plutarco, Sólon, 24. Ateneu. VI, 26. Fllocoro, fragm. 156. Clitodemo. fr. 11. Pólux, VI, 35.

(9) Demóstenes, Pro corona, 53. Aristóteles. Política, VII, 1, 19. Pólux, VIII, 155. Pausânias, V, 15.

(10) Fragmento de Safo, em Ateneu, XV, 16.

(11) Fragmento de Chaeremon, em Ateneu, XV, 19.

(12) Platão, Leis, XII, 956. Cícero, De legib., II, 18. Virgílio, V, 70, 774; VII, 135; VIII, 274. O mesmo acontece entre os hindus: nos atos religiosos era obrigatório o uso da coroa e de roupas brancas (Leis de Manu, IV, 66, 72).

(13) Hermias, em Ateneu. IV, 32.

(14) Vide os autores citados por Ateneu, I, 58; IV, 31 e 32; XI, 66.

(15) Ateneu, IV, 19; IV, 20.

(16) Aristóteles, Política, VII, 9, 2-3, ed. Didot, p. 611.

(17) Virgílio, VII, 174 e seg.; VIII, 102-111, 283-305.

(18) Dionisío, II, 23. Aulo Gélio, XII, 8. Tito Lívio, XL, 59.

(19) Cícero, De oratore, III, 19. A palavra epulum empregava-se propriamente para os banquetes em honra dos deuses. Festo, ed. Müller, p. 78. Vide Tito Lívio, XXV, 2; XXVII, 36; XXIX, 38; XXXIII, 42; XXXIX, 46. Cícero, Pro Murena, 36.

(20) Dionísio, II, 23, onde fala dos banquetes comuns dos espartanos, que compara em outro lugar com os banquetes comuns dos romanos.

(1) Festo, v. Amburbiales, ed. Müller, p. 5. Macróbio, Sat., III, 5. A descrição da festa está em Tibulo, liv. II, elegia 1.

(2) Plutarco, Numa, 14. Varrão, L. L., VI, 16. Plínio, XVIII, 2. Quanto às festas que deviam preceder as colheitas, vide Virgílio, Geórgias, I, 340-350.

(3) Platão, Leis, II, p. 584. Demóstenes, In Midiam, 10. Demóstenes, In Timocratea, 29. Cícero, De legibus, II, 12. Macróbio, I, 16.

(4) Demóstenes, In Timocratea, 29. Idêntica prescrição em Roma: Macróbio, I, 15. Cf., Cíc., De leg., II, 12.

(5) Varrão, De líng. lat., VI, 27. Sérvio. ad Aen.. VIII, 654. Macróbio, Sat., I, 14; I, 15.

(6) Censorino, De die natali, 22.

(1) Chamava-se a essa operação katháirein ou aghnéuein pólin. Hiponax, ed. Bergk, fragmento 60. — Em latim dizia-se lustrare: Cícero, De divin., I, 45. Sérvio, ad Aen., I, 283.

(2) Diógenes Laércio, Sócrates, c. 23. Harpocrácio, v. Phármakos. Do mesmo modo era purificado anualmente o lar doméstico: Ésquilo, Coéforas, 966.

(3) Varrão, De ling, lat., VI, 86-87.

(4) Tito Lívio, I, 44. Dionísio de Halic., IV, 22. Cícero, De oratore, II, 66. Sérvio, ad Aen., III, 279. Cf. ibid., VIII, 183. Valério Máximo resume a oração que era pronunciada pelo censor (Valér. Máx., IV, 1, 10). Estes costumes continuaram até o tempo do império; Vopisco, Aureliano, 20. — Tito Lívio, I, 44 parece acreditar que a cerimônia da lustração foi instituída por Sérvio. Ela é tão antiga quanto Roma. A prova está em que a lustratio do Palatino, isto é, da primitiva cidade de Rômulo, continuou a ser celebrada todos os anos. Varrão, De ling. lat., VI, 34. Sérvio Túlio foi talvez o primeiro a aplicar a lustratio à cidade já engrandecida por ele, e instituiu o censo que acompanhava a lustração embora continuasse a constituir cerimônia à parte.

(5) Podia ser vergastado e vendido como escravo: Dionísio, IV, 15; V, 15; Cícero, Pro Caecina, 34. Os cidadãos ausentes de Roma deviam estar presentes no dia da lustração; nenhum motivo podia dispensá-los desse dever. Tal era a regra original, que não foi suavizada senão nos dois últimos séculos da república: Veléio, II, 7, 7; Tito Lívio, XXIX, 37: Aulo Gélio, V. 19.

(6) Cícero, De legibus, III, 3; Pro Flacco, 32. Tito Lívio. I, 43; Dionísio, IV, 15; V, 75. Varrão, De ling. lat., VI, 93. Plutarco, Cato major, 16.

(1) Sobre esse pensamento dos antigos, vide Cássio Hemina, em Macróbio, I, 16.

(2) Sobre os dias nefastos entre os gregos, vide Hesíodo, Opera et dies, v. 710 e seguintes. Os dias nefastos chamavam-se hemérai apóphrades (Lísias, Pro Phania, fragm., ed. Didot, t. II, p. 278). Cf. Heródoto, VI, 106. Plutarco, De defectu oracul., 14; De et apud Delphos, 20.

(3) Cícero, Pro Murena, 1. Tito Lívio, V, 14; VI, 41; XXXIX, 15. Dionísio, VII, 59; IX, 41; X, 32. Plínio, no Panegírico de Trajano, 63, lembra ainda o longum carmen comitiorum.

(4) Ésquines, In Tlmarchum, 23. Id, In Ctesiph., 2-6. Pólux, VIII, 104. Daqui a palavra de Aristófanes, Acarn., 44: Entòs toú kathármatos — para designar o lugar da assembléia. Of. Dinarca, In Aristog., 14.

(5) Demóstenes lembra essa oração, sem citar-lhe a fórmula: De falsa legat., 70. Podemos fazer dela uma idéia pela paródia que dela faz Aristófanes nos Thesmophoriazousae, v. 295-350.

(6) Aristófanes, Acarnianos, 171.

(7) Idem, Thesmoph., 381, e escoliastes. Era costume antigo. — Cícero, In Vatinium, 10. Sérvio, ad Aen., XI, 301, diz que entre os antigos todo o discurso começava por uma oração, e cita como prova os discursos que possuía de Catão e dos Gracos.

(8) Varrão, em Aulo Gélio, XIV, 7. Cf. Sérvio, ad Aen., I, 446; VII, 153. Cícero, Ad diversos, X, 12.

(9) Varrão, em Aulo Gélio, ibid. Suetônio, Augusto, 35. Díon Cássio, LIV, 30.

(10) Andócides, De suo reditu, 15; De mysteriis, 44; Antífon, Super choreuta, 45; Licurgo, In Leocratem, 122. Demóstenes, In Midam, 114. Diodoro. XIV, 4. Xenofonte, Helèn., II, 3, 52.

(11) Aristófanes, As Vespas, 860-865. Cf. Ilíada, XVIII, 504.

(12) Podem-se ver em Tito Lívio, I, 32, os “ritos” da declaração de guerra. Cf. Dionísio, II, 72; Plínio, XXII, 2, 5; Sérvio, ad Aen., IX, 52; X, 14. — Dionísio, I, 21, e Tito Lívio, I, 32, asseguram que essa instituição era comum a muitas cidades italianas. — Também na Grécia a guerra era declarada por um kéryx. Tucídides, I, 29; Pausânias, IV, 5, 8; Pólux, IV, 91.

(13) Tito Lívio, I, 19. — A descrição exata e minuciosa da cerimônia está em Virgílio, VII, 601-617.

(14) Dionísio, IX, 57. Xenofonte, Helên., III, 4, 3; IV, 7, 2; V, 6, 5. Vide em Xenofonte Resp. Laced., 13 (14), a série dos sacrifícios que o chefe de um exército espartano fazia antes de sair da cidade, antes de atravessar a fronteira, e que renovava depois, cada manhã, antes de dar qualquer ordem de marcha. — À partida de uma frota, os atenienses, como os romanos, oferecem sacrifícios; Cf. Tucídides, VI, 32, e Tito Lívio, XXIX, 27.

(15) Heródoto, IX, 19. Xenofonte, Resp. Lac., 13. Plutarco, Licurgo, 22. À frente da cada exército grego marchava um pyrphoros levando o fogo sagrado (Xenofonte, Resp. Lac., 13; Heród., VIII, 6; Pólux, I, 35; Hesíquio, v. Pyrphoros). Do mesmo modo, havia nos campos romanos um lar sempre aceso (Dionísio, IX, 6). Os etruscos também carregavam um lar com seus exércitos (Plutarco, Publícola, 17). Tito Lívio, II, 12, mostra também o accensus ad sacrificium foculus. O próprio Sila mantinha um lar aceso diante de sua tenda (Júlio Obsequens, 116).

(16) Heródoto, IX, 61-62.

(17) Ésquilo, Sete Chefes, 252-260. — Eurípides, Fenic., 573.

(18) Diodoro, IV, 5. Fócio: Thríambos epídeixis níkes.

(19) Tito Lívio, XLV, 39; V, 23; X, 7. Varrão, De ling. lat., VI, 68. Plínio, H. N., VII, 56; XXXIII, 7, 36.

Livro III - Cap. VIII

(1) Plutarco, De defectu oraculor., 14.

(2) Quanto aos velhos hinos que os gregos continuavam a cantar nas cerimônias, vide Pausânias, I, 18; VII, 15, in fine; VII. 21; IX, 27, 29, 30. Cícero, De legibus, II, 15, faz notar que as cidades gregas, cuidavam muito de conservar os ritmos antigos. Platão, Leis, VII, p. 799-800, conforma-se com as antigas regras quando prescreve que os cânticos e ritmos continuem imutáveis. — Entre os romanos, as fórmulas de oração estavam fixadas por um ritual, vide Varrão, De ling. lat., e Catão, passim. Quintiliano, I, 11.

(3) Demóstenes, In Neoeram, 116-117. Varrão cita algumas palavras dos libri sacrorum, que se conservavam em Atenas, e cuja linguagem era arcaica (De ling. lat., V. 97). — Acerca do respeito dos gregos pelos ritos antigos, vide alguns exemplos curiosos em Plutarco, Quest graec., 26, 31, 35, 36, 58. O pensamento antigo está bem expresso por Isócrates, Areopagítica., 29-30, e em todo o discurso contra Neera.

(4) Pausânias, IV. 27. Plutarco. Contra Colotes, 17. Plínio, H. N., XIII, 21. Valério Máximo, I, 1. 3. Varrão, L. L., VI, 16. Censorino, 17. Festo, v. Rituales.

(5) Pólux, VIII, 128. Sabe-se que um dos significados mais antigos da palavra nómos é o de rito ou de regra religiosa. — Lisias, in Nicomachum, 17.

(6) Ateneu, XIV, 68, cita os hinos áticos de Atenas; Élio, II, 39, os dos cretenses; PIndaro, Pítie., V, 134, os de Cirene; Plutarco, Teseu, 16, os dos bocianos; Tácito, Ann., IV, 43, os vatum carmina, conservados por espartanos e messênios.

(7) Pátrión estin emín. Essas palavras aparecem freqüentemente em Tucídides, e entre os oradores áticos.

(8) Dionísio, II, 49. Tito Lívio, X, 33. Cícero, De divin., II. 41; I, 33; II, 23. Censorino, 12-17. Suetônío, Cláudio, 42. Macróbio, I, 12; V, 19. Solino, II, 9. Sérvio, VII, 678; VIII, 398. Cartas de Marco Aurélio, IV, 4.

(9) Os antigos anais de Esparta são mencionados por Plutarco, Adv. Coloten, 17; por Ateneu, XI, 49; por Tácito, Ann. IV, 43. Plutarco, Sólon, 11, fala dos de Delfos. Os próprios messêníos tinham Annales e monumenta sculpta aere prisco, que remontavam, diziam eles, à invasão dórica (Tácito, ibidem). Dionísio de Halicarnasso, De Thucyd. hist., ed. Reiske, t. VI, p. 819. Políbio também assinala os demosíai tõn póleon anagraphái (XII, 10).

(10) Cícero, De oratore, II, 13. Cf. Sérvio, ad Aen., I. 373. Dionísio declara que conhecia os livros sagrados e os anais secretos de Roma (XI, 62). — Na Grécia, em época bastante remota, houve logógrafos que consultaram e copiaram os anais sagrados das cidades; vide Dionísio, De Thucyd. hist., c. 5, ed. Reiske, p. 819.

Livro III - Cap. IX

(1) Aristóteles, Política, VI, 5, 11 (Didot, p. 600). Dionísio de Halic. II, 65.

(2) Suidas, v. Cháron.

(3) Ésquilo, Suppliantes, 369 (357). É conhecida a íntima relação existente entre o teatro e a religião. A representação era cerimônia do culto, e o poeta trágico, em geral, devia celebrar alguma das lendas sagradas da cidade. Essa a razão pela qual encontramos nos trágicos tantas velhas tradições, e até antigas formas de linguagem.

(4) Eurípides, Orestes, 1594-1597.

(5) Nicolau de Damasco, nos Fragm. hist. graec., t. III, p. 394.

(6) Demóstenes, In Neoeram, 74-81. Xenofonte, Resp. Lac, 13-14. Heródoto, VI, 57. Aristóteles, Pol., III, 9, 2.

(7) Virgílio, X, 175. Tito Lívio, V, 1. Censorino, 4.

(8) Cícero, De nat. deorum, III, 2; De rep., II, 10; De divinat., I, 17; II, 38. Vide os versos de Ênio, em Cíc., De div., I, 48. — Os antigos não representavam Rômulo em trajes de guerra, mas em vestes sacerdotais, com o bastão augural e a trábea (Ovídio, Fastos, VI, 376. Cf. Plínio, Hist. Nat., IX, 39, 136).

(9) Tito Lívio, I, 20. Sérvio, ad Aen., III, 268.

(10) Tito Lívio, I, 18. Dionísio, II, 6; IV, 80. — Essa é a razão pela qual Plutarco, resumindo um discurso de Tibério Graco, o faz dizer: He ghe basiléia táis meghístais hierourghíais kathosíotai pròs tò théion (Plut., Tibério, 15).

(11) Tucídides, V, 16, in fine.

(12) Plutarco, Agis, 11.

(1) Aristóteles, Pol., VI, 5, 11.

(2) Píndaro, Nemelanas, XI, 1-5.

(3) Aristóteles, Política, III, 9.

(4) Só nos referimos aqui aos primeiros tempos das cidades. Veremos mais adiante que houve época em que a hereditariedade deixou de ser regra; em Roma, a realeza nunca foi hereditária, isso devido à fundação relativamente recente de Roma, em época em que a realeza era atacada e desprestigiada por toda parte.

(5) Heródoto, I, 142-148. Pausânias, VII, 1-5.

(6) Sófocles, Édipo rei, 34.

(7) Estrabão, XIV, 1, 3. Ateneu, XIII, 36, p. 576.

(8) Tito Lívio, III, 39. Suetônio, Júlio, 6.

(9) Cícero, De rep., I, 33.

Livro III - Cap. X

(1) Em Mégara, na Samotrácia. Tito Lívio, XLV, 5. Boeckh, Corp. inscr. gr., n.° 1052.

(2) Píndaro, Nemeianas, XI.

(3) Plutarco, Quest. rom., 40.

(4) Plutarco, Aristides, 21.

(5) Tucídides, VIII, 70. Apolodoro, Fragm. 21 (coll. Didot, t. I, p. 432).

(6) Demóstenes, In Midiam, 33. Ésquines, In Timarch, 19.

(7) Usavam-se coroas nos coros e nas procissões: Plutarco, Nícias, 3; Fócion, 37. Cícero, In Verr., IV, 50.

(8) Pólux, VIII, e, IX, n.°s 89 e 90; Lísias, De Ev. prob., 6-8; Demóstenes, In Neaeram, 74-79; Licurgo, coll. Didot, t. II, p. 362; Lísias, In Andoc., 4.

(9) A expressão oi en téleí ou tá téle tanto é usada para designar os magistrados de Esparta como para os de Atenas. Tucídides, I, 58; II, 10; III, 36; IV, 65; VI, 88; Xenofonte, Agesilau, I, 36; Helên., VI, 4, 1. Cf. Heródoto, I, 133; III, 18; Ésquilo, Pers, 204; Agam., 1202; Eurípides, Trach. 238.

(10) Cícero, De lege agr., II, 34. Tito Lívio, XXI, 63; IX, 8; XLI, 10. Macróbio, Saturn., III, 3.

(11) Tito Lívio, XXVII, 40.

(12) Tito Lívio, XXVII, 44.

(13) Varrão, L. L., VI, 54. Ateneu, XIV, 79.

(14) Platão, Leis, III, p. 690; VI, p. 759. Os historiadores modernos conjecturaram que o sorteio era invenção da democracia ateniense, e que houve tempo em que os arcontes eram eleitos pela cheirotonía. É pura hipótese, que não é apoiada por nenhum texto. Os textos, pelo contrário, mostram o sorteio como instituição muito antiga. Plutarco, que escrevia a vida de Péricles de acordo com historiadores contemporâneos, como Stesimbrote, afirma que Péricles nunca foi arconte, porque essa dignidade era conferida mediante sorteio em toda a antiguidade (Plut., Péricles, 9). Demétrio de Falera, que havia escrito obras sobre a legislação de Atenas, e em particular sobre o arcontado, dizia formalmente que Aristides havia sido arconte por sorteio (Demétrio, citado por Plutarco, Aristides, 1). É verdade que Indomeneu de Lâmpsaco, escritor posterior, dizia que Aristides havia sido elevado a esse cargo por escolha de seus concidadãos; mas Plutarco, que refere essa asserção (ibidem), acrescenta que, se ela é exata, é necessário entender que os atenienses fizeram uma exceção em favor do mérito eminente de Aristides. Heródoto, VI, 109, deixa bem claro que, nos tempos da batalha de Maratona, os nove arcontes, e, entre eles, o polemarca, eram nomeados mediante sorteio. Demóstenes, In Leptinem, 90, cita uma lei da qual resulta que nas tempos de Sólon a sorte já designava os arcontes. Enfim, Pausânias, IV, 5, dá a entender que o arcontado anual mediante sorteio sucedeu imediatamente ao arcontado decenal, isto é, em 683. Sólon, é verdade, foi escolhido para ser arconte; Aristides talvez também o tenha sido; mas nenhum texto implica na existência da regra de eleição. O sorteio parece ser tão antigo quanto o próprio arcontado; pelo menos devemos pensar assim na ausência de textos contrários. Não era, aliás, um processo democrático. Demétrio de Falera diz que nos tempos de Aristides não se procedia ao sorteio senão entre as famílias mais ricas. Antes de Sólon, o sorteio só era feito entre os Eupátridas. Mesmo nos tempos de Lísias e de Demóstenes não se colocava na urna o nome de todos os cidadãos (Lísias, De invalido, 13; In Andocidem, 4; Isócrates, ph. antidóseos, 150). Não se conhecem bem as regras desse sorteio, que, aliás, era confiado aos tesmótetas em exercício; tudo o que se pode afirmar é que em nenhuma época os textos assinalam a prática da cheirotonía para os nove arcontes. — É digno de nota que, quando a democracia se apoderou do governo, criou os estrategos, e lhes deu toda a autoridade; para esses chefes ela não pensou em pôr em prática o sorteio, e preferiu elegê-los mediante votação. De sorte que havia sorteio para as magistraturas que datavam da idade aristocrática, e eleição para as que datavam da idade democrática.

(15) Valério Máximo, I, 1, 3. Plutarco, Marcelo, 5. Tito Lívio, IV, 7.

(16) As regras do antigo direito público de Roma, que caíram em desuso nos últimos séculos da república, são atestadas por numerosos textos. Dionísio, IV, 84, deixa bem claro que o povo não votava senão nos nomes propostos pelo presidente dos comícios. Se algumas centúrias votavam em outros nomes, o presidente podia não levar em conta esses votos: Tito Lívio, III, 21; VII, 22. — Esse último fato já é do ano 352 A. C., e a narrativa de Tito Lívio mostra o direito do presidente muito desprezado desta vez pelo povo. Esse direito, que daí em diante foi letra morta, não foi todavia abolido legalmente, e mais de um cônsul ousou, depois, lembrá-lo. Em Aulo Gélio, VI, 9, o presidente, que é um simples edil, recusa-se a aceitar e a contar os sufrágios. Em outro lugar o cônsul Pórcio declara que não aceitará semelhante candidato (Tito Lívio, XXXIX, 39). Valério Máximo, III, 8, 3, conta que na abertura dos comícios perguntava-se ao presidente C. Pison, se caso o povo votasse em Lólio Palicano, ele o proclamaria eleito; Pison responde negativamente, e a assembléia vota em outro candidato. Vemos em Veléio, II, 92, um presidente de comícios proibir a um candidato de se apresentar, e, como este insistisse, declarar que, mesmo se escolhido pelos sufrágios de todo o povo, ele não o considerará eleito. Ora, a proclamação do presidente, renuntiatio, era indispensável, e sem ela não havia eleição.

(17) Tito Lívio, II, 42; II, 43. Dionísio, VIII, 87.

(18) Vemos exemplos disso em Dionísio, VIII, 82, e Tito Lívio, II, 64.

(19) Cícero, De legibus, III, 3. Sabe-se que Cícero, no De legibus, apenas reproduz e explica as leis de Roma.

(20) As diferentes perguntas feitas nesse exame são referidas por Dinarca, In Aristogitonem, 17-18, e em Pólux, VIII, 85-86. Cf. Licurgo, fragm, 24 e Harpocrácio, v. Hérkeios.

(21) Cf. Dinarca, em Harpocrácio; Pólux, VIII, 85.

(22) Dinarca. In Aristog., 17-18. Perguntava-se também ao arconte se ele havia feito todas as campanhas para as quais havia sido convocado, e se pagara todos os impostos.

(23) Platão, Leis, VI, p. 759. — Por motivos análogos, afastava-se do arcontado todo o cidadão doente ou defeituoso (Lísias, De invalido, 13). Isso porque um defeito físico, sinal do castigo dos deuses, tornava a pessoa indigna de desempenhar qualquer sacerdócio, e, por conseqüência, de exercer qualquer magistratura.

(24) cf. Díonísio, II, 73. — Não é necessário advertir que nos últimos séculos da república esse exame, se ainda era feito, não passava de mera formalidade.

Livro III - Cap. XI

(1) Cícero, De legibus, II, 19.

(2) Cícero, De legibus, II, 9, 19, 20, 21; De aruspic. resp., 7; Pro domo, 12, 14. Dionísio, II, 73. Tácito, Annales, I, 10; Hist. I, 15. Díon Cássio, XLVIII, 44. Plínio, Hist. Nat., XVIII, 2. Aulo Gélio, V, 19; XV, 27. Pompônio, no Digesto, De origine juris.

(3) Dai se originou essa velha definição, que os jurisconsultos conservaram até Justiniano: Jurisprudentia est rerum divinarum atque humanarum notitia.

(4) Iseu, De Apollod. hered., 30.

(5) Pólux, VIII, 90. Andócides, De mysteriis, 111.

(6) Dionísio, IX, 41. Essa regra, mui rigorosamente observada no primeiro século da república, desapareceu mais tarde, ou foi abolida.

(7) Dionísio, X, 4. Cf. Tito Lívio, III. 41.

(8) Andócides, De mysteriis, 82. Cf. Demóstenes, In Evergum, 71: In Leptinem, 158. Pólux, IX, 61. — Aulo Gélio, XI, 18.

(9) Varrão, De líng. lat., VI, 16.

(10) Díonísio, X, 1.

(11) Eliano, H. V., II, 39.

(12) Aristóteles, Probl., XIX, 28.

(13) Títo Lívio, I, 26.

(14) Némo, partilhar; nómos, divisão, medida, ritmo, canto; vide Plutarco, De musica, p. 1133; Píndaro, Pyth., XII, 41: Fragm., 190 (edit. Heyne). Escoliastes de Aristófanes, Cav., 9.

(15) Galo, Instit., IV, 11.

Livro III - Cap. XII

(1) Aristóteles, Política, II, 6, 21 (II, 7).

(2) Boeckh, Cor. Inscr., n.° 3641 b, t. II, p. 1131. Do mesmo modo, em Atenas, o homem designado para tomar parte nos banquetes públicos, e que não cumprisse esse dever, era julgado e punido; vide lei citada por Ateneu, VI, 26.

(3) Dionísio, IV, 15; V, 75. Cícero, Pro Caecina, 34. Veléio, II, 15. Admite-se exceção para os soldados em campanha; mas ainda era necessário que o censor fizesse com que anotassem seus nomes, a fim de que, inscritos no registro da cerimônia, eles fossem considerados presentes.

(4) Xenofonte, Memor., I, 1.

(5) Acerca dos sacrifícios que os prítanes ofereciam diariamente em nome da cidade, vide Antífon, Super choreuta, 45.

(6) A fórmula completa desse juramento encontra-se em Pólux, VIII, 105-106.

(7) Decreto relativo aos plateanos, em Demóstenes, In Neaeram, 104. Cf. ibidem, 113. Vide ainda Isócrates, Panegyr., 43, e Estrabão, IX, 3, 5.

(8) Virgílio, En., III, 406. Festo, v. Exesto. Sabe-se que o vocábulo hostis era aplicado ao estrangeiro (Macróbio, I, 17; Varrão, De ling, lat., V. 3; Plauto, Trinummus, I, 2, 65); hostilis facies, em Virgílio, significa o rosto de um estrangeiro.

(9) Digesto, Liv. XI, tít. 6, 36.

(10) Pode-se ver exemplo dessa regra, para a Grécia, em Plutarco, Aristides, 20, e para Roma, em Tito Lívio, V, 50.

(11) Essas regras dos tempos antigos tornaram-se mais brandas com o tempo; os estrangeiros adquiriram o direito de entrar nos templos da cidade, e neles oferecer suas dádivas. Mas ainda continuaram a existir certas festas e sacrifícios dos quais o estrangeiro ainda era excluído; vide Boeckh, Corp. inscr., n.° 101.

(12) Heródoto, IX, 33-35. Todavia, Aristóteles diz que os antigos reis de Esparta concediam de bom grado o direito de cidadania (Política, II, 9, 12).

(13) Demóstenes, In Neaeram, 89, 91, 92, 113, 114.

(14) Plutarco, Sólon, 24. Cícero, Pro Caecina, 34.

(15) Aristóteles, Política, III, 1, 3. Platão, Leis, VI.

(16) Demóstenes, In Neaeram, 49. Lísias, In Pancleonem, 2, 5, 13. Pólux, VIII, 91. Harpocrácio, v. Polémarchos.

(17) Xenofonte, De vectigal, II, 6. O estrangeiro podia obter, por favor individual, o que o direito grego chamava de énktesis, e o direito romano de jus commercii.

(18) Demóstenes, In Neaeram, 16. Aristófanes, Aves, 1652, Aristóteles, Polit., III, 3, 5. Plutarco, Péricles, 37. Pólux, III, 21. Ateneu, XIII, 38. Tito Lívio, XXXVIII, 36 e 43. Gaio, I, 67. Ulpiano, V, 4-9. Paulo, II, 9. — Era necessária lei especial da cidade para dar aos habitantes de outra cidade a epighamía ou o connubium.

(19) Ulpiano, XIX, 4. Demóstenes, Pro Phorm., 6; In Eubulidem. 31.

(20) Cícero, Pro Archía, 5. Gaio, II, 110.

(21) Pausânias, VIII, 43.

(22) Digesto, liv. XI, tít. 7, 2; liv. XLVII, tít. 12, 4.

(23) Harpocrácio, v. Prostátes. Pólux, III, 56. Licurgo, In Leocratem, 21. Aristóteles, Política, III, 1, 3.

(24) Sobre a atimía, em Atenas, vide Ésquines, In Timarchum, 21: Andócidas, De mysteriis, 73-80; Plutarco, Fócion, 26, 33, 34, 37. Sobre a atimía, em Esparta, Heródoto, VII, 231; Tucídides, V, 34; Plutarco, Agesilau, 30. — Em Roma existia a mesma pena, designada pelas palavras infamia ou tribu movere. Tito Lívio, VII, 2; XXIV, 18; XXIX, 37; XLII, 10; XLV, 15; Cícero, Pro Cluentio, 43; De oratore, II, 67; Valério Máximo, II, 9, 6; Ps. Asconius ed. Orelli, p. 103; Digesto, liv. III, tít. 2. Dionísío, XI, 63, traduz infames por átimos e Díon Cássío, XXXVIII, 13, traz tribu movere por atimázein.

(25) Ésquines, In Timarchum. Lísias, In Andocidem, 24.

(26) Plutarco, Agesilau, 30. Lísias, In And., 24. Demóstenes, In Midiam, 92. O discurso contra Neera, 26-28, observa que o átimos não era admitido nem para depor em justiça.

(27) Em Esparta, não podia nem comprar, nem vender, nem contrair casamento regular, nem casar a filha com um cidadão. Tucídides, V, 34. Plutarco, Agesilau, 30.

Livro III - Cap. XIII

(1) Daí a fórmula de julgamento pronunciada pelo jovem ateniense: Amynó ypèr tõn hierõn. — Pólux, VIII, 105. Licurgo, In Leocratem, 78.

(2) Cícero, Pro domo, 18. Tito Lívio, XXV, 4. Ulpiano, X, 3.

(3) Festo, ed. Müller, p. 2.

(4) Heródoto, VII, 231.

(5) Sófocles, Édipo Rei, 229-250. — O mesmo acontecia com a atimia, que era uma espécie de exílio doméstico.

(6) Platão, Leis, p. 881.

(7) Ovídio, Tristes, I, 3, 4.

(8) Tito Lívío, III, 58; XXV, 4. Dionísio, XI, 46. Demóstenes, In Midiam, 43. Tucídides, V, 60. Plutarco, Temístocles, 25. Pólux, VIII, 99. — Essa regra foi por vezes suavizada: em certos casos, os bens podiam ser deixados ao exilado, ou transmitidos a seus filhos, Platão, Leis, IX, p. 877. Aliás, não é necessário confundir em nada o ostracismo com o exílio; o primeiro não acarretava o confisco dos bens.

(9) Institutas de Justiniano, I, 12, 1. Gaio, I, 128. Do mesmo modo, o exilado não ficava mais sob o poder do pai (Gaio, ibidem). Rompidos os laços de família, desapareciam os direitos de hereditariedade.

(10) Vide em Dionísio, VIII, 41, os adeuses de Coriolano a sua mulher; “Não tens mais marido; oxalá possas encontrar outro, mais feliz do que eu!” — E acrescenta que seus filhos não têm mais pai. Não se trata de simples declamação retórica: é a expressão do direito antigo.

(11) Horácio, Odes, III, 5. — As palavras capitis minor explicam-se pela capitis diminutio do direito romano, que era a conseqüência do exílio. — cf. Gaio, I, 129. — Régulo, que era prisioneiro sob palavra, era legalmente servus hostius, segundo a expressão de Gaio (ibidem), e, por conseqüência, não tinha mais direitos de cidadão nem de família; vide ainda Cícero, De officiis, III, 27.

(12) Tucídides, I, 138.

(13) É o pensamento expresso por Eurípides, Electra, 1315; Fenic. 388, e Platão, Criton, p. 52.

Livro III - Cap. XIV

(1) Pólux, III, 21, lei citada em Ateneu, XIII, 38. Demóstenes, In Neaeram 16. Plutarco, Péricles, 37.

(2) Lísias, De antiqua reip. forma, 3. Demóstenes, Pro corona, 91. Isócrates, Platale, 51. — Gaio, I, 67. Ulpiano, V, 4. Tito Lívio, XLIII, 3; XXXVIII, 36.

(3) Plutarco, Teseu, 25. Platão, Leis, VIII, p. 842. Pausânias, passim. Pólux, I, 10. Boeckh, Corp. inscript., t. II, p. 571 e 837. — A linha dos limites sagrados do ager romanus existia ainda no tempo de Estrabão, e sobre cada uma dessas pedras os sacerdotes ofereciam anualmente um sacrifício (Estrabão, V, 3, 2).

(4) É bastante claro que não falamos aqui senão da idade antiga das cidades. Esses sentimentos, com o tempo, tornaram-se muito fracos.

Livro III - Cap. XV

(1) Dionísio, X, 16.

(2) Macróbio, Saturnales, II, 9.

(3) Tito Lívio, XLII, 57; XLV, 34.

(4) Plutarco, Agesilau, 23; Apotegmas dos Lacedemônios. O Próprio Aristides não faz exceção; parece haver professado que a justiça não tinha força de uma cidade para outra; vide o que diz Plutarco, Vida de Aristides, c. 25.

(5) Tucídides, III, 50; III, 68.

(6) Tito Lívio, VI, 31; VII, 22.

(7) Tito Lívío, II, 34; X, 15. Plínio, Hist. Nat., XXXV, 12.

(8) Eurípides, Troianas, 25-28. — Às vezes o vencedor levava os deuses consigo. Outras vezes, quando se estabelecia na terra conquistada, arrogava-se o direito de continuar o culto aos deuses ou aos heróis do país. Tito Lívio conta que os romanos, senhores de Lanúvio “lhes restituíram seus cultos”, prova de que, pelo simples fato da conquista, os romanos lho haviam tirado; e puseram apenas esta condição: que teriam o direito de entrar no templo de Juno Lanuvina (Tito Lívio, VIII, 14).

(9) Os vencidos perdiam o direito de propriedade sobre suas terras. Tucídides, I, 98; III, 50; III, 58. Plutarco, Péricles, 11. — Sículo Flaco, De cond. agror., nos Gromatici, ed. Lachmann, p. 138. Siculo Flaco, p. 136. Cícero, In Verrem, II, III, 6; De lege agraria, I, 2; II, 15. Apiano, Guerras Civis, I, 7. É em virtude desse princípio que o solum provinciale pertencia por direito ao povo romano; Gaio, II, 7.

(10) Tito Lívio, I, 38; VII, 31; XXVIII, 34. Políbio, XXXVI, 2. Encontra-se a fórmula de oferecimento também em Plauto, Anfitrião, v. 71, 101.

(11) Iliada, III, 245-301.

(12) Tucídides, V, 47, Cf. Xenofonte, Anábase, II, 2, 9.

(13) Tucídides, II, 71.

(14) Tucídides, V, 47.

(15) Idem, V, 19.

(16) Virgílio, XII, v. 13, 118-120, 170-174, 200-215. Cf. VIII, 641.

(17) Tito Lívio, IX, 5. O próprio historiador, em outro lugar, I, 24, dá a descrição completa da cerimônia, e parte da precatio. A mesma se encontra também em Políbio, III, 25.

(18) Cícero, De nat. deorum. III, 19.

(19) Tucídides, II, 71.

(20) Idem, V, 23. Plutarco, Teseu, 25, 33.

(21) Tito Lívio, VIII, 14.

(22) Pausânias, V, 15, 12.

(23) Por isso Atenas orava por Quios, e reciprocamente. Vide Aristófanes, Aves, v. 880, e um curioso fragmento de Teopompo, citado pelo escoliastes sobre o mesmo verso.

(24) Virgílio, Eneida, III, 15. Cf. Tito Lívio, I, 45.

(25) Tito Lívío, V, 50. Aulo Gélio, XVI, 13.

Livro III - Cap. XVI

(1) Pausânias, VIII, 53.

(2) Heródoto, I, 143.

(3) Estrabão, VIII, 7, 2.

(4) Heródoto, I, 148. Estrabão, XIV, I. 20. Diodoro, XV, 49.

(5) Heródoto, I, 144. Aristides de Mileto, nos Fragmenta hist. graec., ed. Didot, t. IV, p. 324.

(6) Pausânias, IX, 34.

(7) Idem, VII, 24.

(8) Estrabão, VIII, 6, 14. Com o tempo introduziram-se mudanças; os argianos tomaram o lugar de Nauplia na cerimônia sagrada, e os lacedemônios o de Prásias.

(9) Tucídides, III, 104. Essa anfictionia foi restabelecida no século quinto por Ateneu, mas com espírito completamente diverso,

(10) Ésquines, De falsa legat., 116, enumera os povos que participavam da posse do templo; eram os tessálios, os beócios, os dórios de tetrápolis, os jônios, os perrebos, os magnetos, os dólopes, os lócridas, os eteus, os ftiótidas, os maleses e os focianos. Esparta aparecia como Colônia de Dórida, Atenas como parte do povo jônio. Cf. Pausânias, X, 8; Harpocrácio, v. Amphictyónes.

(11) Estrabão, IX, 5, 17.

(12) Idem, IX. 3, 6. Meineke pensou que essa passagem estava interpolada, e tirou-a de sua edição. Certamente é da autoria de algum antigo, e, muito provavelmente, de Estrabão. Aliás, o mesmo pensamento é expresso por Dionísio de Halicarnasso, IV, 25.

(13) Platão, Leis, XII, p. 950.

(14) Tucídides, III, 58; III, 59; V, 18.

(15) Aristófanes, Lysistrata v. 1130 e seg.

(16) Muito tarde, e no tempo de Filipe, de Macedônia, é que os anfictiões ocuparam-se dos interesses políticos.

(17) Dionísio, IV, 49. Varrão, VI, 25, Plínio, H. N., III, 9, 69. Cf. Tito Lívio, XLI, 16. Dionísio, IV, 49.

(18) Tito Lívio, V. 1.

(19) Etymologicum magnum, v. Prytanéia; Heródoto, I, 136.

(20) Heródoto, I, 146; Tucídides, I, 24; VI, 3-5; Diodoro, V, 53, 50, 81, 83, 84; Plutarco, Timoleão.

(21) Tucídides, III, 34; VI, 4. Varrão, De língua. lat., V, 143.

(22) Heródoto, VII, 51; VIII, 22, chama os atenienses de pais dos jônios.

(23) Esse pensamento é muitas vezes expresso pelos antigos: Políbio, XII, 10; Dionísio, III, 7; Tito Lívio, XXVII, 9; Platão, Leis, VI; Tucídides, I, 38.

(24) Políbio, XXII, 7, 11. Plutarco, Timoleão, 15.

(25) Tucídides, VI, 4. Políbio, IX, 7. Estrabão, IV, 1, 4.

(26) Heródoto, I, 147; VII, 95.

(27) Tucídides, I, 25; escoliastes de Aristófanes, Nuvens, 385; Isócrates, Panegírico, 7, 31.

(28) Diodoro, XII, 30; Tucídides, VI, 3.

(29) Varrão, De lingua lat., V. 144; Dionísio, II, 52; Plutarco, Coriolano, 28.

(30) Escoliastes de Tucídides, I, 25.

(31) Esse laço político, apenas tentado por Corinto (Tucídides I, 56), não se constituiu verdadeiramente senão nas clerouquias de Atenas e nas colônias de Roma; umas e outras são de data relativamente recente, e não vamos tratar delas aqui.

Livro III - Cap. XVII

(1) Quanto à procissão das tensae, vide Títo Lívio, V, 41; Suetônio, Vespasiano, 5. Festo, ed. Müller, p. 364.

(2) Tito Lívio, XXXIV, 55; XL, 37; Plínio, XXXII, 2, 10.

(3) Plauto, Anfitrião, II, 2, 145; Ovídio, (Fastos, V, 421 e seg.) descreve os ritos usados para afastar os fantasmas; deve-se levantar à meia-noite, atravessar a casa descalço, estalar o dedo médio contra o polegar, colocar favas pretas na boca, e lançá-las à terra, voltando a cabeça e dizendo: “Eis o que te dou; por estas favas eu me resgato.” — Os espíritos recolhem as favas, e, satisfeitos, vão-se embora. Este era o antigo rito.

(4) Juvenal, Sat., X, 55. Disso encontramos testemunhas nas pequenas placas de chumbo encontradas em Delfos, por Carapanos.

(5) Cícero, De divin., I, 2. Valério Máximo, II, 2, 1.

(6) Tito Lívio, XXIV, 10; XXVII, 4; XXVIII, 11, et alias, passim.

(7) Vide, entre outros, as fórmulas que trazem Catão, De re rust., 160, e Varrão, De re rust., II, 1; I, 37. Cf. Plínio, H. N., XXVIII, 2-5 (4-23). — A lei das Doze Tábuas castiga o homem qui frugis excantassit (Plínio, XXVIII, 2, 17; Sérvio, ad Eclogas, VIII, 99; Cf. Cícero, De rep., IV, 10).

(8) Tito Lívio, V, 23; id., X, 7. Plínio, H. N., XXXIII, 7, 36. Dionísio, II. 34; V, 47. Apiano, Guerras Púnicas, 66. Cf. Juvenal, X, 38.

(9) Heródoto. VI, 106: “À notícia do desembarque dos persas, os espartanos quiseram socorrer os atenienses; mas era-lhes impossível fazê-lo de imediato, pois não queriam violar a regra (tòn nómon. a regra religiosa), e declararam que não iniciariam a luta senão no dia em que a lua estivesse em sua plenitude.” — O historiador não declara que isso foi simples pretexto. Devemos julgar os antigos de acordo com suas idéias, e não de acordo com as nossas.

(10) Xenofonte, Resp. at., III, 2. Sófocles diz que Atenas é a mais piedosa das cidades (Édipo em Colona, 1007). Pausânias nota, I, 24, que os atenienses davam mais atenção que os demais povos a tudo o que dizia respeito ao culto dos deuses.

(11) Aristófanes, Nuvens, 305-309.

(12) Platão, Alcibíades, II, p. 148.

(13) Plutarco, Sólon, 21.

(14) Vide o que Isócrates diz da fidelidade dos antigos aos velhos ritos, Areopagítica, 29-30. Cf. Lísias, Adv. Nicomach, 19. Demóstenes lembra também o velho princípio que exige que os sacrifícios sejam feitos de acordo com os ritos antigos, sem que nada fosse omitido ou modificado (In Neaeram, 75).

(15) Plutarco, Teseu, 20, 22, 23.

(16) Platão, Leis, VII, p. 800. Filocoro, Fragmentos, 183. Xenofonte, Helênicas, I, 4, 12.

(17) Aristófanes, Paz, 1084.

(18) Tucídides, II, 8. Platão também fala “dos sacrificadores ambulantes, e dos adivinhos que batiam às portas dos ricos” (Política, II).

(19) Aristófanes e o escoliastes, Aves, 721. Eurípides, Íon, 1189.

(20) Aristófanes, Aves, 596.

(21) Aristófanes, Aves, 718. Xenofonte, Memoráveis, I, 1, 3: “Eles acreditam na adivinhação, consultam as aves, as vozes, os sinais, as entranhas das vítimas.” — Xenofonte assegura que Sócrates acreditava nos áugures, e recomendava o estudo da predição: ibidem, I, 1, 6; IV, 7, 10. Ele próprio era muito supersticioso; acreditava nos sonhos (Anábase, III, 1; IV, 3); consultava as entranhas das vítimas (ibid., IV, 3), e estava rodeado de adivinhos (ibid., V, 2, 9; VI, 4, 13). Vide em Anábase (III, 2) a cena do espirro.

(22) É a propósito do próprio Péricles que Plutarco nos traz esse detalhe (Plut., Péricles, 37, de acordo com Teofrasto).

(23) Aristófanes, Acarnianos, 171.

(24) Plutarco, Teseu, 22.

(25) Aristófanes, Aves, 436.

(26) Licurgo, In Leocratem, 1. Aristófanes, Cavaleiros, 903, 999, 1171, 1179.

(27) Plutarco, Nícias, 4, 5, 6, 13.

(28) Plutarco, Nícias, 23. Tucídides, VI, VII. Diodoro, XII, XIII.

Livro III - Cap. XVIII

(1) Tucídides, I, 105; Plutarco, Fócion, 24; Pausânias, I, 26. — Xenofonte, Helênicas, VI, 4, 17.

(2) Aristóteles, Econom., II. O autor cita os exemplos de Bizâncio, de Atenas, de Lâmpsaco, de Heracléia de Pont., de Quios, de Clasômenes, de Éfeso.

(3) Pólux, III, 48. Cf. VIII, 40. Plutarco, Lisandro, 30. — Em Roma, um decreto dos censores atingiu os celibatários com multa, Valério Máximo, II, 9; Aulo Gélio, I, 6; II, 15. Cícero diz ainda: Censores... coelibes esse prohibento (De legib., III, 3).

(4) Plutarco, Licurgo, 24. Pólux, VIII, 42. Teofrasto, fragmento, 99

(5) Ateneu, X, 33. Eliano, H. V., II, 38. Teofrasto, fr. 117.

(6) Xenofonte, Resp. Lac., 7. Tucídides, I, 6. Plutarco, Licurgo, 9, Heracléia de Pont., Fragmenta, ed. Didot., t. II, p. 211. Plutarco, Sólon, 21.

(7) Ateneu, XIII, 18. Plutarco, Cleômenes, 9. — “Os romanos não acreditavam que se devia deixar a cada um a liberdade de casar, de ter filhos, de viver a seu modo, de fazer festas, de seguir os próprios gostos, sem se submeter a uma inspeção ou julgamento.” Plutarco, Catão, 23.

(8) Cícero, De legib., III, 8; Dionísio, II, 15; Plutarco, Licurgo, 16.

(9) Plutarco, Sólon, 20.

(10) Aristófanes, Nuvens, 960-965.

(11) Platão, Leis, VII.

(12) Aristófanes, Nuvens, 966-968. O mesmo se passava em Esparta: Plutarco, Licurgo, 21.

(13) Xenofonte, Memor., I, 2, 31. Diógenes Laércio, Teofr., c. 5. Essas duas leis não duraram muito tempo, mas não deixam de provar a onipotência que se reconhecia ao Estado em matéria de instrução.

(14) Xenofonte, Memor., I, 1. Sobre a regra grafé asebéias, vide Plutarco, Péricles, 32; o discurso de Lísias contra Andócides; Pólux, VIII, 90.

(15) Pólux, VIII, 46. Ulpiano, Schol. in Demosth., in Midiam.

(16) Aristóteles, Política, III, 8, 2; V, 2, 5. Diodoro, XI, 87. Plutarco, Aristides, 1; Temístocles, 22. Filócoro, ed. Didot, p. 396. Escoliastes de Aristófanes, Cavaleiros, 855.

(17) Plutarco, Publícola, 12.

(18) Cícero, De legib., III, 3.

Livro IV - Cap. I

(1) Cícero, De oratore, I, 39; Aulo Gélio, V, 13.

(2) Diodoro, I, 28; Pólux, VIII, 3; Etymologicum magnum, p. 395. — Dionísio de Halicarnasso, II, 9; Tito Lívio, X, 6-8; IV, 2; VI, 41.

(3) Harpocrácio, v. Zeus erkeios, de acordo com Hipérides e Demétrio de Falero.

(4) Aristóteles, Política, V, 5, 3.

(5) Aulo Gélio, XV, 27. Veremos que a clientela transformou-se mais tarde; aqui não falamos senão da clientela dos primeiros séculos de Roma.

(6) Dionísio, II, 10.

(7) Tucídides, II, 15-16, descreve esses costumes antigos que ainda subsistiam na Ática em seu tempo, e que somente foram abandonados no princípio da guerra do Peloponeso.

Livro IV - Cap. II

(1) Tito Lívio, II, 64.

(2) Tito Lívio, II, 56.

(3) Dionísio, VI, 46; VII, 19; X, 27.

(4) Tito Lívio, XXIX, 27. Cícero, Pro Murena, I. — Macróbio (Saturn., I, 17) cita um velho oráculo do adivinho Márcio, que dizia: Praetor qui jus populo plebique dabit. — Não nos devemos surpreender se os escritores antigos nem sempre levaram em conta essa distinção essencial entre populus e plebe, pois tal distinção já não existia em seu tempo. Nos tempos de Cícero já de há muito a plebe fazia parte do populus. Mas as antigas fórmulas continuavam com vestígio da época em que as duas populações não se confundiam.

(5) Aulo Gélio, XIII, 14; Tito Lívio, I, 33.

(6) A existência das gentes plebéias só é constatada nos três últimos séculos da república. A plebe então se transformou, e, ao mesmo tempo em que conquistava os direitos dos patrícios, adotava também seus costumes, e se modelava à sua Imagem.

(7) Varrão, De ling. lat., V, 55; Dionísio, II, 7.

(8) Dionísio, X, 32; Cf. Tito Lívio, III, 31.

(9) Dionísio, IV, 43.

(10) Dionísio, VI, 89. A expressão oi pollói é a mais oomumente usada por Dionísio para designar a plebe.

Livro IV - Cap. III

(1) Aristóteles, Política, III, 9, 8. Plutarco, Quest. rom., 63.

(2) Estrabão, XIV, 1, 3. Diodoro, IV, 29.

(3) Tucídides, I, 18. Heródoto, I, 65.

(4) Estrabão, VIII, 5. Plutarco, Licurgo, 2.

(5) Plutarco, Licurgo, 5. Cf. ibid., 8.

(6) Aristóteles, Política, V, 10, 3, ed. Didot, p. 589. Heráclides nos Fragmentos dos Historiadores Gregos, col. Didot, t. II, p. 210.

(7) Aristóteles, Política, III, 1, 7.

(8) Xenofonte, Resp. Lac., 8, 11, 15; Helênicas, II, 4, 36; VI, 4, 1. Os éforos tinham a presidência da assembléia: Tucídides, I, 87. Decretavam o alistamento dos soldados: Xenofonte, Resp. Lac., 11; Helên., VI, 4, 17. Tinham o direito de julgar os reis, de prendê-los, de multá-los: Heródoto, VI, 85, 82; Tucídides, I, 131; Plutarco, Licurgo, 12; Ágis, 11; Apophth. lac., p. 221. Aristóteles chama o eforato de archè kyría ton meghíston (Política, II, 6, 14). — Os reis haviam conservado algumas atribuições militares, mas muitas vezes vêem-se os éforos dirigindo-os em suas expedições, ou chamando-os para Esparta (Xenofonte, Hel., VI, 4, 1; Tucídides, V, 63; Plutarco, Agesilau, 10, 17, 23, 28; Lisandro, 23).

(9) Heródoto, VI, 56, 57; Xenofonte, Resp. Lac., 14. Aristóteles, Política, III, 3, 2.

(10) Xenofonte, Resp. Lac., 13-15. Heródoto, VI, 56.

(11) Heródoto, V, 92. Aristóteles, Polit., V, 10. Isócrates, Nicocles, 24. Plutarco, De unius in rep. dominatione, c. 3.

(12) Plutarco, Teseu, 25; Aristóteles, citado por Plutarco, ibid.; Isócrates, Helena, 36; Demóstenes, In Neaeram, 75. A lenda de Teseu certamente havia sido alterada com o tempo, sobretudo por influência do espírito democrático.

(13) Plutarco, Teseu, 25 e 32. Diodoro, IV, 62.

(14) Vide os Mármores de Paros e comparai-o a Pausânias. I, 3. 2; IV, 5, 10; VII, 2, 1; Platão, Menexenes, p. 238 c; Eliano, II, V., V, 13.

(15) Pausânias, IV, 5, 10.

(16) Heráclides do Ponto, nos Fragmenta, t. II, p. 208; Nicolau de Damasco, Fragm., 51. Suidas, v. Hippoménes. Diodoro, Fragm., liv. VIII.

(17) Pausânias, II, 19.

(18) Heródoto, IV, 161. Diodoro, VIII, Fragm.

(19) Diodoro, VII; Heródoto, V, 92; Pausânias, II, 3 e 4. A gens dos baquíadas compreendia cerca de 200 membros.

(20) Cícero, De republ., II, 8.

(21) Tito Lívio, I, 15.

(22) Tito Lívio, I, 17. Cícero, De rep., II, 12.

(23) Cícero, De rep., II, 13. Cf. Ibidem, II, 17 e II, 20. — Se esses homens, já investidos da realeza, ainda têm necessidade de propor uma lei que lhes conceda o imperium, é porque realeza e imperium são coisas distintas. É necessário observar-se que a palavra imperium não designava exclusivamente o comando militar, mas se aplicava também à autoridade civil e política; vide exemplos desse significado: Tito Lívio, I, 17; I, 59; XXVI, 28; XXVII, 22; XXXII, 1; Cícero, De rep., II, 13; Tácito, Annales, VI, 10; Díon Cássio, XXXIX, 19, LII. 41.

(24) A família Júnia era patrícia: Dionísio, IV, 60. Os Júnios que encontramos mais tarde na história são plebeus.

(25) Dionísio, V, 26, 53, 58, 59, 63, 64. Tito Lívio não menciona esses fatos, mas alude a eles quando diz que os patrícios foram obrigados a fazer concessões à plebe, inservire plebi (II, 21).

Livro IV - Cap. IV

(1) Tucídides, II, 15-16.

(2) Píndaro, Isth., I, 41; Pausânias, VIII, 11; IX, 5.

(3) Plutarco, Quest. gr., 1.

(4) Aristóteles, Política, V, 5, 2.

(5) Idem, ibid., III, 9, 8; VI, 3, 8.

(6) Idem, ibid., V, 5, 4.

(7) Hippóbotai, Heródoto, V, 77. Plutarco, Péricles, 23. Estrabão, X, 1, 8. Aristóteles, Política, IV, 3, 2.

(8) Heródoto, VII, 155. Diodoro, VIII, 5. Dionísio. VI, 62.

Livro IV - Cap. V

(1) A divisão do patrimônio já é de lei em Roma nos meados do século V; a lei das Doze Tábuas admite a actio familiae erciscundae (Gaio, no Digesto, X, 2, 1).

(2) Aristóteles, Política, V, 5, 2, ed. Didot, p. 571,

(3) Tito Lívio, II, 1.

(4) Vide Belot, História dos Cavaleiros Romanos, liv. I, c. 2.

(5) Tito Lívio, II, 1. Festo, ed. Müller, p. 41. Durante vários séculos distinguiram-se os patres dos conscripti; vide Plutarco, Questões Romanas, 58.

Livro IV - Cap. VI

(1) Plutaico, Rômulo, 13. Dionísio, II, 9-10.

(2) Sobre esse ponto, veja-se um fato relatado por Plutarco na Vida de Mário, 5. Cf. Cícero, De oratore, I, 39.

(3) Tito Lívio, XXXIX, 19.

(4) Dionísio, V, 20; IX, 5. Tito Lívio, II, 16.

(5) Festo, v. Patres, ed. Müller, p. 246.

(6) Catão, De re rust., 143. Columela XI, 1, 19.

(7) Essa palavra é empregada no sentido de serviçal por Hesíodo, Opera et dies, v. 563, e na Odisséia, IV, 644. Dionísio de Halicarnasso, II, 9, compara os antigos tetas de Atenas aos clientes de Roma.

(8) Plutarco, Sólon, 13. Pólux IV, 165; Idem VII, 151.

(9) Sólon, edição Bach, p. 104, 105. Plutarco, Sólon, 15.

(10) Plutarco fala de hóroi. Nos tempos de Plutarco, e já nos tempos de Demóstenes, havia hóroi hipotecárias. Na época de Sólon, o hóros não era e não podia ser senão o terminus, emblema e garantia do direito de propriedade. No caso presente, o hóros marcava, sobre o campo ocupado pelo teta, o domínio eminente do eupátrida.

(11) A propriedade ainda pertencia à família mais que à pessoa. Somente mais tarde é que o direito de propriedade se transformou em direito individual. Só então a hipoteca passou a ser usada; mas não era adotada no direito ateniense senão pelo subterfúgio da venda sob condição de resgate.

(12) Aristóteles, Política, II, 9, 2.

(13) O liberto tornava-se cliente. A identidade desses dois termos é assinalada por uma passagem de Dionísio, IV, 23.

(14) Digesto, liv. XXV, tít., 2, 5; liv. L, t. 16, 195. Valério Máximo, V, 1, 4. Suetônio, Cláudio, 25. Díon Cássio, LV. A legislação era a mesma em Atenas; vide Lísias e Hipérides, em Harpocrácio, v. Apostasíou. Demóstenes, In Aristogitonem e Suidas, v. Anan kãion. Os deveres dos libertos são enumerados em Platão, Leis, XI. p. 915. É bastante claro, todavia, que nos tempos de Platão essas velhas leis não eram mais observadas.

(15) Festo, v. Patres.

(16) Institutas, de Justiniano, III, 7.

(17) Tito Lívio, II, 16, 64.

(18) Tito Lívio, II, 56.

(19) Dionísio, VII, 19; X, 27.

(20) Tito Lívio, II, 34.

(21) Tito Lívio, VI, 48.

(22) Cícero, De oratore, I, 39.

Livro IV - Cap. VII

(1) Algumas vezes o nome de rei foi conferido a esses chefes populares, quando descendiam de famílias religiosas. Heródoto, V, 92.

(2) Heródoto, V, 92. Aristóteles, Polit., V, 9, 22. Diodoro, VII, 2. Pausânias, II, 3-4. Nicolau de Damasco, fr. 58.

(3) Heródoto, I, 20; V, 67, 68; Aristóteles, Polit., III, 8, 3; V, 4, 5; V, 8, 4; Plutarco, Sólon, 14.

(4) Heródoto, VII, 155. Diodoro, XIII, 22. Aristóteles, V, 2, 6.

(5) Aristóteles notou que em todas as cidades antigas, onde a cavalaria havia sido a arma dominante, a constituição era oligárquica: Política, IV, 3, 2.

(6) Varrão, De ling. lat., VI, 13.

(7) Dionísio, IV, 5. Platão, Hiparco. Harpocrácio, v. Ermái.

(8) Heráclides, nos Fragmentos dos Historiadores Gregos, col. Didot, t. II, p. 217.

(9) Excetuamos Roma, na qual a nobreza, ao se transformar, conservou seu prestígio e força.

(10) Plutarco, Sólon, 12. Diógenes Laércio, I, 110. Cícero, De Leg., II, 11. Ateneu, XIII, 76.

(11) Sobre as quatro novas classes, e sobre os timémata, Plutarco, Sólon, 18; Aristóteles, citado por Harpocrácio, v. Hippas; Pólux; VIII, 129.

(12) Eurípides, Fenícias. Aleixo, em Ateneu, IV, 49.

(13) Quanto à aliança de Pisístrato com as classes inferiores, vide Heródoto, I, 59; Plutarco, Sólon, 29, 30; Aristóteles, Política, V, 4, 5, ed. Didot, p. 571.

(14) Heródoto, I, 59, e Tucídides, VI, 54, afirmam que Pisístrato conservou a constituição e as leis estabelecidas, isto é, as leis e a constituição de Sólon.

(15) Hsródoto. V, 63-65; VI, 123; Tucídides, I, 20; VI, 54-59. Esses dois historiadores mostram muito claramente que a tirania foi deposta, não por Armódio e Aristógiton, mas pelos espartanos. A fábula ateniense alterou os fatos.

(16) Heródoto, V, 66-69, dá idéia muito nítida da luta de Clístenes contra Iságoras, e de sua aliança com as classes inferiores; cf. Isócrates, c. 232.

(17) Heródoto, I, 66, 69.

(18) Ésquines, In Ctesiph., 30. Demóstenes, In Eubul. Pólux. VIII, 19, 95, 107.

(19) Aristóteles, Política, III, 1, 10. Escoliastes de Ésquines, ed. Didot., p. 511.

(20) As antigas fratrias e os ghéne não foram suprimidos; pelo contrário, subsistiram até o fim da história grega; delas falam os oradores (Demóst, In Macart., 14, 57; In Neaeram, 61; In Eubulid., 23, 54; Iseu, De Cironis Her., 19). As inscrições mencionam ainda seus atos e decretos (Boeckh, t. I, p. 106; t. II, p. 650. Ross, Demi, p. 24; Kohler. n.°s 598, 599, 600); mas essas fratrias e esses ghéne não passavam de classes religiosas, sem nenhum valor na ordem política.

(21) Heródoto, V, 67, 68. Aristóteles, Política, VII, 2, 11. Pausânias, V, 9.

(22) Aristóteles, Política, VI, 2, 11, ed. Didot, p. 594, 595.

(23) Tito Lívio, I, 47. Dionísio, IV, 13. Já os reis precedentes haviam dividido as terras tomadas ao inimigo; mas não é certo que tenham incluído a plebe nessa divisão.

(24) Dionísio, IV, 13; IV, 43.

(25) Idem, VI, 26.

(26) Os historiadores modernos contam ordinariamente seis classes. Na realidade havia apenas cinco: Cícero, De republ., II, 22; Aulo Gélio, X, 28. Por uma parte os cavaleiros, por outra os proletários, estavam fora das classes. — Notemos, aliás, que a palavra classis não tinha, na linguagem antiga, sentido análogo ao do nosso vocábulo classe; significava corpo de tropa (Fábio Pictor, em Aulo Gélio, X, 15; ibid., I, 11; Festo, ed. Müller, p. 189 e 225). Isso indica que a divisão estabelecida por Sérvio foi mais militar do que política.

(27) Dionísio de Halicarnasso descreve em algumas palavras o aspecto dessas assembléias centuriais: VII, 59; IV, 84.

(28) Parece-nos incontestável que os comícios por centúrias não eram nada mais que a reunião do exército romano. Para provar nossa idéia temos os seguintes fatos: 1.°: essa assembléia é muitas vezes chamada de exército pelos escritores latinos: Varrão, VI, 93; Tito Lívio, XXXIX, 15; Ampélio, 48; 2.°: porque esses comícios eram convocados exatamente como o exército quando entrava em campanha, isto é, ao som da trombeta (Varrão, V, 91), dois estandartes flutuando sobre a cidadela, um vermelho, para chamar a infantaria, outro verde, para a cavalaria; 3.°: esses comícios eram reunidos sempre no campo de Marte, porque o exército não podia reunir-se no interior da cidade (Aulo Gélio, XV, 27); 4.°: essas assembléias eram compostas de todos os qus usavam armas (Díon Cássio, XXXVII, 28) e parece até que a princípio todos compareciam armados (Dionísio, IV, 84, in fine); 5.°: o povo era distribuído por centúrias, infantaria de um lado, cavalaria de outro; 6.°: cada centúria tinha à frente seu centurião e sua insígnia (Dionísio, VII, 59); 7.°: os sexagenários, que não faziam parte do exército, não tinham mais direito de votar nesses comícios, pelo menos nos primeiros séculos: Macróbio, I, 5; Festo, v. Depontani. Acrescentemos que na antiga língua a palavra classis significava corpo de tropa, e que a palavra centúria designava uma companhia militar. — A princípio os proletários não compareciam a essa assembléia; contudo, como era costume que eles formassem no exército uma centúria dedicada aos trabalhos, eles também poderiam formar uma centúria nesses comícios.

(29) Cássio Hémina, em Nônio, liv. II, v. Plevitas.

(30) Varrão, De ling. lat., VII, 105. Tito Lívio, VIII, 28. Aulo Gélío, XX, 1. Festo, v. Nexuri.

(31) Dionísio, VI, 45; VI, 79.

(32) Tito Lívio, IV, 6. Dionísio, VI, 89, nomeia formalmente os feciais. O texto desse tratado, que se chamou lex sacrata, conservou-se por muito tempo em Roma; Dionísio cita trechos do mesmo (VI, 89; X, 32; X, 42); cf. Festo, p. 318.

(33) Tito Lívio, II, 33.

(34) Dionísio, X, 4.

(35) Plutarco, Questões Romanas, 81. Tito Lívio, II, 56, mostra que aos olhos do patrício o tribuno era um privatus, sine imperio, slne magistratu. É, portanto, por abuso de linguagem que a palavra magistratus foi aplicada aos tribunos. O tribunado já estava transformado quando Cícero, em arroubo oratório, é verdade, chamou-o de sanctissimus magistratus (Pro Sextlo, 38).

(36) Tito Lívio deixa de falar dessa cerimônia no momento da instituição do tribunado, mas fala dela na época de seu restabelecimento, em 449 (III, 55). Dionísio assinala com a mesma clareza a intervenção da religião (IX, 47).

(37) Dionísio, VI, 89; IX, 48.

(38) ídem, VI, 89. Zonaras, t. I, p. 56.

(39) Plutarco. Quest. rom., 81.

(40) Dionísio, VI, 89; Tito Lívio, III, 55.

(41) Dionísio, X, 32.

(42) ídem, VI, 89.

(43) Aulo Gélio, XIII, 12.

(44) Plutarco, Quest. rom., 81.

(45) Aulo Gélio, XV, 27. Dionísio, VIII, 87; VI. 90.

(46) Tito Lívio, II, 56, 12.

(47) Tito Lívio, II, 60. Dionísio, VII, 16. Festo, v. Seita plebis. Entende-se que falamos apenas dos primeiros tempos. Os patrícios estavam inscritos nas tribos, mas sem dúvida não figuravam nas assembléias, que se reuniam sem auspícios ou cerimônias religiosas, cujo valor legal não reconheceram por muito tempo.

(48) Numerosos documentos atestam que houve uma legislação escrita muito antes dos decênviros; Dionísio, X, I; III, 36; Cícero. De rep., II, 14; Pompônio, no Digesto, I, 2. Várias dessas leis antigas são citadas por Plínio, XIV, 12; XXXII, 2; por Sérvio, ad Eclogas, IV, 43; nas Geórgicas, III, 387; por Festo, passim.

(49) Tito Lívio, III, 31. Dionísio, X, 4.

(50) Júlio Obsequens, 16.

(51) Tito Lívio, V, 12; VI, 34; VI, 39.

(52) Tito Lívio, VI, 41.

(53) Tito Lívio, IV, 49.

(54) Tito Lívio, VI, 42.

(55) Tito Lívio, X, 6, parece acreditar que esse argumento não passava de artifício; mas as crenças não estavam tão enfraquecidas nessa época (301 antes de nossa era) que tal linguagem não pudesse ser muito sincera na boca de muitos patrícios.

(56) As dignidades de rei dos sacrifícios, de flâmines, de sálios e de vestais, às quais não se dava nenhuma importância política, foram confiadas sem perigo às mãos do patriciado, que continuou sempre como casta sagrada, deixando todavia de ser a casta dominante.

Livro IV - Cap. VIII

(1) Tito Lívio, VII, 17; IX, 33, 34.

(2) Gaio, III, 17; III, 24. Ulpiano, XVI, 4. Cícero, De invent., I, 5.

(3) Gaio, no Digesto, X, 2, 1.

(4) Ulpiano, Fragm., X, 1.

(5) Já havia o testamento in procinctu; mas não temos informações bastantes sobre essa espécie de testamento; talvez fosse para o testamento calatis comitiis o que a assembléia por centúrias era para a assembléia por cúrias.

(6) Gaio, I, 113-114.

(7) Gaio, I, 111. A coemptio era tão pouco um modo de casamento, que a mulher podia contratá-lo com outro, além do marido, por exemplo, com o tutor.

(8) Gaio, I, 117, 118. É fora de dúvida que essa emancipação era apenas fictícia nos tempos de Gaio; mas, em sua origem, podia ser real. Aliás, o casamento por simples consensus não era considerado sagrado, não estabelecendo entre os esposos laço indissolúvel.

(9) Aulo Gélio, XI, 18. Demóstenes, In Leptinem. 158. Porfírio, De abstinentia. IX.

(10) Demóstenes, In Evergum, 68-71; In Macartatum, 37.

(11) Sólon, ed. Boissonade, p. 105.

(12) Iseu, De Apollod. hered., 20; De Pyrrhi hered., 51. Demóstenes, In Macart., 51; In Baeotum de dote, 22-24.

(13) Iseu, De Aristarchi hered., 5; De Cironis her., 31; De Pyrrhi her., 74; De Cleonymi her., 39. Diodoro assinala, XII, 18, uma lei análoga de Carondas.

(14) Iseu, De Hagniae hereditate, 11-12; De Apollod. hered., 20. Demóstenes, In Macartatum, 51.

(15) Plutarco, Sólon, 21.

(16) Iseu, De Pyrrhi hered., 68. Demóstenes, In Stephanum, II, 14. Plutarco, Sólon, 21.

(17) Plutarco, Sólon, 13.

(18) Plutarco, Sólon, 23.

(19) Iseu, De Pyrrhi hered., 8-9. 37-38. Demóstenes, In Onetorem, 7, 8; In Aphobrum, I, 15; In Baeotum de dote, 6; In Phoenippum, 27; In Neaeram, 51, 52. — Não se poderia afirmar que a restituição do dote tenha sido estabelecida desde os tempos de Sólon; estava em vigor nos tempos de Iseu e de Demóstenes. Contudo, devemos notar que o antigo princípio, exigindo que o marido fosse proprietário dos bens trazidos pela mulher, continuava inscrito na lei (ex.: Dem., In Phoenippum, 27); mas o marido se constituía devedor a respeito dos kyrioi da mulher, de soma igual ao dote, e empenhava seus bens como garantia: Pólux, III, 36; VIII, 142; Boeckh, Corpus inscript. gr., n.°s 1037 e 2261.

(20) Plutarco, Sólon, 18.

Livro IV - Cap. IX

(1) Plutarco, Sólon, 25. Segundo Heródoto, I, 29. Sólon, ter-se-ia contentado em fazer com que os atenienses jurassem que observariam essas leis durante dez anos.

(2) Dinarca, In Demosthenem, 71.

Livro IV - Cap. X

(1) Plutarco, Sólon, 1 e 18; Arístides, 13. Aristóteles, citado por Harpocrácio, às palavras, Híppeis, Thétes. Pólux, VIII, 129. Cf. Iseu, De Apollod. her., 39.

(2) Tito Lívio, I, 43; Dionísio, IV. 20. Aqueles cujo patrimônio não atingia 11.500 asses (asse de uma libra) formavam apenas uma centúria, e não tinham, por conseqüência, senão um único sufrágio dos 193; tal era, aliás, o processo da votação, que essa centúria jamais era chamada para votar.

(3) Aristóteles, Política, III, 3, 4; VI, 4. 5; Heráclides, nos Fragmentos dos Hist. Gr., t. II, p. 217 e 219. — Cf. Teógnis, verso 8, 502, 525-529.

(4) Para Atenas, vide Xenofonte, Hiparco, I, 9. Para Esparta, Xenofonte, Helênicas, VI. 4, 10. Para as cidades gregas em geral, Aristóteles, Política, VI, 4, 3, ed. Didot, p. 597. Cf. Lísias, In Alcebíad., I, 8; II, 7.

(5) São esses os oplitai ek katalógou de que fala Tucídides, VI, 43 e VIII, 24. — Aristóteles, Polít., V, 2, 8. nota que, na guerra do Peloponeso, as derrotas sofridas nos campos de batalha dizimaram a classe rica de Atenas. — Quanto a Roma, vide Tito Lívio, I, 42; Dionísio, IV, 17-20; VII, 59; Salústio, Jugurta, 86; Aulo Gélio XVI, 10.

(6) Harpocrácio, segundo Aristófanes.

(7) Duas passagens de Tucídides mostram que, ainda em seu tempo, as quatro classes se distinguiam pelo serviço militar. Os homens das duas primeiras, pentacosiomedimnos e cavaleiros, serviam na cavalaria; os homens da terceira, zeugitas, eram hoplitas; o historiador também assinala, como exceção singular, que eles haviam sido empregados como marinheiros em empresa urgente (III, 16). Aliás, Tucídides, contando as vítimas da peste, classifica-as em três categorias: os cavaleiros, os hoplitas, e, enfim, a vil multidão (III, 87). — Pouco a pouco, os tetas passaram a ser admitidos no exército (Tucid., VI, 43; Antiphon, em Harpocrácio. v. Thètes).

(8) Aristóteles, Política, V, 2, 3.

(9) Vide o que conta Tucídides, IV, 80.

Livro IV - Cap. XI

(1) Dinarca, Adv. Demosthenem, 71.

(2) Não se deve dizer que o magistrado de Atenas era respeitado, e, sobretudo, temido, como os éforos de Esparta ou os cônsules de Roma. O magistrado ateniense não somente devia prestar contas ao término do cargo, mas, durante o exercício de sua magistratura, podia ser destituído por voto popular (Aristóteles, em Harpocrácio, v. Kyría; Pólux, VIII, 87; Demóstenes, In Timotheum, 9). Exemplos de semelhantes destituições são muito raros.

(3) Ésquines, In Ctesiph., 2. Demóstenes, In Neaeram, 3. Lísias, In Philon., 2. Harpocrácio, v. Epilachón.

(4) Ésquines, In Timarch., 23; In Ctesiph.. 2-6. Dinarca, In Aristogit., 14. Demóstenes, De falsa legat., 70. Cf. Aristófanes, Thesmoph., 25-350. Pólux, VIII, 160.

(5) Ésquines, In Timarchum, 27-33. Dinarca, In Demosthenem,71.

(6) Isso pelo menos é o que dá a entender Aristófanes, As Vespas, 691.

(7) Aristófanes, Cavaleiros, 1119.

(8) Pólux, VIII, 94. Filócoro, Fragm., col. Didot, p. 497.

(9) Ateneu, X, 73. Pólux, VIII, 52. Vide G. Perrot, História do Direito Público de Atenas, cap. II.

(10) Vide. sobre esses pontos da constituição ateniense, os dois discursos de Demóstenes, contra Léptínes e contra Timócrates; Ésquines, In Ctesiphontem, 38-40; Andócides, De mysteriis, 83-84; Pólux, VIII, 101.

(11) Tucídides, III, 43. Demóstenes, In Timocratem.

(12) Acredíta-se que havia 6.000 heliastas para cerca de 18.000 cidadãos; mas devemos riscar dessa última cifra todos os que ainda não tinham trinta anos, os doentes, os ausentes, os homens que estavam na guerra, os que haviam sido atingidos pela atimia, aqueles, enfim, que eram manifestamente incapazes de julgar.

Livro IV - Cap. XII

(1) Aristófanes, Eccles., 280 e seg.; Aristóteles, Polít., II, 9, 3; Aristófanes, Cavaleiros, 51, 255; As Vespas, 682,

(2) Xenofonte, Resp. Ath., I, 13; Cf. Aristófanes, Cavaleiros, v. 293 e seg.

(3) Plutarco, Quest. grecq., 18.

(4) Aristóteles, Política, V, 4, 3.

(5) Tucídides, VIII, 21.

(6) Plutarco, Dion, 37, 48.

(7) Políbio, XV, 21, 3.

(8) Políbio, VII, 10, ed. Didot.

(9) Aristóteles, Política, V, 7, 19. Plutarco, Lisandro. 19.

(10) Heráclides do Ponto, em Ateneu, XII, 26. — Costuma-se muito acusar a democracia ateniense de ter dado à Grécia o exemplo de seus excessos e de suas revoltas. Pelo contrário, Atenas é a única cidade grega conhecida que não viu dentro de seus muros essa guerra atroz entre ricos e pobres. Seu povo, inteligente e sábio, compreendera, desde o dia em que teve início a série de revoluções, que se caminhava para um termo em que somente o trabalho poderia salvar a sociedade. Atenas, portanto, encorajou-o, e o tornou honroso. Sólon prescrevera que todo homem que não tivesse trabalho fosse privado dos direitos políticos. Péricles quis que nenhum escravo pusesse as mãos nas obras dos grandes monumentos que construía, reservando todo esse trabalho para os homens livres. Aliás, a propriedade estava dividida de tal modo, que no fim do quinto século contavam-se no pequeno território da Ática mais de dez mil cidadãos proprietários de imóveis, contra apenas cinco mil que não o eram (Dionísio de Halic., De Lysia, 32). Atenas, portanto, vivendo sob regime econômico pouco melhor que o de outras cidades, foi menos perturbada que o resto da Grécia. A guerra dos pobres contra os ricos existiu ali como em outros lugares, mas foi menos violenta, e não provocou tão graves desordens; limitou-se a um sistema de impostos e de liturgias que arruinou a classe rica, e a um sistema judiciário que a abalou e a esmagou, mas que, pelo menos, não chegou ao excesso da abolição das dívidas e da distribuição das terras.

(11) Aristóteles, Política, V, 8, 2-3; V, 4, 5.

Livro IV - Cap. XIII

(1) Tucídides, I, 18.

(2) Idem, V. 68.

(3) Plutarco. Licurgo, 8.

(4) Idem, ibid., 5.

(5) Aristóteles, Política, V, 10, 3 (ed. Didot, p. 589).

(6) Aristóteles, Política, II, 6, 18 e 11. Cf. Plutarco, Ágis, 5.

(7) Mirão de Priena, em Ateneu, VI.

(8) Teopompo, em Ateneu, VI.

(9) Ateneu, VI, 102. Plutarco, Cleômenes, 8. Eliano, XII, 43.

(10) Aristóteles, Política, VIII, 6 (V, 6). Xenofonte, Helênicas, V, 3, 9.

(11) Xenofonte, Helênlcas, III, 3, 6.

(12) Idem, ibid., III, 3, 5.

(13) Idem, Resp. Lac., 10.

(14) Demóstenes, In Leptinem, 107.

(15) Aristóteles, II, 6, 15; Demóstenes, In Lept., 107; Plutarco, Licurgo, 26.

(16) Aristóteles, Política, II, 6, 18, qualifica esse modo de eleição de pueril; é descrito por Plutarco, Licurgo, 26.

(17) Aristóteles, Política, II, 6, 5; V, 6, 7.

(18) Demóstenes, In Leptin., 107. Xenofonte, Gov. da Laced., 10.

(19) Aristóteles, Política, V, 6, 2.

(20) Idem, ibid., V, 1, 5. Tucídides, I, 13, 2.

(21) Aristóteles, Política, II, 6, 14.

(22) Xenofonte, Helênicas, III, 3.

(23) Plutarco, Ágis, 5.

(24) Políbio, XIII, 6; XVI, 12; Tito Lívio, XXXII, 38, 40; XXXIV, 26, 27.

Livro V - Cap. I

(1) Aristóteles, Política, II, 5, 12; IV, 5; IV, 7, 2; VII, 4 (VI, 4).

(2) Pseudo Plutarco, Fortuna de Alexandre, 1.

(3) A idéia da cidade universal é expressa por Sêneca, Ad Marciam, 4; De tranquillitate, 14; por Plutarco, De exsilio; por Marco Aurélio: “Como Antonino, tenho Roma por pátria; como homem, o mundo.”

Livro V - Cap. II

(1) A origem troiana de Roma era opinião aceita antes mesmo que Roma mantivesse relações constantes com o Oriente. Um velho adivinho, em predição que se reportava à segunda guerra púnica,. dava ao romano o epíteto de trojugena: Tito Lívio, XXV, 12.

(2) Tito Lívio, I, 5 e 7. Virgílio, VIII, Ovídio, Fast., I. 579. Plutarco, Quest. rom., 76. Estrabão, V, 3, 3. Dionísio, I, 31, 79, 89.

(3) Dionísio. I, 45; I, 85. Varrão, De língua lat., V, 42. Virgílio, VIII, 358. Plínio. Hist. nat., III, 68.

(4) Dos três nomes das tribos primitivas, os antigos acreditavam que um fosse latino, outro sabino e o terceiro etrusco.

(5) Dionísio, I, 85. Cf. Juvenal, I, 99; Sérvio, ad Aen., V, 117, 123.

(6) Plutarco, Quest. rom., 76.

(7) Tito Lívio, I, 7; IX, 29.

(8) Bem cedo os romanos afetaram ligar sua origem a Tróia; vide Tito Lívio, XXXVII, 37; XXIX, 12. Do mesmo modo, logo testemunharam seu parentesco com a cidade de Segesto (Cícero, In Verrem, IV, 33; V, 47), com a ilha de Samotrácia (Sérvio, ad Aen, III, 12), com os peloponésios (Pausânias, VIII, 43) e com os gregos (Estrabão, V, 3, 5).

(9) Dionísio, II, 30; Plutarco, Rômulo, 14, 15, 19; Cícero, De rep., II, 7. Se observarmos com atenção a narrativa desses três historiadores, e as expressões que empregam, reconheceremos todos os caracteres do casamento antigo; por isso somos levados a crer que essa lenda das sabinas, que com o tempo transformou-se na história de um rapto, era originalmente a lenda da aquisição do connubium com os sabinos. É assim que Cícero parece tê-la compreendido (De orat., I, 9).

(10) Tito Lívio, IX, 43; XXIII, 4.

(11) Cícero, De rep., II, 7.

(12) Tito Lívio, I, 45. Dionísio, IV, 48, 49.

(13) Tito Lívio, V, 21-22; VI, 29. Ovídio, Fast., III, 837, 843. Plutarco, Paralelo dos hist. gr. e rom., 75.

(14) Cíncio, citado por Arnóbio, Adv. gentes, III, 38.

(15) Tucídides, III, 69-72; IV, 46-48; III, 82.

(16) Tucídides, III, 47. Xenofonte, Helênicas, VI.

(17) Dionísio, VI, 2.

(18) Tito Lívio, IV, 9, 10.

(19) Tito Lívio, VIII, 11.

(20) Títo Lívio, IX, 24, 25.

(21) Tito Lívio, IX, 32; X, 3.

(22) Tito Lívio, XXIII, 13, 14, 39; XXIV, 2.

(23) Plínio, XIV. 1, 5: Senator censu legi, judex fieri censu, magistratum ducemque nihil magis exornare quam censum. O que Plínio diz aqui não se aplica apenas aos últimos tempos da república. Em Roma sempre houve censo para a escolha do senador, do cavaleiro, e até do legionário; quando se criou um corpo de juízes, tornou-se necessário muito dinheiro para que alguém pudesse dele participar, de sorte que o direito de julgar sempre foi privilégio das classes superiores.

(24) Tito Lívio, XXXIV, 31.

(25) Tito Lívio, I, 38; VII. 31; IX, 20; XXVI, 16; XXVIII, 34. Cícero, De lege agr., I, 6; II, 32. Festo, v. Praefecturae.

(26) Cícero, Pro Balbo, 16.

(27) Tito Lívio, XLV, 18. Cícero, Ad Att., VI, 1; VI, 2. Apiano, Guerras Civis, I, 102. Tácito, XV, 45.

(28) Filóstrato, Vida dos Sofistas, I, 23. Boeckh, Corp. Inscr., passim.

(29) Mais tarde, Roma estabeleceu por toda parte o regime municipal; mas devemos entender que esse regime municipal do império não se assemelhava senão aparentemente ao dos tempos anteriores, do qual não possuía nem os princípios, nem o espírito. A cidade gaulesa, ou grega, do século dos Antoninos, é bem diferente da cidade antiga.

(30) Gaio, IV, 103-106.

(31) Sobre a instituição do patronado e da clientela, aplicada às cidades subjugadas e às províncias, vide Cícero, De officiis, II, 11; In Caecilium, 4; In Verrem, III, 18; Dionísio, II, 11; Tito Lívio, XXV, 29; Valério Máximo, IV, 3, 6; Apiano, Guerras Civis, II, 4.

(32) E mais tarde, no ager italicus.

(33) Gaio, II, 7. Cf. Cícero, Pro Flacco, 32.

(34) Gaio, I, 54; II, 5, 6, 7.

(35) Tito Lívio, VIII, 3, 4, 5.

(36) Tito Lívio, VIII, 5; a lenda acrescenta que o autor de proposta tão ímpia, tão contrária aos antigos princípios das religiões políadas, havia sido castigado pelos deuses com morte súbita ao sair da cúria.

(37) Apiano, Guerras Civis, II, 26. Cf. Gaio, I, 95.

(38) Tito Lívio, XXXIX, 3.

(39) Por isso é chamado desde essa época, em direito, res mancipi. Ulpiano, XIX, 1. O jus italicum, que existia, segundo todas as aparências, nos tempos de Cícero, é mencionado pela primeira vez em Plínio, Hist. nat., III, 3, 25; III, 21, 139; mas já se aplica, por extensão natural, ao território de várias cidades situadas nas províncias. Vide Digesto, liv. L, título 15.

(40) Os gregos haviam dedicado templos à deusa Roma desde o ano 195. isto é, antes de ser conquistada a Grécia. Tácito, Annales, IV, 56; Tito Lívio, XLIII. 6.

(41) Suetônio, Nero, 24. Petrônio, 57. Ulpiano, III, Gaio, I, 16, 17.

(42) Tornava-se estrangeiro com relação à sua própria família, se ela não tivesse, como ele, o direito de cidadania; não herdava da família. Plínio, Panegírico, 37.

(43) Cícero, Pro Balbo, 28; Pro Archia, 5; Pro Caecina, 36. Cornélio Nepos, Atticus, 3. A Grécia abandonara esse princípio há muito tempo; mas Roma ainda continuava fiel a ele.

(44) Justiniano, Novelas, 78, c. 5. Ulpiano, no Digesto, lib. I, tít. 5-17. Sabemos, aliás, por Espartano, que Caracala se fazia chamar Antonino nos atos oficiais. Díon Cássio (LXVII, 9) afirma que Caracala deu a todos os habitantes do império o direito de cidadão romano para generalizar o imposto do vigésimo sobre as alforrias e as sucessões, que os peregrini não pagavam. A distinção entre peregrinos, latinos e cidadãos não desapareceu inteiramente; encontramo-la ainda em Ulpiano e no Código; com efeito, parece natural que os escravos libertos não se tornassem tão depressa cidadãos romanos, mas passassem por todas as antigas categorias que separavam a servidão do direito de cidadania. Vemos também, por certos indícios, que a distinção entre as terras itálicas e as terras provincianas subsistiu ainda por muito tempo (Código, VII, 25; VII, 31; X, 39; Digesto, liv. L, tít. 1). Assim a cidade de Tiro, na Fenícia, ainda depois de Caracala, gozava por privilégio do direito itálico (Digesto, liv. V, tít. 15); a manutenção dessa distinção se explica pelo interesse dos imperadores, que não queriam privar-se dos tributos que o solo provinciano pagava ao fisco.


 

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